Convenci-me que ia ver a Cinderela e, afinal, havia outra.
Já me pesam os anos, e os meses, as semanas e os dias. Só isso pode explicar tanta desorganização mental.
Por outro lado, não sou uma pessoa de confiança, no que toca a fazerem-me convites, e também no que não toca. Queres ir...?, já nem ouço o resto, até podem estar a mandar-me à merdinha ou ao genital, que eu digo logo que sim na mesma. Tenho a meu favor a desculpa de ter sido desafiada por uma menina na qual confio cega, surda e mudamente.
Era suposto estarmos às 9 horas no Teatro São Carlos, e decidimos ir de metro, por todos os motivos que expus
supra, a acrescer que não sou assim tão parva e um pouco menos tonta do que pareço: optar por ir de carro, em Lisboa, sexta à noite, para o Chiado, pode ser a conjugação perfeita para quem queira ter momentos sucessivos de arrependimento genuinamente cristão.
Pela hora de começo do espectáculo e pela sua duração, rapidamente percebemos que teríamos que jantar antes, sob pena de entrarmos em hipoglicémia e depois ser uma chatice para sairmos dela. Assim, comprámos duas caixas de vegetariano e fomos andando para o teatro, para garantir que chegávamos a horas. Faltava meia-hora para as 9 quando chegámos ao Largo de São Carlos, onde nos sentámos num banco de jardim e jantámos. Parecíamos duas sem-abrigo, com a diferença que éramos duas sem-abrigo felizes e vegetarianas (não necessariamente por esta ordem).
O Teatro São Carlos é majestoso, na verdadeira acepção da palavra: nobre, sumptuoso, real. Mas é também queiroziano, e não foi difícil imaginar o flirt entre a condessa e Carlos, ali mesmo, há muitos anos.
Mal me havia acomodado, feita Cohen, no camarote que me saiu à sorte, quando avistei, do outro lado da sala, o Pai Natal. Quando já tudo me gritava baixinho
Pai Natali, Pai Natali!, eis que me ocorreu se não poderia tratar-se antes do grande Gandalf. Sou uma perseguida pelas Bichas do Demónio, eu.
O espectáculo começou, e eu, plenamente convencida de estar a assistir à Cinderela, em nada estranhei que começasse com um baile, que existisse um lacaio, um príncipe (ou rei), uma princesa (que não situei muito bem na história, mas também não me despertou a dúvida, de adormecida nela que estava), uma mulher vestida de azul (que eu achei que era a Cinderela) e uma mulher má (que eu achei que era a madrasta). Às tantas, vi passar um bebé (que era um boneco), e aí, sim, achei que deviam ter-se enganado, porque não existe bebé nenhum na Cinderela.
Foi só quando a bailarina principal se deitou no chão é que eu suspeitei que aquela podia não ser a história da Cinderela. De resto, já tinha dado pela falta das duas irmãs feias — que toda a minha infância me intrigaram com que raio de parentesco era aquele, uma vez que eram filhas de pai e mãe diferentes. Nessa altura, percebi que estava a ver A Bela Adormecida, já o bailado ia a meio. E só não considerei a hipótese de se tratar d' A Branca de Neve, por não ter visto passar nenhum anão, quanto mais sete. Mas também tenho a dizer em minha defesa que não vi passar nenhuma roca, nem nenhuma velha, e não podia adivinhar qual das dorminhocas era a protagonista deste espectáculo.
O príncipe que acorda a Bela é, outra vez, o japonês. Se calhar,
não se lembram do japonês, mas eu lembrava-me, e muito bem. De notar que me encontrava a uma altura de quatro andares, e percebi claramente que ele tinha aqueles olhos assim. Veio lá de tão longe para acordar a rapariga, a dormir há cem anos. Por acaso, para fazerem aquele efeito que queriam, puseram um fumo na sala que deu mesmo parecenças com um castelo abandonado há cem anos, com o pessoal todo a dormir. Já o povo que estava acordado, na plateia e balcões, fartou-se de tossir, e eu hoje tenho os olhos injectados como o diabo, e quase em bico, como os do príncipe.
Bom, creiam-me que — e isto repito as vezes que for preciso, até ficar bem cimentado —, a nossa Companhia Nacional de Bailado em nada deve à escola russa, ao ballet francês, espanhol, ou do Burkina Faso. E a nossa Orquestra Sinfónica é, verdadeiramente, assombrosa. Metade dos músicos tocaram debaixo do palco, porque é assim a sala de orquestra no São Carlos. Deve haver muito mineiro com uma vida mais arejada.
Eu cá, bati palmas até me doerem os ossos (até porque não tirei os anéis). E fá-lo-ia de novo, se ainda lá estivesse.