19/03/2022

Bela adormecida

Cá manias, gosto de ir compostinha para os tratamentos de quimioterapia. Sei, pelo que vejo à minha volta, que o confortável e aceitável, logo, o normal, seria ir de leggings, camisolão e pantufas, gorro de lã ou absolutamente nada na cabeça, mas dá-se que eu não sou confortável, aceitável, e muito menos normal. Fui educada na premissa de que uma ida ao senhor doutor é para ser levada quase como uma cerimónia. Ainda que chegue ao ponto de estar toda postiça e, à noite e de manhã, rever a decadência a que os tratamentos me vão levando, não abdicarei da minha maquilhagem e de Natércia, para além de trapos bonitos. Não me lembro de ter comprado tanta roupa numa só estação como este ano. Às vezes até me sinto mais bonita do que antes de ter cancro. Ele há parvas para tudo.

Mudei de hospital e, consequentemente, de médico. A maior diferença que encontrei até agora foi a da papelada, que é de uma profusão assustadora. E entrega-se um papel em cada guichet, cada um com sua senha de espera — e não há prioridades, que prioritários somos todos —, mas isso leva-se de letra depois da primeira vez. De resto, só encontrei diferenças para melhor: pessoal de enfermagem muito mais dedicado (e em muito maior número), assim como pessoal auxiliar. A última vez que lá estive, pedi sopa e dois lanches e não houve cá mão na anca, “ó filha, o lanche é só às 5!”, para alguém que estava ali a largar o preço de um automóvel novo. (Um Dacia, pronto.)

Ao contrário do que eu sempre imaginei, nas salas de quimioterapia não existe tristeza, nem lágrimas, nem suspiros. Talvez o pessoal, com toda a sua dinâmica e sorrisos prontos, tenha a maior responsabilidade nisso. Mas conta alguma coisa estarmos todos “ao mesmo”, não haver a dúvida que lemos nos olhos dos outros na rua, “será que…?”, estarmos todos agarrados por aqueles tubinhos da esperança ou da certeza de que um dia destes não teremos que voltar ali.

Desta última vez que lá estive, posso ter carregado nas tintas e ido exageradamente bela. Pus-me em preto total, de calças, só com um apontamento de lenço de seda, oferecido por um dos meus genros, que tem um bom gosto avassalador (e estou à vontade para escrever o que quiser, porque nem ele nem a respectiva que dei à luz lêem isto. Também é giro, trabalhador e faz a minha criança feliz, que mais posso eu pedir à vida, a não ser saúde também para ele?). Mas queria estrear um sobretudo novo, cor-de-rosa, com o qual sonhava desde os tempos do “Cisne Negro” (Nathalie Portman) e que consegui na Vinted, praticamente oferecido.



Pode ter sido tanto arraso que deu aso à situação que aqui vinha descrever e que, por pouco, já me escapava. Tenho o polegar cansado.

Não sei se já disse aqui no buraco que, durante os meus tratamentos, só faço uma de duas coisas: ou durmo (noventa por cento do tempo), ou como (os restantes). Não sei o que é, mas tudo me dá sono. A maior parte das vezes, sou acordada por uma enfermeira, que me avisa que me vai dar uma injecção de anti-histamínicos, que me fará ter bastante sono. Imagine-se.

Desta vez, estava eu a deglutir talvez o primeiro lanchinho, aborda-me o senhor da cadeira ao lado (a minha, reclino-a logo até ficar na horizontal, não vá cair-me a cabeça para a frente e ainda sair de lá marreca do pescoço), com o seguinte diálogo:

- Então, a senhora tem passado bem?

- Muito bem, muito obrigada. E o senhor?

(Este nível de educação também não tem sido lá muito meu amigo ao longo da vida. Tudo seria muito mais fácil se, por vezes, me limitasse a uma gargalhada sarcástica ou a um “vá defecar à mata”.)

O homem, incrédulo:

- Não me está a conhecer, pois não?

Eu, sincera:

- Não.

O homem, desapontado:

- Ah, é que eu estava aqui a semana passada.

Eu a pensar, pela enésima vez nesta vida: “Isto, das três, uma: ou sou eu que tenho cara de profissional do sexo, ou sou tão bela que não é possível estar ao pé de mim sem que se inicie uma porra de uma conversa de ir às nalgas, ou então sou um mix de ambos”. Sim, também pode dar-se o caso de as pessoas estarem muito sozinhas e quererem um bocadinho de companhia, e mimimi. Não sou psicóloga, nem padrisa, nem tenho saco para diálogos mansinhos que começam assim para acabarem assado. Deixem-me, que eu ainda estou na fase da raiva e não há meio de chegar à da aceitação.

De todo o modo, cortei o canal ao senhor, porque adormeci.