19/11/2018

Uma história, duas histórias

Estava deitada entre o passeio e a estrada quando o homem a encontrou, em pleno dia, pouco depois da hora de almoço, dia de semana. Gemia baixinho por ajuda, enfraquecida e assustada, ao lado da cabeça uma poça de sangue com o tamanho de duas palmas feitas charco de dor. Ali ficou até chegar a emergência médica, quieta, gelada, perdida, enquanto passaram pessoas, carros, entregas ao domicílio do talho, da mercearia, de encomendas internacionais. Estava acompanhada por estranhos e um menino, agora homem, que, há muitos anos, foi a desculpa que a vida lhe deu para que se tratasse daquele mal do álcool. Das mãos de alguém surgiu uma almofada e um cobertor, pois adivinhava-se uma espera longa. (Nunca há pressa, em se tratando de um velho.) Ao volante de um táxi, surgiram a filha e o genro, atarefados ou atordoados, telemóveis nas mãos, mil assuntos para resolver. A ajuda surgiu então, ao cabo de trinta e nove minutos, personificada num médico de mota, que, subitamente, sem retirar o capacete, foi acometido de pressas e urgências, calçando luvas, desdobrando panos e plásticos, entrapando a cabeça dela até aos olhos, pedindo a quem ainda resistia uma cadeira para a sentar, e também colaboração para a erguer do chão. Assim sentada, lembrava uma criança, mal comportada e infeliz, de boné ridículo na cabeça, o casaquinho de malha pelos ombros sobre a bata de trabalho, que bem podia ser um bibe. Ao cabo de uma hora e dezasseis minutos, veio uma ambulância, sem sirenes nem cuidados, e levou-a, dorida.

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A mulher tropeçou num pilarete de cimento, daqueles que servem para impedir que os carros subam para o passeio, e estatelou-se na estrada, abrindo um lanho na testa de uma ponta à outra. A ambulância foi imediatamente chamada, eram 13:45. A acompanhá-la, estavam algumas pessoas do prédio onde trabalha e o filho da patroa, jovem que viu crescer desde o ano de idade. Os minutos passaram e a ajuda médica não chegava, tanto que foi necessário acomodá-la, colocando-lhe uma almofada sob a cabeça e tapando-lhe o corpo com um cobertor. Entretanto, chegou a filha, que revezou o rapaz, e, falando sempre ao telemóvel, sentou-se, creio que cansada, num balde vazio de tinta que ali jazia à espera de recolha. Ao fim de trinta e nove minutos, ouviu-se a sirene do INEM, e surgiu um médico montado numa mota, que claramente não a iria transportar ao hospital, a menos que... Sem retirar o capacete, prestou-lhe os primeiros socorros que, pareceu-me, já vieram com largos minutos de atraso, forrou-lhe a cabeça com uma ligadura que lhe tapava os olhos - e que logo ajeitou, como a um chapéu mal posto -, pediu uma cadeira para a sentar nela e embrulhou-a em papel dourado, qual Dom Rodrigo. Entretanto, haviam passado por ali, ainda com ela deitada no chão, várias pessoas, a pé ou de carro, mas, para além de terem lançado olhares furtivos na sua direcção, nenhuma perguntou se era preciso ajuda. Um dos automóveis parou mesmo ao lado do corpo estendido e os seus ocupantes pediram a quem ali a acompanhava informações acerca da localização de uma rua. A ambulância chegou sem pressas, passava mais de uma hora sobre a queda, imagino que numa altura em que já era impossível coser a testa da mulher, mas também naquele momento em que, se tivesse que morrer por falta de assistência, já teria morrido há demasiado tempo. Se tudo isto não fosse trágico, seria eventualmente cómico. 

2 comentários:

  1. Uma história, duas histórias... Não há versão que colmate a miséria de quem precisa de assistência neste país. (Seja ela médica ou outra coisa qualquer)

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    1. Nem quero imaginar o que passa pela cabeça magoada (em sentido lato) de uma pessoa nestas circunstâncias, Be :/

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