É primeira vez que vamos ver-nos desde que. Carrego, enfiada na cabeça, Natércia, com a qual ainda não decidi que tipo de relação tenho. Sei apenas que não é de ódio, talvez porque atravesse — pessoalmente e como ser humano desta Terra — uma fase em que quero estar longe de tal registo. Mas também ainda não é de amor, como confessei outro dia à comadre que lhe deu o nome, tornada, deste modo, madrinha de uma cabeleira, assim como de uma filha das minhas.
A mulher abre-me a porta, escancara os olhos miudinhos em clara e simulada surpresa, abre também os braços e exclama:
- Está tão linda!
Ao fim de três meses (contando apenas desde o diagnóstico) disto, já só sorrio para dentro quando alguém me diz que estou bonita. Ainda que também o exteriorizasse, pessoas como ela talvez não captassem esse sorriso, com a desculpa da máscara. Mas, na verdade, devo ter perdido pelo caminho a capacidade para que os olhos acompanhem a reacção. De qualquer modo, habituei-me a elogios físicos desde que sei e que sabem que tenho cancro. Agora sou linda: de peruca, com as pestanas a metade e cor de vela, mas linda. Por acaso, estou com uma pele maravilhosa, lisa como a de uma criança, não só porque toda a penugem voou pelos ares, como também porque sou militar com a hidratação e bebo chá rigorosamente todo o dia. E sim, devia dormir algaliada, ou de fralda. As minhas noites são mais belas do que os vossos dias. Micçamente falando, claro.
Abre-me também os braços, para os quais me dirijo sem reservas — na ingénua ilusão de que nunca se recusa um abraço —, quando me trava subitamente, me agarra as duas mãos com a força das unhas compridas a cravarem-se nas minhas palmas, os anéis nos meus nós, e esclarece:
- Isto ainda não dá para abraços.
Entendo. Está preocupada com a segurança dela, e existe uma infinitésima possibilidade de eu lhe transmitir um vírus que, apesar de bi-vacinada, pode matá-la. Como é estúpida, a estúpida da vida.
- Sabe, estou muito doente. Até já tive que ir a um psiquiatra, que me fez tão bem… Acertou-me a medicação,
[que pena que não tenha sido o passo]
tirou-me muitas dúvidas que eu ainda tinha, e agora sinto-me bem, mais leve, muito melhor.
Sabe, estou muito doente.
À saída, desejei as melhoras, votos que ela não devolveu, não sei se sorri para dentro ou para fora, e atravessei a porta, desabraçada e linda.