31/10/2021

A Contabilidade não é o meu forte

Disso, nada sei, só sei que há pessoas que ficam nervosas com os relatos dos exercícios físicos das outras, e eu sou uma delas. Existem mesmo memes — não confundir com memés — a homenagear esse enfado, declarando “no one cares” para as conquistas musculares de cada qual. É verdade, concordo e assino por baixo. Ou por cima, tanto faz. No entanto, mais confusão a mim me fazem os atletas de sofá, que a sabem toda (a teoria) e não a fazem nada. Cruzo-me (salvo seja) com vários quando vou correr. Equipam-se, caminham e aterram na esplanadinha a descansar os ossos. Mas também não levo muito à paciência os profissionais do atletismo, que têm aquilo tudo contabilizado até ao cagagésimo de segundo e participam em provas e ganham medalhas e diplomas e pernas para que te quero. Chatos.

Mas, chiça penico, impossível não vir aqui babar que, pesem-me embora as carnes, a três semanas de entrar na contagem decrescente para sair da segunda idade — já só faltam dez anos, há-de ser rápido a passar —, o que é certo é que ontem palmilhei oito quilómetros e meio, não me cansei extraordinariamente, e hoje não estou falecida. Aconteceu que disparei lá para um parque, que sei que tem quinhentos metros de perímetro, determinei-me a fazer seis voltas, para já ficar com três dos sete quilómetros que pretendia fazer feitos, e não ter que andar feita alucinada às voltas ao meu prédio e aos dos outros, mas deu-se que me perdi na contagem das voltas, e aí pela quinta?, sexta?, já não sabia a quantas ia (Dori no seu melhor), 

resolvi então fazer mais uma?, duas?, olhem, não sei quantas fiz, só sei que deu 8,560, pernas ok, pulmões e coração até a aguentarem mais um bocadinho. 

Bendita atmosfera húmida. Porém, os mosquitos. A humana acaba as corridas com as pernas a parecer o vidro da frente de um carro depois de atravessar o Alentejo. Vêm atraídos pelo protector solar, ficam irremediavelmente colados (e, antes de se finarem, ainda mas picam). Acho que não comi nenhum.


30/10/2021

A mulher que podia ser minha mãe # 5

abre a porta para eu entrar, verifico que já estão duas pessoas sentadas, pergunta-me se quero um café, agradeço e digo que não, mas ela começou agora o espectáculo, precisa de interagir, precisa de uma explicação: “A sua tensão arterial, como é que está?”, pois não lhe chega um mero “Já tomei”, “Não me apetece”, “Por hoje já chega”, para o que, de resto, nem me deu tempo. Respondo que está boa, agora que só tomo um café por dia — a minha grua —, talvez um destes dias nem isso, assim como assim já só como relva, capaz de me meter na meditação e abraçar uma religião alternativa. Entro para o gabinete e ainda a ouço dizer para as duas sentadas: “Esta [e diz a minha profissão oficial, que, aliás, não exerço, mas que, para o caso, é indiferente: ela sofre de dependência de falar, sobretudo necessita de se engrandecer através do poleiro social a que considera ter ascendido por se dar com. Estou profundamente convicta de que, se suspeitasse que eu era operária numa fábrica de bonés ou costureira, não só me ignoraria olimpicamente, como também não me apresentaria a todas as pessoas que ali entram como se eu fosse distintíssima em alguma coisa, criando-me embaraços irrecuperáveis, ou fosse a única pessoa do mundo que tirou aquela m. daquele curso — ainda se fosse Física Quântica, ou Engenharia Aeroespacial —, que nem a mudar uma fralda me ensinou] anda muito nervosa, e, por isso, agora só toma um café por dia”. 

Não ando, mas fico.



28/10/2021

And that awkward moment # 67

E é destes petits riens que é feita a minha vida, o que explica de antemão dois relatos seguidos de momentos peculiares. 

Imagina que vais pela rua, e que ainda estás constipada (ou sei lá o que é que se passa com as minhas fossas, pois é uma profusão mucosa que pondero mesmo mudar-me para aquela localidade que responde pelo belo nome de Ranholas. Juro que não deve haver dia que passe em que o meu primeiro pensamento não seja um agradecimento ao cosmos por não ter um sítio com um nome desse género no meu cartão de cidadona como local de nascimento. Pior do que Ranholas, só A-da-Gorda.) (Ao invés, fui nascer no Bairro de São Miguel, spé estupendaço.) Subitamente, entra-te um mosquito pela narina adentro, acima, ao léu, olé. Instinto imediato: expirar fortemente pelo nariz, como se estivesses a assoar-te. Só que sem lenço. E com o canal carregado daquela nhanha, que nunca vou perceber — nem estudar no Google, não se incomodem — onde é que se localiza a fábrica. Suspeito que algures nos entrefolhos das sinapses. Aqui a humana, pelo menos, não possui espaço para alojar a central de produção noutro local que não esse. Já estou farta de dizer que o meu nariz é pequeno, com canais estreitos (e, já agora que ninguém perguntou, também lindo. Imagine-se que, mesmo não sendo ruiva, longe vá o agoiro, tenho sardas. Umas quantas sardinhas, vá, um pequeno cardume delas, mas estão cá e são só minhas).

Já me perdi. Onde é que eu ia?

Ah, funguei no sentido do exterior, a ver se dava à luz o bicho. E foi a tragédia, o muco a assomar-se na direcção do bigode, a mulher a lutar na diálise entre inspirar o animal para a pulmoneira, ou esvair-se em ranho no meio da calçada. Ah, e sem lenço, pois actualmente utilizo uma mala de mão que cabe na palma da dita e onde, obviamente, não transporto esses extras. Então, fungava e ai Jesus, que o povo vai perceber que este naco, afinal, também segrega secreções. Inspirava e nada de paz interior, era toda uma turbulência, que quase ouvia os gritos de agonia da pequena criatura. 

Pus a máscara. Quero lá saber se já não é obrigatória na rua. 

Na primeira oportunidade, assoei-me violentamente. Mas não olhei “lá para dentro”. Prefiro viver o resto dos meus dias na ilusão de que o coisinho saiu a voar alegremente numa das minhas tentativas de o expulsar. Tudo, menos ter-se afogado em pasta nasal, ou, pior, ter ido morrer/ viver num pulmão dos meus e até se reproduzir cá dentro, caso fosse uma fêmea prenhe. Nunca se sabe.

(Diz o site onde fui ver que o nome colectivo para mosquito é nuvem ou praga. É fazermos a imagem mental do que poderia sair do meu nariz após reprodução da mosquita: uma nuvem de mosquitinhos, e todos temos assegurado um bom resto de dia, como diz o povo que se despede com um “fica”. Parece agradável.)


26/10/2021

And that awkward moment # 66

em que a aula está prestes a começar, a instrutora pergunta ao grupo se é a primeira vez de alguém — por indiscrição ou curiosidade estatística, já que não faz nada com a informação, sequer pergunta se a pessoa sofre de lesões a ter em conta —, há uma que levanta o braço e logo é confrontada com a questão seguinte, que é meramente retórica: “Gostas de dançar?”, ao que ela responde: “Não”.


Ora, este tipo de atitude levanta-me a mim uma série de dúvidas:

1. Existem mais pessoas que, tal como eu, sistemática e matematicamente se enganam na porta?

2. A mulher ouviu mal/ não percebeu a pergunta, tendo pensado que era um daqueles inquéritos chatos a que uma pessoa responde o primeiro desvario que (não) lhe vem à cabeça, ou uma micro-sessão de psicoterapia pré-esforço para descontrair?

3. Terá julgado que estava a responder a um Trivial, e, desconhecendo a resposta para Camembert, pensou que a certa era a mais improvável?

4. Será uma daquelas pessoas que nunca saem/ gabam-se de que nunca saíram da p. da adolescência, e consideram que toda a gente tem que achar piada/ aturar as suas irreverências?

5. Será apenas e tão só genuína e ingenuamente mal educada?

Já nem dancei convenientemente, tal foi o rodopio cerebral que isto me provocou. (Ultimamente, tenho sempre uma boa desculpa para os meus desacertos de passo. Esta foi a deste dia.)

(Uma pessoa desgasta-se.)


22/10/2021

Andar, caminhar, correr

Um dia, disse aqui e aos sete ventos (ou são quatro? Os véus é que são sete, não é?) que detestava correr. Agora, não é que adore, que uma humana também não muda assim da noite para o dia, mas, vá, tolero. Cheguei a uma idade e a um ponto da minha vida em que, se quero, já não digo perder peso, mas não o ganhar, é dar à sola com alma, caso contrário, mais ou menos rapidamente, transformar-me-ei numa senhora estabelecida na vida. E isso preocupa-me, logo, combato. 

O aquecimento estafa-me, mas é-me absolutamente necessário, se não quiser andar nos dias seguintes agarrada a um andarilho. Os primeiros duzentos metros — porque os faço numa subida — esgotam-me. O primeiro quilómetro é-me penoso. Depois entro num roulement até ao primeiro suspiro, que é aquele momento em que o peito se transforma numa caixa de ar frio, e há que deitá-lo todo fora. A partir daí, é lutar contra a secura da garganta (shame on me, corro de boca aberta, só falta deitar a língua de fora, como os cães. Mas acho que tenho fossas nasais demasiado estreitas para conseguir respirar exclusivamente pelo nariz estando em esforço) e pouco mais, porque as pernas aguentam-se bem até ao fim. Os meus piores tempos são sempre nos quilómetros ímpares: primeiro, terceiro, quinto e sétimo. Desmoralizo, aborreço-me, a minha playlist — que me pareceu um conjunto de boas ideias quando a construí — enfada-me. Don't leave me now e If you leave me now, por exemplo, são odes à deprimência, que, ao invés de animarem a mulher, convidam-na antes a parar num beco em posição fetal, a babar-se e aos urros. Tenho que repensar este pormenor.

(Alguém conhece um bom programa pirata, como foi o finado Songr, que dê para importar as músicas e depois passá-las para o mp3? Sim, sou assim tão arcaica, deixem-me. E não me sugiram o Spotify, que não serve para o que eu quero. Agradecida.)

Já corri, sem mérito, prémio ou pompa alguns, contra o cancro da mama, as doenças raríssimas, e, com alguma circunstância, contra o vento, o sol, a chuva (épica molha já este ano, em que regressei ao lar uma lamentável amálgama de carne molhada com cabelos colados, rímel borrado — deixem-me ser como eu sou, o rímel faz parte da minha aerodinâmica — e ténis em galocha improvisada), os ciclistas, os outros corredores (não me atrevo a autoproclamar-me atleta, mas apenas por ser assim destas modéstias absurdas) e as gajas da caminhada, que calçam um par de sapatilhas (eh, condescendi!) e lá vão elas, cheias de gás (gaseificadas!), braços dobrados encostados ao tronco, todas convictas. Aprecio sinceramente o esforço delas, dá para perceber que a grande maioria são senhoras que se obrigaram, a duras penas, a desalapar o quadril do sofá/ fogão/ corda da roupa, e o que estão a fazer é melhor para a saúde delas do que nada. Eu só não faço o mesmo porque fico nervosa por levar o dobro do tempo a percorrer do ponto A ao ponto B, quando posso levar metade. E porque o sofá, o fogão e a corda da roupa — não necessariamente por esta ordem — também estão carinhosamente à minha espera e tenho pavor de os desiludir. 


20/10/2021

A libertação da máscara

A mim, está a correr-me extremamente mal. Abaixo a via respiratória ao léu, viva o véu! (Quem rima sem querer…)

Estou a transformar-me num homem. É só queixas, chiliques e espasmos. Hoje acordei com febre. O termómetro apontava 37,4º, o que, para mim, significa um grau acima do normal, ou seja, dez décimos. (Ou dez décimas, como diz o pessoal das gramas.) Tenho uma tosse cava e funda, daquelas de cuspir os brônquios nos próximos cinco segundos, algo parecido com dor de cabeça (que, longe vá, é coisa que não sei o que é há anos) e ranho, embora discreto. Claro que o meu primeiro pensamento foi dedicado ao covid, aquele vírus, apesar de os sintomas que tive quando o tive terem sido outros. Tomei antipirético, tomei xarope, e depois fiz o teste, a hiperventilar de medo. A sério, vou arrastar-me outra vez para o hospital? De novo TACs, análises, gasimetrias, o oxigénio, o oxímetro!, mas, sobretudo, e em primeiro lugar, aquele auxiliar com vinte e poucos anos que me dizia que eu podia estar à vontade à frente dele porque estava “farto de ver corpos nus”? Gostei de saber, sobretudo apreciei que o petiz dissesse uma coisa destas a uma mulher com idade para ser mãe dele, vestida com um pijama de cadeia feminina e com cara e cabelo de atropelada por um camião cisterna. E será desta que entro para as estatísticas que rebatem todas as certezas científicas? Socorro, não quero morrer, pelo menos não agora, pelo menos não assim! Ai, Lurdes, Lurdinhas!

Deu negativo, não estou grávido. 



19/10/2021

Gostaria muito de ser diferente, e não esta troca-o-passo que sou

Um bocadinho também troca-tintas, mas isso agora não é para aqui chamado.
Tudo começou porque tinha o cartão de entrada no ginásio no porta-luvas de Rosinha e não me lembrei de o meter no saco quando saí do carro. Estava a uns bons cento e cinquenta metros do recinto, saltos altos, eu toda proa a abanar a popa até lá. Só à porta me apercebi da falta do cartão, pedi à entrada um de empréstimo, lá o jovem foi imediato na prestação, mas também naquilo que entendi como uma praticamente óbvia ameaça, elucidando-me de que iria ficar “penalizada” por não sei quanto tempo, impossibilitada de marcar aulas, atirada para a valeta dos utentes de segunda categoria, só faltou dizer-me que teria que ser praxada na sala de treino, encher flexões com um gorilão suado e tatuado às cavalitas até suspirar os pulmões para um tapete. Eu ai que não gosto de ameaças, sei inclusive que configuram um crime p.p. no Código dos Cães (assim conhecido porque todas as normas começam pela palavra “quem”), olho para o relógio e restam-me uns impossíveis (sobretudo com aquelas tamancas calçadas) doze minutos para chegar ao carro e voltar. Acometida por uma luminária, calço meus ténis (ou sapatilhas, chiu), arranco o vestido mesmo à super-herói, dou graças ao Senhor por já ir equipada por baixo, isto tudo a um tempo, fecho o cacifo com o cartão do ginásio e dou corda aos sapatos, que é como quem diz, saí e voltei como se tivesse tomado aquela bebida do boi encarnado: velocíssima. No regresso, de tal qualidade fora o sprint, ainda me sobravam quatro minutos até a aula começar, que aloquei mentalmente para ir fazer um bom chichi, encher a garrafa de água e ir aquecer os tornozelos e as nalgas para a sala. 
Entreguei o cartão ao balcão, e foi aqui que me forniquei. Não sei o que é que me passou pelo presunto, mas achei, com certeza, que o cacifo ia adivinhar que o meu cartão era o correcto para o abrir, apesar de o ter fechado com um outro. E é claro que não abriu. 
Lá corri de volta à portaria, pedi que me devolvessem o cartão emprestado, mas a azeda que estava de plantão naquele momento mostrou-me onde o tinha posto: numa caixa cheia de cartões, todos iguaizinhos uns aos outros, como filhos da mesma mãe. Entrementes, o meu tempo, forças, paciência e nervos a esvairem-se-me poros afora.
E foi assim que fiz uma aula de dança apertadinha para fazer chichi, porém, e em compensação, sem uma gota de água para beber. 

(Como é que abri o cacifo? Fácil: com as pestanas. No fim da aula, fui ao balcão expor o assunto que ali me levava, e o rapaz que me atendeu deu-me uma chave-mestra. Coisa que a azeda não podia ter feito, está bem de ver. Porquê? Vamos lá todos sentar aqui no chão um bocadinho a meditar nas razões dela.)

17/10/2021

A vizinha lá do fundo

é — ou foi — actriz das telenovelas, designadamente aquela dos morangos sem chantilly, pormenor do qual muito me confrange lembrar, uma vez que, quando se mudou para o caixote com telhado comum que passou a partilhar com a gente, deslocou-se propositadamente à minha porta com o intuito de se apresentar, e era ela de olhos esbugalhados e eu sem perceber o motivo de tanto escancaranço, tendo compreendido mais tarde que a explicação era apenas que aqui a xanxa não sabia quem era a vedeta. Não pude — nem posso agora — explicar-lhe que não assisto a semelhantes enredos radiotelevisivos, pois despendo as minhas horas livres com outro telelixo, uns furos abaixo daquele que a vizinha protagonizou. Também não guardo mágoa desse episódio, já que ela se fartou de me mentir, por exemplo quando disse ser mãe de três, quando afinal é de apenas dois (o terceiro é do companheiro e saiu de outra barriga, ou seja, matematicamente, a pessoa estava a considerar os meus, os teus e os nossos, dado que um dos dela também não saiu daquele peny com o qual coabita), claramente a tentar medir pilas comigo, só porque eu sou mãe de quatro (chiu, respeito).

Acontece que esta mamã de todos deixa sacos de cinquenta litros cheios de fraldas de cocó — que eu presumo pertencerem ao mais novo, com coisa de três anos e cerca de um metro e trinta e quatro de altura — na conduta do lixo, que fica exactamente junto à porta cá do lar, algo longínqua da dela, já que habita nos fundilhos do patamar. Portanto, a enorme cria defeca, imagino que tarolos olímpicos, ela guarda aquilo uns dias dentro de casa, e depois vem despejar sacos cheios de calhaus putrefeitos à minha porta. 

Ora, vamos lá a ver: a conduta destina-se apenas a lixo reciclável. Todo o restante deve ser metido cano abaixo, lá naquela portinhola fedorenta. Então, a vizinha, de duas, uma: ou considera a possibilidade de as fraldas do seu pimpolhão serem recicladas (para adubo de plantações de cápsulas de café), ou teme que os sacos entupam a conduta comum. A mim, deixa-me de mãos e pés atados, não me restando alternativa senão enfiar eu mesma cada saco cano abaixo, se não quiser ter meu lar a feder a ETAR. Porque devolvê-los para a porta dela seria a solução para este imbróglio, só que, lá está, eu sou uma senhora, não faço essas coisas. Mais depressa lhe deixo um bacio à porta, a ver se incentivo o desfralde à criança. Que já virá tarde, ainda assim.


14/10/2021

Beijinhos e bumps

Já aqui o disse e reafirmo-o: se há coisa mai boa que a virose nos ofertou, foi acabar com a mania dos dois beijinhos à chegada e à partida, dados de mão beijada — não literalmente — a todo o bicho careta que se cruzava em nossas vidas, às vezes (felizmente) uma única vez. Éramos apresentados a alguém, conhecido de amigo de amigo, e zás, chuac-chuac. Por vezes até nos calhava uma daquelas almas que davam duas cabeçadas, enquanto. Ou duas babadelas, de caminho. Ou que nem davam beijos, era só um menear de cabeça para a esquerda e outro para a direita e nós a ouvirmos apenas o som dos nossos beijinhos, a meio do nada, uma coisa muito triste e solitária. Qual agora, isso acabou. 

No entanto, também não concordo com estes novos cumprimentos, ao murro e à cotovelada — chamam “fist bump” ao primeiro, se calhar o outro é “elbow bump” —, pois prevejo que, em breve, haverá abusos ao nível da intensidade, assim como havia nos apertos de mão, que, já agora, a menina detestava: ora molhados, ora moles, ora só as pontinhas das unhas, ora quebra-ossos, sempre fui muito dada a evitar esses contactos, sabia lá eu onde é que cada qual tinha andado com as mãos, sobretudo depois de ter ido fazer chichi. E cocó.

Então, sugiro, como alternativa a beijos e murros, por exemplo, a vénia das artes marciais. Uma coisa discreta e com distanciamento suficiente para que não soframos um traumatismo craniano cada vez que. Nada de vénias parvas à rainha, não que não as mereça, porém acontece que, no momento da retribuição, muito haveria de me desagradar ter que repuxar as bainhas das saias para os lados e fazer um lunge, correndo o risco de me desequilibrar (e ainda ter que justificar-me ou soprar para algum balão). Pode igualmente ser um aceno ao de leve, um saravá, um aloha, um namasté, um oi, um hei, um oléééé!, o que calhar, até mesmo um tá-se, embora este me ponha um nico exangue das têmporas porque já não sou dessa época. Mas aguento, muito melhor do que chuac-chuac.





11/10/2021

Os animais falam connosco

Molly, registada Pequena Molly num momento de clara incapacidade de antevisão — pois veio a tornar-se um animal enorme —, iniciou um ritual mictório nos lavatórios das casas de banho, dando uso à caixa de areia apenas para a defecação, valha-nos isso. Assim, disse-me ela: “Olha para mim, estou doente.” Pela frequência e quantidades mínimas, rapidamente percebi que se tratava de algo parecido com (ou no mau caminho para) uma infecção urinária. Não precisa de me dizer que é inútil tentar metê-la na gateira para a levar ao vet, a menos que não me importe de ser mordida e arranhada a ponto de ficar sem as veias dos braços e, vá, um olho, com a garantia porém de que, ainda assim, não vou conseguir enfiá-la lá dentro. Compreendo, porque eu própria não o permitiria: aquilo é claustrofóbico e aterrorizador, além do que, o que se segue é uma (curta, é certo) viagem de carro, que ela detesta, e um ambiente estranho com gente igualmente estranha a mexer-lhe no corpo e a fazer-lhe “maldades” — tirar sangue, recolher urina, dar-lhe injecções, quando não — cúmulo dos cúmulos — cortar-lhe as unhas. Da última vez que lá esteve, após épico enclausuramento na caixa de transporte, em que saíram pessoas magoadas (ensanguentadas!) daquela relação, teve que ser metida na jaula das feras (don’t ask). Isto, apenas para ser vacinada.

Posto isto, dirigi-me à clínica, sem gata, expus o problema e trouxe para o lar um anti-inflamatório para senhora dona Molly tomar durante cinco dias, e ainda a marcação de uma consulta para análises e exames para amanhã, terça-feira, às 11:00 horas da madrugada. Já lá vamos.

Diz-me a gata, através de gesto e modo, que não toma medicamento algum, seja em cápsulas (mesmo que abertas e misturadas, nem que seja com filet mignon), em comprimidos desfeitos, ou em líquido. É óbvio que me grita, “Estás louca, queres envenenar-me?”. E então, por pesquisas nos meus já escassos e desgastados neurónios, cheguei à conclusão de que a única “guloseima” à qual ela não resiste de todo, é azeite. Portanto, agora toma todo e qualquer medicamento, desde que desfeito numas gotinhas desse ouro alimentar. Um dos amores da minha vida é, em suma, azeiteira.

A veterinária deu-me uma cápsula de calmante para dar à gata uma hora e meia antes de a levar à consulta. Resta-me apenas a dúvida se efectivamente lha dou, ou se a tomo eu. Melhor, talvez, será abri-la, misturá-la em azeite, e vai metade para cada uma. A minha parte também pode levar vinagre e orégãos, so help me God.


09/10/2021

Conclusões mais ou menos lógicas a que vou chegando com o passar do tempo

1. Quando estou parada num sinal vermelho e, na perpendicular, passa um carro em excesso de velocidade, é certo e sabido que vai abrir o verde para mim, em cerca de quase um segundo.
2. A minha empregada está há nove dias de férias, e agora percebo porquê: o lar esgota-me. É um trabalho que nunca está terminado, e ao qual ninguém bate palminhas. Apesar de tudo isto, apetece-me despedi-la e auto-contratar-me, e logo de imediato tomar a medida de me aumentar salarialmente.
3. Por falar nela, ainda não percebi muito bem por que é que ela diz engives e cólon do útero, mas também é capaz de dizer Inesstagraam e Cronoposst. Da falta de oportunidades ninguém é culpado, mas então também não me esbugalhe os globos quando eu digo Instagrâme, só falta corrigir-me no seu melhor estrangeiro.
4. Os meus chás preferidos foram com os porcos, derivados ao Brexit. Existe um resto em algumas lojas, mas a maior parte dos sabores — designadamente aqueles que eu posso tomar (nada de preto, verde ou branco, se não quiser faleceri) — sumiu do radar. Passaram, imagine-se, a ser considerados artigo importado. Isto é do mais chique que me ocorre dizer hoje.
5. Ao fim de cinco meses de covid, consegui voltar a correr seis quilómetros. Talvez ainda volte aos sete, até mesmo porque pretendo fazer dez (hahahahahaha) para o ano. Porém, estou piamente convicta de que o cansaço nada tem a ver com a esponja em que se tornaram os pulmões, nem com a hora do dia, a idade (até parece mentira, mas arrisco afirmar que estou mais velha um dia todos os dias), a falta de treino, as horas de (falta de) sono, a mood, os ténis, as moscas e o caneco. O (meu) cansaço resume-se a uma coisa tão simples como o tempo, ou seja, o clima. Acima de 23 graus Celsius, ide vossemecês corrê-las por mim, que eu cá vou mas é meter as carnes a assar ao solinho.
6. Fiz a importação do meu certificado de vacinação no dia em que deixou de ser obrigatório apresentá-los no acesso à maior parte dos espaços. Registei. Estou a pensar adquirir uma máscara de ouro cravejadinha de diamantes, topam a ideia?
7. Não me apetece estender mais este lençol, embora tivesse mais três coisas para dizer. Fica para uma próxima.

06/10/2021

And that awkward moment # 65

em que te diriges para a marquesa do senhor doutor, já conformada de que vais exibir-lhe as belezas vergonhas todas, naquela saleta que também podia pertencer a Freud, o psicanalisador — e talvez só essa ligeira, porém aceitável semelhança, é que, eventualmente, explicará a resposta absurda com que o brindaste —, deitas-te desconfortavelmente (as senhoras marquesas, primas das marquises?, são sempre excessivamente estreitas, estão forradas com um papel deslizante, uma pessoa deita-se e parece que vai praticar surf invertido, ou slide & splash, algo assim aquático-marítimo), o homem besunta-te as raparigas com um gel gelado, e então questiona, curioso/ apreensivo/ negacionista (?):

- Fez uma reacção muito exuberante à vacina, não fez? — Isto, enquanto te passa o coiso óptico pela sovaca.

É assim, uma humana vai amedrontada. Venha de lá o primeiro calhau se alguma foi mostrar miudezas e grandezas de ânimo leve, cantando e rindo, sem se lembrar de todas as irmãs que, num exame de mera rotina, ficaram a saber que, afinal. Ainda mais sendo uma ansiosa certificada como esta aqui. Além disso, parecendo que não, a mulher tem os seus pudores. Custa-lhe a ideia de se exibir assim à toa a um estranho qualquer. Quero lá saber se é médico, se tirou diploma, se está careca de ver corpos despidos, se eu não sou a última bolacha do pacote (até sempre sem entender esta expressão, a última não é a esmigalhada/ passada da validade/ gorgulhenta/ demasiado seca/ demasiado mole?), se a sala está numa penumbra calmante. A mim, tudo me enerva. Apetece-me bater as palmas e comandar em voz máscula: “Vamo lá a despachar a coisa, que eu não tenho o dia todo para estas mariquices”. 

Mas não. Ao invés, fiquei tão nervosa com a pergunta, que respondi:

- Não, correu tudo bem. Acontece que eu uso um desodorizante de pedra de alúmen, só que outro dia passei um com álcool e ficou-me a arder muito.

- [O agonizante silêncio de quem, simultaneamente, ignora o que acabou de ouvir, enquanto vasculha na axila alheia à procura de cenas.]

Pronto, era só isto. Vergonha não-alheia. Auto-própria.

04/10/2021

Novas medidas e medições

Matemática, não me falhes agora, também tu!
Fazíamos a nossa dança num lugar marcado no chão, que media três por três, nove quadrados. Eram dezoito lugares na sala.
Com a terceira fase do desconfinamento, reduziram-nos o espaço individual, disse a instrutora, para dois por dois. Eu, por acaso, estou farta de olhar para aquele quadradinho, e sinto que não é maior do que a minha fita métrica da costura: um metro e meio.
De qualquer modo, dois por dois é menos de metade de três por três, e desta aqui é que ninguém me arreda.
De qualquer modo ainda, se antes eram dezoito lugares e agora são trinta e seis, como é que passaram de três para dois metros?
Ainda de qualquer modo, se, efectivamente, os lugares passaram para um metro e meio por um metro e meio, temos agora, nada menos do que uma quarta parte do espaço que tínhamos antes. Qualquer dia, só conseguimos dançar slow, muito agarradinh@s. Nem uma boa lambada.
Talvez deva antes voltar para os bancos da escolinha, ora com licença.


01/10/2021

Mudança cosmética

Alta madrugada, levanto-me da cama, faço o que tenho a fazer para o copo esterilizado, guardo-o no plástico da embalagem, depois na caixa, ponho num saco opaco, visto umas calças de ganga e camiseiro branco, calço umas sabrinas e ala para a rua, ainda o dia é apenas um recém-nascido de bem com a vida, satisfeito e apaziguado. Percorro cem metros e chego ao centro de análises, onde já estão duas pessoas: uma mulher, que pousou o boião da urina no balcão de atendimento, envolto num plástico com uma quantidade tal de fita adesiva, que antevejo a necessidade de utilização de uma motosserra para descartar semelhante embalamento; e um homem, cujo frasco para análise há-de ter contido em tempos o pó de cevada, chicória e centeio do pequeno-almoço de uma família inteira, imagem que me põe a especular por que diabos as detentoras de anatomia que mais complica a urinação para um micro-copo, são precisamente as que cumprem a função, ao passo que aqueles que podiam urinar para uma carica à distância de três metros, o fazem para um jerrican de vidro.

Enquanto a funcionária processa os meus dados — mais uma incrédula perante o nome que consta do meu cartão de beneficiária do seguro, nada menos do que o da zebra do filme infantil “Madagáscar”, não adianta escondê-lo: procurai por Maria Marti, e achais-me —, entra uma rapariguinha apavorada, com o potezinho do chichi na mão, o líquido orgânico visível à transparência. Lembro-me de ter a idade dela e de as agulhas me causarem um frio na barriga, que se estendia pelo corpo e ficava alojado impiedosamente nas extremidades todas. Depois tive filhos.

Duas horas volvidas, regresso ao mesmo local por me ter esquecido de (mais) um papel, nesta que deveria ser a época da informatização. Levo já o pequeno-almoço e o banho tomados, a maquilhagem pregada à cara, o vestido de ganga da minha predilecção e umas sandálias de salto. A mesma funcionária que me atendeu antes não me reconhece. Aponto para as pestanas, agora com o dobro do tamanho, e digo-lhe: “Eu sou a outra que aqui esteve há bocado, ou melhor, eu sou eu, mas em edição revista e melhorada”.

A camuflagem cosmética, como qualquer outra, permite-nos sermos duas, criando um trompe l’oeil (não traduzível aqui para “ilusão de óptica”, pardon mon portugais) aos outros e, sobretudo, a nós mesmas. É um crime perfeito, sem castigo, cometido sucessivamente ao longo de anos.