31/12/2018

Do céu aos trambolhões

Bastantes coisas em mim, mas particularmente as idas à boutique dos cafés, são dignas de serem registadas, quanto mais não seja porque tudo e tudo vem ter comigo. 
Então, estou na zona de espera pela minha vez, tenho doze senhas à frente da minha, conto catorze, dezasseis, porque sei que, nos entrementes, surgirão, caídas do céu aos trambolhões, quatro grávidas/ empurradores de carrinhos com um ou mais petizes/ idosos/ portadores da muleta e outros Sacis Pererês desta vida, que me passarão à frente, já que têm que ir descansar as pernas/ amamentar o infante/ descalçar os sapatos/ ver televisão.
Eu, que não sou detentora de prioridade alguma, recosto-me assim numa coluna logo ali ao lado do balcão de degustação, enquanto confirmo que a maioria dos presentes, após esperar duas ou três décadas de minutos, se vinga não sei do quê e faz precisamente o que lhe fizeram os que foram atendidos antes: demora uma eternidade para simplesmente comprar café. Sinto-me injustiçada, porém incapaz de fazer o mesmo, e, por isso, a minha compra não demora mais do que cinco minutos, três e meio dos quais despendidos nos salamaleques do funcionário.
Nisto, dá-se um estrondo mesmo ao meu lado, e um dos bancos do bar, todo em ferro, faz-me uma tangente ao pé, quase desenhando uma secante naquela unha. Atrás do banco, uma senhora de idade havia voado em direcção ao solo, e estava agora sentada, encostada à parede do balcão. O camelo que a acompanhava, para além de exclamar "É sempre a mesma coisa!", afastou-se lá para o fundo da sala, fingindo não a conhecer. Até parece que consigo ouvi-lo também a dizer "E amar-te e respeitar-te", mas estou demasiado ocupada a tentar içar a mulher dele do chão, eu e mais três homens, que o resto do mulheredo fez o mesmo que o esposinho da caída, e pôs-se a assobiar para o ar, numa maravilhosa melodia natalícia colectiva. Mas é que a pessoa estatelada fez-se em peso morto, e quem é que a levantava? Nós quatro, claro. Enfim, fizemos uma espécie de team work, contámos até três e, aos três, puxámos-lhe os dois braços e conseguimos, pelo menos, soerguê-la. Não lhe doía nada, pois caíra sentada e lá teria as suas reservas naturais que a impediam de se fracturar.
Pronto, depois fui atendida, tendo demorado, afinal, cerca de seis minutos, numa estéril discussão com o rapaz de serviço, pois quis adquirir um café com travo a chocolate, que não era o ciocattino, lá descobri a cápsula correspondente, ele que não, que esse não era chocolate, era cacau [revirar de olhos], eu que a cápsula era verde, ele que não, que essa era azul [olhos só com a esclera à vista, passe a expressão], lá me pus a cavar, como diz o povo, não fosse cair-me ali mais alguma grávida ou alguma idosa do céu aos trambolhões, que, desta vez, me acertasse na tal unha, fazendo de mim uma prioritária imediata da muleta.

Se calhar, ainda cá volto para vos desejar um bom ano. Se não, cá vai: um bom ano. A sério, um ano feliz.


30/12/2018

Girl

(Se acharem que é spoiler, é não lerem # 10)

Filme belga, sublime e maravilhoso, visto numa sala que faz parte de um espaço cultural condenado à morte para aí desde o meu nascimento (o velho Teatro Monumental, agora salas de cinema agonizantes, e grande amor de Laura Alves), com uma interpretação ímpar de Victor Polster e também de Arieh Worthalter, que põe o dedo em várias das nossas feridas e preconceitos, que são uma e a mesma coisa, por vezes.
Oscar para melhor filme estrangeiro, já! E, de caminho, melhor actor estrangeiro. Já agora, pena que não exista a categoria de melhor actor secundário estrangeiro. É criarem-na, especialmente para este. 

29/12/2018

Verdade ou consequência

Sempre que ali vou, mal dissimulo o hipnotismo em que fico com tanta artificialidade, ao mesmo tempo praticando uma espécie de jogo de diferenças — do original para o modificado — ou de verdadeiro e falso. Todas as empregadas do café têm longos e fartos cabelos, produto da óbvia colocação de extensões, pestanas a perder de vista, tanto em tamanho e espessura como em quantidade, sobrancelhas desenhadas a lápis de tatuador, e é quando olho para as caras delas que me ponho a adivinhar se a cor dos olhos — invariavelmente esverdeados, em tezes claramente morenas — e a espessura dos lábios sobre dentes milimetricamente alinhados e alvos, terão igualmente sido alteradas ou retocadas cirurgicamente. Sob os aventais, peitos plasticamente esféricos, erguidos de orgulho, rabos empinados, espremidos em calças onde até um fio de cabelo ficaria esmagado. 
São de uma simpatia exemplar, que me parece genuína. No entanto, quando me servem o descafeinado que acabei de lhes pedir, nunca resisto a perguntar, enquanto o mexo do açúcar que não lhe deito: "Tem a certeza que não é um café?". 
Não imagino quantos descafeinados falsos já ali tomei.


28/12/2018

um abraço de (minha) mãe

Conhecemo-nos quando eu precisei dos serviços dela, começámos por uma relação cliente-prestadora, mas acabámos, logo de início, numa infindável amizade de confidências e gargalhadas. Anos volvidos sobre esse primeiro encontro, vi hoje a mãe dela pela primeira vez. Atravessou há dias o oceano que a separa agora sempre, e talvez para sempre, da filha, que mal viu em dez anos, numa única vez de breve visita. Surgiu-me no corredor de casa, pequenina e afável, o cabelo muito branco e a doçura que só o olhar das mães consegue reflectir, e fiquei desde esse momento sem saber quem tomou a iniciativa de abrir os braços a quem, não me lembro se abracei ou fui abraçada, foram uns frágeis braços que me tomaram inteira, fui eu que me enleei, cingindo-a como minha, e houve um momento em que ela me disse baixinho, "Deus te abençoe, filha". E eu sei - porque senti - a minha mãe enlaçada comigo, connosco, naquele abraço.

26/12/2018

Ano Novo: uns batem tachos, outros batem pratos

Literalmente.
Andava exausta dos meus pratos da loja do sueco, AKA IKEA**, todos lascados, a porcelana a estalar e a aparecerem-lhes filamentos negros, qual mapa dos rios do nosso bom Portugal, todo um desassossego de cada vez que iam ao microondas, iam assim e voltavam assado, para além do que superaquecia a loiça e a comida mantinha-se fria. 
Pus-me, então, nas tamanquinhas, e dirigi-me à Vista Alegre*, VA para os amigos. Cheia da PDM, quis do phyno, mas, não alcançando o spéxique, optei pelo bom e velho Sagres. Portanto, doze de cada: rasos, sopa e sobremesa, só para as primeiras necessidades. Ali chegada, apercebo-me de que são três sacos grandes, cada um com três caixas, uma vez que os pratos são embalados aos quatro e quatro. (Isto parece um problema de matemática do primeiro ciclo.) Também considerei que, tendo em conta que havia deixado Rosinha a cinquenta metros dali, era capaz de ter que fazer um esforço para o qual talvez não fosse preparada, pois que nem aquecimento fizera. Ainda assim, avaliei o peso aos sacos, e afirmei, peremptória, que sim, que era capaz de os carregar até à viatura. Um jovem franzino que ali havia chegado há menos de nada perguntou-me se queria ajuda, ao que lhe respondi que não senhor, "Muito obrigada, eu vou tentar, e, se aos vinte e cinco metros verificar que não sou capaz de chegar ao carro, volto para trás com os sacos e aceito então a sua ajuda", hahaha, muita gargalhada, e eu ala que se faz tarde com os trinta e seis pratos pendurados dos braços, para aí vinte e quatro num e doze no outro, se não me falha a matemática. 
Teria talvez percorrido uns quinze ou dezasseis metros e um dos sacos começou a rasgar-se ao nível da alça. (Note to self: ir à VA reclamar da qualidade dos sacos deles **.) Aproveitei para pousar os três no chão e descansar três segundos, passe o pleonasmo. Não sei se pelo cansaço ou se sou mesmo assim, devo ter achado que, se pusesse o saco que se estava a rasgar num só braço e os outros dois no outro, o esforço era menor para o que se estava a rasgar, e então não se rasgava tanto. Eu também tenho os meus momentinhos louros. Claro que rapidamente percebi que o raio do saco se ia soltar da alça até ao carro e eu ia partir a loiça toda no meio da avenida. Outra vez no chão os três sacos, resolvi meter o rasgado debaixo do braço e os outros dois na mão do outro braço, mas tal também não se revelou possível, pois num deles estavam os pratos rasos, que são os maiores, que são os mais pesados, e eu não ando no ginásio há décadas para ganhar músculos desses. Pronto, resumindo: o rasgado ficou na sovaca, um dos outros na mão desse braço e o outro na outra mão. 
Conduzi com o máximo cuidado até casa, evitei colisões e curvas acentuadas, e chegaram os trinta e seis lindinhos inteiros e perfeitos.
Estava a pô-los na máquina, que isto dos pratos é como comprar cuecas, dei uma traulitada com um deles e lasquei-o. Copo meio cheio? Ao menos não foi um raso. Copo meio vazio? Podia ter sido um de sobremesa. 
Anyway, enchi-me de nervos e de cola, porque achei que a Supercola 3**, aquela cola que é cuspo nos materiais e sutura cirúrgica na nossa pele, me resolveria o assunto. Não resolveu, tenho os dedos cheios de cola e Ai-fostes não me reconhece a impressão digital. (Criminosos, escutai-me, que eu não duro sempre: quereis criminar sem deixar impressões digitais no local? Supercola 3 nas pontas dos dedos e nunca mais ninguém vos agarra.)

* NMPPI
** Ninguém me paga para me calar


And that awkward moment # 54

em que, em amena cavaqueira, à mesa de Natal do dia 25, te apercebes que tens/ tiveste em tempos o mesmo sonho pesadelo recorrente que uma criança de vinte anos? 
Exactamente o mesmo.
Uma situação que envolve sanitas, no meio da rua, e tu estás a tentar resolver o teu problema, que é muito sério, apesar de cómico. Então, a solução que arranjas é não só desesperada, como também tem uma alta probabilidade de não te solucionar o imnbróglio, podendo mesmo agravar-to.
Ela e eu numa gargalhada só, pela coincidência milimétrica, pelos raciocínios sincronizados, pela sensação comum de aflição e incapacidade de sair da circunstância.
Até batemos as palmas das mãos direitas uma na outra, em "dá cá cinco".
Até concluímos, aliviadas, que já há muito tempo que não temos esse "sonho". Mas que ele nos ensombrou as noites por alguns anos.
Acontece que eu tenho idade para ser mãe dela, mas parece que o meu cérebro não.


25/12/2018

Ainda não bebera uma gota nem duas de álcool e já confundira várias ideias

Então, partilhava eu aqui no meu salão, que a minha gata foi operada duas vezes nos últimos três meses e ainda se encontra em convalescença da última, quando travei o seguinte diálogo com um senhor com quem partilho uma afinidade:
LB - Foi operada duas vezes nos últimos três meses e ainda está a convalescer da segunda, que foi há pouco mais de duas semanas.
SCQPUA - Mas eles duram muitos anos, para aí uns vinte.
LB - Esta, não sei se durará tantos, com um carcinoma...
[Momento em que se gera alguma confusão, agora visto a esta distância.]
SCQPUA - Agora parece que é moda, toda a gente tem um.
LB - Pois, parece que está provado que uma grande percentagem da população terá um, mais tarde ou mais cedo.
(Esta minha mania de lançar números aleatórios quando não conheço a percentagem exacta, nem estou muito certa do que digo. Mas tenho em meu favor que SCQPUA também não escutou com atenção o que eu afirmei.)
SCQPUA - Lá na minha terra, toda a gente tem um.
[LB a considerar a possibilidade de existir um fenómeno endémico na terra do SCQPUA.]
LB - Ai sim?
SCQPUA - Sim, até há quem tenha dois ou três...
[LB assaz consternada com a existência de uma população inteira com semelhante pouca sorte.]
SCQPUA - ... cães.


24/12/2018

Na senda de "Sou só eu?" # 18

Que tenho amigos/ conhecidos/ amigos de amigos/ amigos de conhecidos/ conhecidos de amigos/ conhecidos de conhecidos que proclamam aos sete ou oito ou nove ventos que "Detesto bolo-rei", a gente até já sabe o que é que vem a seguir, "Só gosto de bolo-rainha", e depois, sem sabermos como, há sempre alguém que nos oferece um bolo-rei, que "Este é especial, é o melhor que eu conheço, é da confeitaria beca-beca", e nós, "Ai, muito obrigada", já a imaginar:
1. A quem o passar a seguir - Tenho a certeza que há bolos-rei que circulam de casa em casa até ao ano novo, até alguém verificar que já estão demasiado secos para continuar o percurso;
2. O espaço que existe no congelador para um ringue daqueles;
3. O quão "bom" é comê-lo em torradas até aos Reis;
4. A capacidade que teremos, de impinjanço daquilo, em fatias, até ao ano novo;
5. A possibilidade de lhe arrancar as frutas todas e chamar-lhe "minha rainha" enquanto o comemos e engordamos mais um nico "para não se estragar".

VOTOS DE BOAS FESTAROLAS e festinhas boas para vós, minhas crianças loiras e cândidas! E que para o ano haja mais, com mais bolo-rei, cheio de frutas cristalizadas.


21/12/2018

A pessoa humana a fazer um esforço homérico para preservar o espírito

e vai dar com um farolim traseiro de seu boi partido, mais risco na chapa, mais amolgadela, sem que conste papel algum de assunção de culpas, com o contacto do respectivo. Sim, apesar de ter Rosinha, minha canoa, vai para dois anos, ainda mantenho meu boi, que perfez a linda idade de dezoito anos, mas que vai servindo às minhas crianças condutoras. 
Isto já foi ontem, mas ainda se me preserva o espanto, a revolta, o desalento, que eu sou um nico rancorosa nestas cenas da filha da putice, e levo algum tempo a digeri-las. 
Estimo que quem fez tamanha maldade a meu boi vá despender na farmácia tanto quanto eu no arranjo (ainda por cima, é proibido circular com um carro naquelas condições, só nos falta sermos multados pela m. que outros fizeram), mas que não seja em preservativos, cremes para a cútis ou chuchas: que seja mesmo em pomadas para a micose, a candidíase, a clamídia, a gonorreia, enfim e etecetera. 
(Eu não pensei isto, eu não disse isto, sequer o escrevi.)
Estimo que se fornique. Mas que não seja um momento prazeroso.
(É Natal, é Natal, tudo bate o pé...)
Fónix.

20/12/2018

Rebolar para fora

Vem, cruzando-se no meu caminho, a jovem mamã empurrando o carrinho do seu bebé, petiz para uns dez, onze meses, enfadado, irrequieto, fazendo menção de se libertar dos cintos que o prendem, correndo o não muito sério risco de pular dali e, quem sabe, continuar o passeio pelo passeio, em liberdade de movimentos, gatinhando, ou rebolando.
[Uma das minhas filhas diz-me, muitas vezes, que adorava poder sair das situações incómodas a rebolar, e é disso que me lembro quando olho para a criança enervada.]
(Dias há em que, se pudesse fazê-lo, passaria todo o tempo a rebolar.)
A mãe muito faladora, muito psicóloga, muito terapeuta da fala, muito (pre)ocupada em dialogar com o rebento. É importante falar com as crianças, é certo, mas mais importante ainda é respeitar os seus momentos de necessidade de menos palavras, que não são necessariamente de silêncio. 
- O que é que fizeste à tua girafa Sofia?
E era vê-la procurar pelas dobras do assento, no cesto atrás da criança, no chão. Sofia, a girafa de borracha/peluche/material aleatório desaparecera sem deixar rasto, sei lá eu - porque não sou criança - se por ser dotada de personalidade própria, nome de baptismo e atenções várias da mãe. 
- Suicidaste-a?
Suicidaste-a?
A criança debatia-se agora com a trave dianteira do carrinho, creio que com uma vontade ainda mais imperiosa de sair a rebolar, naturalmente não devido à incompreensível - até para mim - pergunta da mãe, sequer pelo desaparecimento de Sofia, a girafa personificada, mas pelo decurso de um tempo  excessivo, sentada, quieta, interlocutora passiva do monólogo materno. Já eu, tenho a certeza que rebolei pela rua afora, pensando para com os meus botões um conselho que ficou por dar, por tantos e tantos motivos: Não familiarizes os teus filhos com algo que queres manter longe deles


19/12/2018

LB, a radical

É isto a minha vida, uma tragicomédia constante, uma dualidade entre o sério e o cómico, um absurdo non sense que não dá para explicar por palavras, mas também não por gestos. 
Então, no dia em que me dirijo ao médico para que me pique derrames, e de lá saio toda picadinha dos paios e com a certeza de não voltar (quer dizer, se é para o médico estar de seringa em punho, a perguntrar-me-se onde é que há-de picar mais, é porque não há mais onde picar, portanto auto-dei-me alta), é precisamente o mesmo dia em que, após dança, resolvo tomar um banho na minha hiper-fashionerer-blogger-influencer banheira nova, e dá-se a coisa. 
Nota prévia: andava o povo do meu lar a queixar-se que derrapava na banheira, isto julgo que derivados ao facto de se ensaboarem tanto que o fundo preserva por ali resíduos escorregadios de champô, espuma, óleos e cremes vários, daí que me dei ao trabalho de adquirir um tapete anti-derrapante. Acontece que o dito, ou está preso pelas ventosas, ou não. Não estando, é assim uma espécie de armadilha, ou mina, que rebenta mal o ser vivo lá põe o pezito. Vai que pus o pé direito, para entrar com sorte, e o bendito tapete estava solto. Então, não sei se andei de patim, de skate, skimming, surf, windsurf, paddle surf (sem remo), ski, surfski, snowboard, ou outra radicaleira chique qualquer, ou se simplesmente derrapei em grande estilo, e fui amparar a queda com o meu joelho esquerdo, de encontro à trave que segura as guardas de vidro. Sei que fiquei algo maltratada, já não me chegavam as picas do outro. E nem teria muita noção do que me sucedera, não fora, passada uma semana sobre este evento, estar a conversar com uma amiga, que me desabafava uma daquelas situações chatas do dia-a-dia, que metem canalizadores e dinheiro mal pago por um arranjo que nunca acontece, quando, de repente, ela olha para o meu joelho e exclama assim, atónita: "Estou para aqui a contar a minha desgraça e tu não me contas que foste atropelada?".


17/12/2018

Dicas para a aquisição da prenda perfeita para o "amigo secreto"

Em primeiro lugar, tenho a declarar, antes que me esqueça, que faço sempre um enorme esforço de memória — coisa para me provocar copiosa sudação — de cada vez que quero proferir esta expressão, amigo secreto. Não sei porquê, simplesmente baralha-me uma sinapse qualquer, vem-me à cabeça tudo menos o modo como é comummente designado o tal amigo. Ora lhe chamo amigo anónimo, ora lhe chamo amigo escondido, ora lhe chamo amigo desconhecido, até já me ocorreu soldado desconhecido. É toda uma amálgama de nomenclaturas que até dói na alma.
Bom, mas não era a isto que eu vinha. Acabei de adquirir uma lembrança amiga lá para o secreto, e então tive estes flashes de boa conselheira, para ver se, de uma vez por todas, todos acertamos na mouche, que é como quem diz, no coração do amigo a quem vai calhar na rifa a nossa prendinha.
Então:
1. Em primeiro lugar, deve ser uma prendinha, pequenina, tanto no preço como no tamanho: para caber no bolso e, caso haja uma (in)decisão de última hora, de não haver troca, podermos tê-la escondida, desconhecida, secreta; E deve ser pouco onerosa, precisamente porque nos vai calhar a nós algo que foi oferta da revista que vimos à venda o mês passado, ou um dos tais Pyrexes dos quais eu já tenho a colecção quase toda, valha-me que tenho uma família numerosa;
2. Deve ser, em consequência de 1., uma coisa qualquer que também nos sirva a nós, para o caso de voltarmos para casa com ela;
3. Não deve ser tão pouco original como uma caixa de chocolates, uma vela, um saco de potpourris. Já ninguém aguenta. Mais vale um frasco de pickles, com uma etiqueta a dizer "gourmet", mesmo que escrita à mão, que sempre dá um ar de home and self and hand made;
4. Deve ser qualquer coisa tão insignificante, que quem recebe se esqueça, até à noite de 24, do que recebeu, e constitua, assim e por isso, uma verdadeira surpresa aquando da abertura dos pacotes [mau]. E não só não se lembrará do quê, mas também de quem ofereceu. Aquela típica situação de "De quem é isto? Tem aqui o meu nome, mas não sei quem deu esta...";
5. Deve, sobretudo, e em last, but not least, ser algo que quem recebe possa dar a qualquer pessoa daquelas que surgem à última da hora e sem aviso, numa de "passa a outro e não ao mesmo".

15/12/2018

Lei da protecção de chatos

Era dia de festa, aula especial com a participação de um professor de outra modalidade que não tem nada a ver com dança, um garoto de uma simpatia absoluta, que nos ia (e nos foi) ensinar uns passos mais ou menos dançados de boxe, aquela competição do ringue. A professora do costume e ele, ambos de barrete do Pai Natal, a sala decorada com estrelinhas brancas, uma ambiência especial de alegria e espírito natalício, nesta altura somos todos mais amigos, mais solidários, mais pacientes, mais humanos. À primeira música, trinta pessoas dançando embaladas ao mesmo ritmo, entra uma outra instrutora, pega na máquina de fazer filmes e começa a usá-la. Há uma única pessoa que pára de dançar, se lhe dirige e diz qualquer coisa ao ouvido, então pára também a música e são dois no palco e vinte e nove na sala estáticos. A dita senhora explica alto que "não podem filmar sem a minha autorização expressa e escrita", oh, senhora, toda a gente sabe isso, tu queres ver que esta também parte a máquina aos parentes na consoada, não querem lá ver que temos aqui uma rezingona que expõe a desinteressante vidinha toda no FB, mas depois acha-se ofendida por estar a ser filmada num ginásio que frequenta publicamente, que nada fará com a porra das imagens, a não ser uma divulgação interna ou uma exposição num site fechado, filme no qual ela, com toda a probabilidade, não aparecerá, mas que não, ai a mim ninguém me filma se eu não deixar. E a boa da titcha a dizer que então paravam as filmagens e não se falava mais nisso, mas era só o que faltava, meta lá a câmara ao alto e filme-nos lindas, leves e louras, cantarolou a inconveniente do costume, a rabujenta saiu e nós continuámos sem ela, que nem lugar vago deixou, quanto mais memória, e fomos filmadas no melhor da festa, que dos desmancha-prazeres desta vida não reza a História, fazendo tábua rasa da lei da protecção de dados chatos. 


14/12/2018

Cada vez mais convencida de que David Lynch escreveu o guião da minha vida, e não há como sair deste registo

Não sei se sou eu que sou uma nervótica, ou se realmente tudo vem ter comigo, mas deu-se que fui à veterinária com a minha gata, mais uma consulta pós-operatória, oito dias após a segunda mastectomia em dois meses e meio, e ia nervosa. Ando sempre um bocado, na verdade, ora por isto, ora por aquilo, mas sou pessoa para (achar que estou a) disfarçar extremamente bem. Ainda outro dia o médico do coração ia tendo um enfarte quando me mediu a tensão e me tomou o pulso.
Há três dias, apanhei uma seca tremenda de uma hora e meia - haveis lido bem - de espera lá no médico dos bichos, porque cheguei e tínhamos dois cães à nossa frente e aquilo funciona por ordem de chegada. A vet estava na sala de cirurgia a operar um iguana, o que ainda demorou meia-hora até começar a atender os fregueses expectantes, de entre os quais minha boneca e eu. Entretanto, apareceu uma figura muito obesa e lenta de gesto e modo, que disse que ia buscar o Jaime, vai a funcionária e pergunta: "Ah, o camaleão?", e ela corrigiu, em voz roufenha e ameaçadora (eu, pelo menos, assim a senti), "Não, é um dragão", e não é que me vieram várias imagens mentais à mente, nomeadamente a de uma princesa presa na torre de um castelo, ao som do gingle do Dragon Ball (e depois o David Lynch é que é o transtornado)?
Hoje até fomos de manhã, para atalhar. Quando chegámos, estava só um cão à nossa frente, e fomos mandadas esperar num gabinete, sei lá porquê. Até achei bem, sempre estávamos isoladas e podíamos dialogar em paz, sem que alguém nos julgasse esquizofrénicas. Só que a espera durou quinze minutos, e, perdida a paciência para esperar mais um que fosse, vou-me à funcionária e questiono se aquilo ainda está muito demorado, porém ela responde-me o óbvio, que eu já sabia, que "a doutora está em consulta com o cão". Então, pus-me a prestar atenção à conversa da consulta, e era sobre bolçar, vomitar na cama por causa da tosse, mudar lençóis a meio da noite e cansaço diurno, e eu vá que a memória não me falha para nada dessas coisas e compreendi que falavam dos filhos, a dona do cão e a vet. Pode dizer-se que estava passada da marmita quando, ao fim de meia-hora de espera e, pelo menos, um quarto de hora de tereréu sobre crianças que se vomitam, a última que referi entrou no gabinete e, que grande lata, me pediu desculpas. Respondi, agastada, que fora tempo a mais de conversa pediátrica, e ela diz-me assim para mim: "Sabe, às vezes as pessoas precisam de desabafar". Mas liquidei-a com um cáustico "Pois olhe, eu não. Quando preciso de desabafar, não vou ao veterinário". Ela há-de ter percebido que eu estava nervosa e não me pôs a deu trela. Tratou da minha bicha maravilhosamente, e eu saí mais tranquila. 
(Teve que drenar líquido de um papo que formou entretanto - duas seringas cheias - e voltou a tomar anti-inflamatório. Não tirou nenhum ponto - que são alguns quinze - e prolongou o antibiótico de dez para quinze dias.) (Não são excelentes notícias, mas também não são más.)
Recebeu um barretinho de Pai Natal de prenda, pus-lho para a pic, mas é o que se vê: minha Mia odeia merdas.) (Eu adoro-a, mesmo - e sobretudo - assim.)


13/12/2018

Daquele programa, que, repito, a-do-ro # 11

Foi no episódio de ontem que se me alevantaram inúmeras dúvidas. Tudo por causa da melena da Isabel. 
Então, foi assim, por ordem cronológica, que é a que melhor entendo para contar uma história:

Isabel dá-nos conta de que vai praticar jiu-jitsu.
Seu cabelo está mais curto do que quando iniciou o espectáculo.

Isabel pratica jiu-jitsu, com seu cabelo curto.

Isabel vai ao lar com seu par, para ele lhe mostrar uns álbuns
da sua infância. Claramente, o cabelo cresceu-lhe pelo caminho.

Isabel vê os álbuns com Cláudio, e seu cabelo mantém-se longo.


Logo de seguida, Isabel vai lanchar ao lar dos cotas.
Já leva seu cabelito cortadito.

Cá está ela, a lanchar.

Pronto, e aqui de novo, com a mesma farpela de antes do jiu-jitsu,
falando sobre o lanche, e confirmando seu cabelo mais curto.

Ora, a mim, a quem não escapa um, tipo Dum-Dum, estas coisas intrigam-me. Não encontro explicação para o fenómeno capilar da Isabel, a não ser uma destas cinco possibilidades: 
1. A par com uma péssima legendagem, o programa sofre de um mau alinhamento;
2. Isabel coloca e retira extensões/perucas conforme a ocasião;
3. Isabel é dotada de um super-poder que se lhe revela através do crescimento capilar, consoante a circunstância/humor/clima;
4. Isabel levou tanto tempo a chegar a casa para ver os álbuns de Cláudio, que o cabelo teve tempo para crescer até àquele ponto;
5. Isabel, afinal, são duas, e entra em cena ora uma, ora outra.

Concluo, embora reticente, que talvez este tipo de programas não seja feito para pessoas minimamente atentas, que é o que eu devo ser. Mas, por outro lado, sou crente: pretendo contactar Isabel e questioná-la acerca do truque. A mim, dava-me um jeito jeitoso poder encolher e esticar a cabeleira conforme os dias. Não só tenho alturas em que mo apetecia mais curto, como, logo no dia seguinte, ou no próprio à tarde, dava um dente da frente para o ter mais comprido um centímetro. Até para lavar, secar e pintar, o óptimo era tê-lo à escovinha, e logo depois ele aparecer qual Rapunzel. Quando deslindar este mistério, venho aqui denunciar tudo.

Andorinha

Conhecemo-nos a dançar e a rir dos nossos próprios enganos. Agora tenho uma amiga nova, daquelas que sei que vieram para ficar, de tão parecidas que somos, apesar de todas as nossas diferenças. Manda-me mensagens carregadas de erros e sem qualquer pontuação - nem mesmo pontos de interrogação nas perguntas -, o que, noutra pessoa, me provocaria o levantar de sobrancelhas e nariz, nela é só mais uma extensão de tanta genuinidade e alegria e vida interior. Fala desalmadamente, troca todos os tempos verbais, não entende expressões em Inglês e baralha palavras parecidas, mas nela é tudo autêntico, sem pretensões, sem pudores nem vergonha alguma. Em contrapartida, não faz nem diz nada para se enaltecer, é simplesmente simples. Quando estamos juntas, também eu sou mais eu, liberta que fico de manias, convenções e preconceitos, capaz de errar sem medo, que é a suprema tranquilidade a que alguém muito citadino pode aspirar. Ambas nascemos e fomos criadas em Lisboa, porém em pólos opostos da cidade, ela num bairro de intervenção prioritária, o que quer que isso signifique, eu nas Avenidas Novas. Disse-me há dias, no meio de uma gargalhada cheia de inocência, sem orgulho nem desonra, que a avó era peixeira, e isso pareceu-me delicioso. 
Num jantar natalício onde estivemos, combinado que fora levarmos prenda do "amigo secreto", vi-a, no momento da troca por sorteio, agarrada a um pequeno embrulho, relutante em colocá-lo no meio da mesa. Disse-me, a voz ondulada por um timbre infantil: "Eu quero que a minha te saia a ti". Sorteadas, não saiu, e pude então verificar que se tratava de uma andorinha de louça negra, que ela, disfarçando o desconsolo, explicou a quem a recebeu: "a andorinha é o símbolo da amizade". 
Dias depois, apresentou-me novo embrulho, do qual saiu um par de pequenos brincos de fantasia, porque sabe que eu não uso brincos grandes. Não sabe, porém, que eu sou tão alérgica ao níquel, que no momento em que os colocasse me rebentaria a cabeça, metaforicamente falando. Talvez outra pessoa lho dissesse no momento, mas a minha compreensão de amizade nunca mo permitiria: agradeci, guardei "para pôr na árvore", e vou usá-los depois do Natal, nem que seja pelo tempo que estejamos juntas num qualquer dia, aguentando as comichões e depois as consequências.
Comprei para lhe oferecer no Natal uma andorinha de louça negra. 

12/12/2018

Daquele programa, que, repito, a-do-ro # 10

Conjugação do verbo ESTAR no presente do indicativo:
Eu tou
Tu tás
Ele tá
Nós tamos
Vós tais
Eles tão


10/12/2018

Daquele programa, que, repito, a-do-ro # 9

Ainda me falta falar sobre Lídia e Francisco, aquele par de concorrentes que se pôs à fresca logo no início do concurso. Não é que tenham alguma relevância na trama, mas, lá está, redundando um pouco, tramei-me eu no dia em que me comprometi a vir para aqui falar de todos. E todos é todos, não há cá excepções para ninguém.
Vamos lá a ver: não me lembro grande coisa destes dois. Portanto, vai o que sobrou, e já fica de bom tamanho. Sei que não se davam bem, o que vieram a confirmar logo que puderam. Mas, comparativamente àquele outro par de jarras que eram a Sónia e o João, estes dois podiam ter rendido mais algum peixe, e só não porque a Lídia era uma estalactite: aquele pau de gelo com uma farpa pontiagudinha na ponta, que é um miminho quando se espeta. (Vá, não falo por experiência, mas imagino.) (Também nunca levei com uma Lídia na vida, por isso é fácil falar.)

Francisco, o nós-pimba
O Francisco é aquela pessoa que recebeu educação. Percebe-se que tem uma origem modesta, mas já há ali dinheiro (num sentido muito amplo do termo) e alguma preocupação em alinhar-se num patamar acima do dos pais. Tem umas noções meio rudimentares de saber estar, de vez em quando foge-lhe o pé para a tamanca, mas vai no bom caminho e é uma pessoa bem intencionada.
Carácter: Talvez o maior "defeito" do Francisco seja a frontalidade, que, naquele caso, se confunde com falta de chá. A verdade é que ele nunca se apresentou como um pretenso cavalheiro, what you see is what you get. Fez umas tentativas de agradar à gélida Lídia, que nunca descongelou, e fez muito bem em despachá-la rapidamente, antes que aquilo se pegasse e ela o congelasse também. Let it go.
Físico: Eu acho o Francisco bonito. Tem uma cara bem talhada, feições regulares, um corpo proporcionado. Não o acho atraente, porque estou sempre a vê-lo desatar a entoar uma melodia daquelas, tipo a das tetas da cabritinha, mas acho que ele se insere nos parâmetros de uma larga fatia da população deste país, portanto não creio que tenha dificuldades em arranjar par para uma boa lambada. Ou kizombada.

Lídia, a estalactite
Esta Lídia conseguiu ter uma prestação não muito diferente da da Sónia, a má. Em vez de curar a depressão de que claramente sofre (lágrimas vezes a mais, por motivo "nenhum"), foi meter-se num buraco daquele tamanho, para esgatanhar as próprias feridas e, de caminho, ferir alguém também. Teve pouca sorte, levou pela frente com um descontraído da vida, que, assim que viu que aquilo ia dar paro o torto para o lado dele, ó-ai-ó-Lídia-ala-que-se-faz-tarde. 
Carácter: Fiquei sem perceber. Teve um marido, a quem muito amou, que foi o pai do filho. Ele adoeceu, tornou-se deficiente, ela não aguentou e deixou-o. De cada vez que falou dele, chorou. Se calhar, é daquelas pessoas que "nasceram para serem felizes" (como se o resto do povo não), mas no sentido de que "nasceram para se darem bem, sem chatices nem tristezas" (idem). Então, como regra geral estes "planos de vida", que dependem de tantos factores aleatórios, como o da sorte, saem furados, a boa (má) da Lídia está triste, e quer porque quer fazer toda a gente infeliz à sua volta. Ou então, é só mal formada e levou o chuto merecido. Azar. Pode ter sido o primeiro (?) de vários.
Físico: Olhos belíssimos, azuis e rasgados. E mais nada. Magra, seca, fria, frígida. Se eu fosse homem, preferia uma gordinha de olhos redondos e bem disposta àquele pau de gelo sempre a soprar fel.

09/12/2018

Habemus saia amarela polipela

Lembrais-vos da demanda? Eu lembro-me.
Pois, terminou.

Houve que colocar um smiley, não por pudor, mas porque
estava verdadeiramente com cara de parva, (só) naquele momento.
E não havia vagar para tirar outra.
Na verdade, mesmo que houvesse,
a cara de parva não se me descolava, pelo que, enfim.
(E aquele cabo? Não sou eu a segurar um selfiestick, sou eu a regar o meu jardim.)

Bem sei que não tem o fecho nem exactamente o feitio que eu queria. Mas isso são pormenores de somenos, dada a urgência da coisa e pela coisa.
Bem sei igualmente que não se chama amarelo à cor dela, e sim mostarda. Mas vamos que a mostarda é amarela. Também ninguém se lembrou de lhe chamar banana madura, certo? Nem limão podre. Nem tártaro dentário. Então, mostarda e amarelo são sinónimos e prontos.
Assim sendo, considero que a guerra saia amarela em polipele versus — ou adversus — LB é dada como terminada, com retumbante vitória para esta última: moi.
Não invalida a minha firme convicção de que, para o ano, as montras chiques e choques estarão cheias de saias de polipele em amarelo-amarelo. Sentar-me-ei com a minha vestida, a assistir ao filme que antevi em antestreia. 
(Pelo menos, não tive que dar um rim por ela.) (Ainda tenho os dois.)

07/12/2018

Velhotinha

Foi operada pela segunda vez em menos de três meses, a minha Mia. Assim como uma mulher tem duas mamas, as gatas têm duas enfiadas de maminhas, e, para cada uma, é necessária uma cirurgia diferente. E, assim como não há duas gravidezes iguais, ainda que na mesma mulher, parece que também não há dois pós-operatórios semelhantes no mesmo animal. 
Ou será do abat-jour?
Foi quase uma imposição, em jeito de pedido, que não lhe pusessem o chapéu sem copa. Da outra vez, ela ia morrendo de stress - sob a forma de apatia - enquanto teve aquilo amarrado ao pescoço. Pensámos que era da anestesia, pensámos que eram dores, pensámos que era tudo junto, mas, afinal, era só o cone que a estava a angustiar/revoltar/contrariar. 
Veio para casa sem o plástico na cabeça, só com o seu vestidinho fashionerer. Embora chateada com a vida - olhos em alvo, não-me-toques, deslarga-me-pá -, tranquila, sem rosnanços nem miaus doloridos. Foi operada ontem de manhã, teve alta ao fim da tarde, e hoje já foi à areia e já petiscou gourmet. (Só quando lhe fazem maldades é que permitem comidas chiques, lá no vet. De resto, só aquela ração que cheira a escorbuto.)
A vet lembra-me constantemente que ela "é velhotinha". Não diz "velhinha", não diz "velhota", não diz "velha". É velhotinha.
Eu vejo-a sempre com três semanas, como da primeira vez que lhe peguei. Ainda assim, perguntei, só para confirmar aquilo cuja resposta me deixou mais ou menos na mesma: "Quanto tempo ainda a teremos?".
"Há gatas que duram seis meses, há outras que duram muitos anos."
Eu quero a segunda, se faz favor.


05/12/2018

Hã? Explica lá essa matemática de m., que eu julgo que não entendi

Loja da Disney. Vou pagar algo como 12,50 euros, ainda lhes acrescento 2 por causa de uma embalagem especial de corrida, mas a verdade é que já entrei em conflito mental comigo mesma, porque são 11 da madrugada e já me sujeitei à tortura de ter entrado em três lojas, onde esperei horrores (Nespresso: 12 minutos, apesar de só ter uma pessoa à frente, mas é que eu sofro do síndrome de não estar grávida, não ir a empurrar um carrinho, não ir a locomover-me com recurso a material ortopédico, não ser idosa, e também do transtorno de apanhar sempre à minha frente aquela pessoa que tirou o dia para ficar na loja dos cafés a discutir o melhor método para fazer leite cremoso através do espumador; Calzedonia: A saga dos collants e eu, ai, por favor, tragam-me o Verão de volta!; Parfois: o tempo desesperante que o terminal de multibanco levou a perceber que era para funcionar tipo já), e queria era despachar-me dali. Então vai ela e diz-me assim para mim: 
- A conta da senhora soma quase 15 euros, que é a quantia necessária para usufruir da oferta de um destes peluches.
E mostra-me o Mickey e aquela namorada dele, a Minnie. Ao lado, uma placa a dizer 10,49 euros. [Mas alguém ainda cai nesta cena do preço psicológico?] Horríveis. De peluche, já disse?
Vamos supor que eu não estava interessada nos bonecos, mas, ainda assim, queria perceber se me davam um, por mais 50 cêntimos, nem que fosse para dar aos pobrezinhos, que eu sou este poço. 
- Mas então, se a minha conta atingir os 15 euros, levo um desses peluches sem pagar nada?
A parva riu-se.
- Não, não...
Parva.
- A senhora paga a sua conta e mais os 10,49 do preço dos peluches.
Olha, parece que o último a rir é o que ri melhor, lá diz o povaréu. Então, gargalhei, acho que de nervos. Conclusão: eu tinha que gastar x para atingir o patamar dos privilegiados que tinham acesso a poder gastar y, com vista a poder levar para casa aquele exclusivo dos dois monos ratos.
- Deve estar a gozar, mas que raio de oferta é essa? Ainda por cima, esses dois peluches são...
E completei com um gesto das duas mãos, dizendo adeus, que é como quem diz "vá lá para a genitália, se faz favor".

04/12/2018

A ponte é uma passagem; a passadeira é uma ponte

Quando as vi, estavam em extremos opostos da estrada, e, a uni-las - ou a separá-las -, uma passadeira. Harmoniosos com as barras dela, os cabelos brancos de ambas, os de uma levemente acinzentados ainda, os da outra de uma alvura cristalina. Separava-as ainda qualquer coisa como vinte anos, uma pelos setenta, a outra talvez noventa. Trazia esta uma bengala, e preparava-se para atravessar assim que o passeio lhe fugiu dos pés, em paralelo um pouco distante da passadeira... onde a outra estacionara o carro, quatro rodas em cima das riscas brancas. Quase num grito, a condutora avisou: "Venha por aqui!", apontando a passadeira à mais velha, cuja bengala, óculos de grossas lentes e alvo cabelinho não permitiram um desvio, que fosse de dois centímetros, ao percurso que já delineara fora das linhas. A menos idosa avançou um pouco, abriu os braços, exclamou "Tiazinha!", e foi quando se abraçaram e encheram de pequenos beijinhos, no meio da passadeira que, entretanto, a tia havia alcançado pela diagonal, indiferentes à possibilidade de passar um carro, ou dois, ou três. 

03/12/2018

Da minha janela vejo a minha mãe


Tenho diante de mim uma árvore vermelha, que me acompanha e me sorri enquanto trabalho, toda ela vestígios da mãe que é minha. Lembra-me em tudo um vestido vermelho que lhe via há muitos anos, e a enchia de festa interior, que a fazia flutuante e a punha a dançar e a rir, como se a única alegria da sua existência pudesse advir daquele vestido. Traz-me os melhores dias da mãe que será sempre minha, os dias da felicidade, os últimos da infância. A árvore flutua e dança e quase a vejo rir para mim. Imagino a alegria infantil da minha mãe se a visse, aquele êxtase quase religioso pelas dádivas da Natureza, também ela mãe, o ar suspenso numa aflição abençoada pela graça gratuita ali vivente.
Vem-me à memória que me contava dos dias em que, ao passear-me no carrinho, eu ria para tudo. Dava como exemplo as folhas das árvores a mexer ao vento, e os meus pequenos braços agitando-se de contentamento, ao ritmo dos galhos e das folhas, numa dança serena entre duas inocências semelhantes. Assim está a árvore vermelha agora, acenando-me os braços acolhedores, vestida com o vestido vermelho da minha mãe.

02/12/2018

Daquele programa, que, repito, a-do-ro # 8

Ainda não é hoje que me apetece falar sobre Francisco e aquela Etelvina com que aparentemente se casou. Ah, é Lídia, ó-Lídia-anda-jantari? Então está bem, mais razão me dão para os adiar para as calendas.
Então, passemos àquele outro par que surgiu em últimos, e que, quem sabe porque o programa já havia esgotado a verba com os outros maganos, que se apanharam na Tailândia e nas Caraíbas e acharam tudo um frete, pregou com estes no Douro - que é lindo, been there - e já gozaram. Ou não. 
Tenho um reparo a fazer ao programa quando aparecem cenas entre os dois, designadamente quando estão em convívio com amigos/familiares dele: então e as legendas, pá? Quer dizer, tão pródigos a transcrever tudo o que a Eliana sopra entre dentes, e o Daniel ventila entre lábios [nem me quero lembrar, senão ainda perco o ensejo de continuar este post], e, para o sotaque da Madeira, não vai nada? Há momentos em que só se percebem os ditongos, e, mesmo esses...

Cláudio, o querido
O Cláudio é querido. Quis encontrar o amor, o ilhéu pareceu-lhe demasiado estreito e não se inibiu de se meter num avião para voar na direcção do nobre sentimento. Que maior prova de amor pode uma mulher pedir a um homem, hã? Sobretudo uma mulher que, ao que tudo indica, se defeca só de andar no teleférico? Na verdade, o único defeito que está à vista no Cláudio é aquela mãe. [Ainda vou dedicar um post às mamãs do programa, começando na do Zé, passando pela do Hugo e aterrando nesta bruxa.] 
Carácter: Eu vejo o Cláudio sempre a rir e a sorrir. Aquele grande querido conhece a adversidade de ter que fazer diálise três vezes por dia, e, ainda assim, estar sempre bem disposto. [Acho que fui enfermeira noutra encarnação, já no liceu não podia ver ninguém de muletas ou de braço ao peito. O gesso derretia-me o coração.] Está tão empenhado na relação com a Isabel, tão encantado com a mera possibilidade de ser feliz, que não se aborrece, não se altera, não entristece com nada, mesmo quando ela tem aqueles amokes de gaja. Gosto dele. Só não me caso com ele porque não quero. 
Físico: Não é nada de extraordinário, mas é bonito. Sorri tanto, que é bonito. É tão simpático, que é bonito. Pronto, tem lá aquele cabelo, com aquela ilha no topo, que pode ser alguma coisa representativa [embora ainda não tenha descoberto o Porto Santo no penteado, para completar o arquipélago]. É bonito, enfim.

Isabel, a desempregada
Não é por nada, mas é o programa que distingue assim a Isabel, não sou eu. Como se "desempregada" fosse uma profissão, e não um estado (idealmente passageiro) dela. O contrário de desempregada é... empregada, que é o que Isabel será no dia em que deixar de estar desempregada. Pode ser que, nesse dia, mudem a legenda. Ou optem por "reformada", que é outra profissão, como se sabe.
Carácter: A Isabel é muito bem educada, bem falante, bem saber-estar. E chata. Irrita-se (palavras dela) com o querido porque ele a acorda cedo (para aí às 10 da madrugada) (mandriona), irrita-se porque ele a leva a andar no teleférico (como se ele mandasse nisso, e não o programa), irrita-se porque ele não lhe dá apoio, ou não respeita essas horas em que "só quer ficar quieta no seu canto e respirar fundo". É de mim, ou o mundo está subitamente a ser povoado por mulheredo que só o que quer é respirar e concentrar-se e alinhar chakras? É assim que vão repovoar a Terra? 
Físico: A Isabel é belíssima. Tem uns olhos lindos, um cabelo que é um espectáculo, um corpo com menos dez ou quinze anos do que a idade biológica dela. Mas é tão apreensiva, tão fundamentalista (a cena da comida saudável, que chatura...), tão preciso-de-paz, que eu não me casava com ela. Porque não quero.