07/08/2018

O avô cantigas

Estava eu muito bem sentada na sala de espera do dentista [esse, o dos olhos bonitos], quando surgiu, vindo das trevas de uma extracção [designação que os dentistas dão àquela violência que cometem sobre as nossas bocas - ou dentro delas? - quando nos arrancam uma dentuça], um homem agarrado a uma almofada de gelo, que comprimia contra a bochecha direita. Está calor, e isso justifica e despenaliza muitos atrevimentos relacionados com a indumentária - eu própria com um vestido não muito próprio -, e, quem sabe, até com a conduta de cada qual. Encostou-se ao balcão com o intuito de pagar a consulta, todo ele lamúrias como um rapazinho a quem acabassem de tirar um dente de leite, sapatos à índio, calções de ganga e pólo azul escuro, tudo encimado por uma cabeleira branca destoante da jovialidade no fato, da infantilidade no trato. Como se não surtisse efeito a tentativa de encher de penas a funcionária, absurdamente bonita, mudou a agulha do disco que lhe tocava, para o jovial discurso, sorrisos exagerados e gargalhadas a despropósito, enquanto ela emitia a factura e lhe dizia a mesma graça que diz a todos aqueles que saem da cadeira do arranca, hoje sai daqui mais leve. Ainda assim, insatisfeito com a falta de reacção proporcional à qualidade da sua abordagem, o homem virou novamente a agulha, envelheceu trinta anos, pôs-se com os cinquenta e muitos que se lhe espelhavam - apesar da almofada de gelo, apesar dos calções -, e estendeu o telemóvel à senhora, exibindo uma fotografia de uma qualquer criança, olhe aqui o meu neto, subitamente transformado num orgulhoso avozinho, babado para não ser baboso, obrigando a dona de belíssimos olhos verdes a responder a seguinte incongruência:
- Ai, mas que olhos tão engraçados.

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