29/07/2018

Nunca voltes a uma praia onde já armaste, pelo menos, três barrracas

Logo à chegada, a da recepção do hotel diz-nos de chofre que não aceita, como documento identificativo, a carta de condução de uma das minhas crianças. Já estou a rodar a baiana e os olhos, explicando-lhe que qualquer documento que contenha a fotografia e o nome completo de um cidadão, serve como comprovativo da sua existência, só que ela arruma-me com o argumento de que são ordens do SEF, e é então que me apercebo de que não estamos a falar a mesma língua e ou ela julga que está a entabular conversação com um jerico. Ou um jumento. (Existe uma vaga possibilidade de aqui a humana dar ares de estrangeira. Marrocos, Tânger, por aí.)
Depois vamos jantar a um local óptimo, quanto mais não seja porque é consensual: uma pizaria. O espaço tem cinquenta por cento das mesas ocupadas, mas já não tem menus para todas as mesas, logo, logicamente, é-nos pedido que aguardemos por uma mísera lista, para os cinco que estamos à mesa. Aguardamos, assim como aguardamos uns pelos outros, assim como aguardamos que nos venham registar os pedidos, assim como aguardamos pela comida propriamente dita. Apercebo-me então que a mesa ao lado, composta por três pessoas que chegaram depois de nós, está servida, já todos mastigam, só lhes falta mesmo o arroto-mestre. Chamo um dos que cirandam pela sala, afirmo apenas que quero perceber a lógica deles, e, num passe de mágica que ainda leva mais cinco minutos a operar, põem-me o repasto debaixo do nariz.
Dois dias depois, chega o meu rapaz, necessário fazer novo check-in, vai a mesma alimária do cartão de cidadão e diz que ele não pode entrar no hotel porque ainda é menor. Parece que se trata de um “adults only”, conceito muito hilariante se aplicado a um rapaz com dezassete anos e onze meses, se nos abstrairmos do facto de a estadia estar paga desde o primeiro dia (metade em Fevereiro, ainda ele era muito menor!), e de as datas de nascimento dos hóspedes nunca serem questionadas até àquele momento. [Vá que não me falou no SEF outra vez, quiçá por já conhecer as (minhas) ventas da total rejeição.] Respondi-lhe apenas que muito bem, que se ele não entrava, então saíamos todos, e devolviam-nos o valor da estadia desde o início. E foi assim que aceitaram a entrada da minha criança num hotel para adultos only. A esta senhora atribuí secretamente a mais alta categoria, com louvor e distinção, só-a-mim-não-me-saem-empregos-destes.
Mas ele há coisas boas, no meio disto tudo: a praia é excelente e o vento suporta-se. E também soube da existência de um restaurante vegetariano que pretendo visitar, nas redondezas, e que responde pelo nome de “Vegetarianus”, valha-lhe o abençoado (em casos como este) Acordo Ortográfico, que era o circunflexo não ter caído e tínhamos ali um bonito serviço, não sei se literalmente.
(Vá, tudo a googlar onde é que eu me encontro a banhos. Pessoas, eu sou uma agulha num palheiro. Uma gota no oceano.)

27/07/2018

Nem para assassina dou

Por acaso, outro dia estava um bocado aparvalhada, ainda em arrumações pós-mudança-pós-obras, e quis ocupar o meu tempo, a minha cabeça e as minhas mãos, não necessariamente por esta ordem. Ainda tinha um mega-saco com a maior parte da minha roupa arrecadado na arrecadação, que fica a três pisos abaixo de meu lar, isto tanto de elevador como pelas escadas, conforme dê no ginete a quem desce e depois sobe, ou ao contrário. É certo que poderia ter esperado por ajuda, que a teria minutos ou horas mais tarde, só que me dei à demanda de carregar o sacão sozinha. Contudo, eu explico: diz que um teimoso nunca teima sozinho, porém a pessoa humana leva o ditado muito além do impensável: de onde em onde baixa-lhe a teimosa que a habita a espaços, todavia amiúde (a mesma que lhe dará direito a uma medalha de papelão quando for feita a contabilidade final das boas acções e dos esforços a que poupou os seus demais), e são momentos profundamente solitários aqueles que protagoniza em consequência. Portanto, decidi transportar toda a traparia que continha o dito saco, coisa para caberem duas pessoas adultas, nem sequer enroscadas, lá dentro. 
Lá chegada, apercebi-me de que o monstro pesava um mínimo de cinquenta quilos. Ó pá, se não eram cinquenta, eram, pelo menos, sessenta. Sim, fora o que já tinha em casa, fora sobretudos e sapataria, sei agora que possuo dezenas de quilos de vestimentas. Agarrei o boi pelos cornos, que é como quem diz, segurei-o pelas duas alças, e procurei içá-lo para o carrinho de supermercado que o condomínio possui para estes efeitos, mas é o eras, nem o icei, nem o carrinho ficou quieto à espera, pois que desandava de cada vez que lhe aproximava o colosso, assim como fazem os ímanes de pólos semelhantes. Ainda encostei a viatura a uma parede, daqui não sais e alombas com isto, quer queiras, quer não, mas é que não queria mesmo, e desandou de ladecos nesta que foi a minha última tentativa de soerguer a coisa para cima do coiso. Entretanto, encontrava-me esfalfada e sofrendo de sudação copiosa, mas desisti? Não. Fiz-lhe nova pega de caras e transportei-o até ao hall dos elevadores, que fica a cerca de sei lá, pareceram-me a mim quilómetros, mas talvez uns seis metros. Depois de o pousar no chão, tirei duas breves conclusões: 
1. Não vou conseguir levá-lo ao colinho até ao elevador, e depois de lá até ao meu quarto;
2. Se algum dia matasse alguém e tivesse que me desfazer do corpo, deslargava-o no meio da praça e ia pedir ajuda à polícia, que eu não tenho forças para isto.
E foi assim que o levei de arrasto até junto de meu roupeiro, onde morri.


26/07/2018

Com este tom de tez, ainda assim tenho momentinhos louros muito meus

Exausta de ouvir a pergunta "Tens MB Way?", e de, à negativa, receber em contra-resposta a incredulidade e a estupefacção (só comparáveis à reacção de uma amiga de amigos, quando um dia lhe disse que não tinha carta de condução - porque, efectivamente, na altura, ainda não a tinha arrancado -, e ela praticamente assobiou para o ar, mas quando, logo após, lhe disse que não tinha microondas, a mulher se ia lançando pela janela, tamanho o assombro que lhe provoquei), olhem, instalei essa coisa em Ai-fostes. Pelo menos, nas vezes seguintes em que me questionassem acerca da detenção do tal aplicativo que faz maravilhas e malabarismos bancários através do telefone, não seria vítima do mesmo bullying ao me chamarem infoexcluída, ou, se o quisesse evitar, não teria que omitir a verdade, faltando-lhe ou distorcendo-a, de mais a mais porque não saberia manter a tanga, que, conforme sabeis, é justa e curta, pelo que mais depressa se apanha quem a usa do que a um coxo.
O problema adveio a posteriori, no momento em que finalmente pude responder sem mentir com todos os dentes que tenho na boca - actualmente, e espero que para toda a eternidade, vinte e sete, pois que me foi surripiado um recentemente -, e levei como, se não resposta, pelo menos esclarecimento, o seguinte: "Sabes que podes levantar dinheiro no multibanco através do MB Way?". 


Foi mais a imagem mental, sabem? 
É que visionei mesmo as notinhas a saírem Ai-fostes afora, regurgitadas, paridas, irrompidas.
Foi um breve momentinho louro, já passou, Chiu.

24/07/2018

Tranca nova, hã?

Estava eu muito descansada da minha vida a viver noutro lar que não o meu, derivados da obra, quando venho a tomar conhecimento de que o meu vizinho de baixo me havia estoirado com a fechadura da porta da entrada. O senhor é surdo, dependente de aparelho auditivo, surdo ao ponto de eu poder dar uns bons brados em resposta às minhas vozes, que o homem não se nem me chateia. No entanto, não sei se por isso, ou só por aquilo, já por duas ou três vezes que se engana na porta e bate na minha - na verdade, dá-lhe grandes tareias, pois, assim como não ouve, entende que as outras pessoas... -, ou então mete a chave na fechadura e tenta assaltar-me (pois que outra razão pode assistir-lhe, para querer entrar à força na casa de outrem?).
Desta vez, a tentativa foi mais longe, ou mais fundo, e o vizinho meteu a chave dele na fechadura que é a minha, com a diferença porém de que já não conseguiu retirá-la, ou seja, seria um crime sob a forma tentada, que poderia ser perfeito, não fora ter-se demonstrado que esse conceito não existe: o vizinho teve mesmo que denunciar-se, se é que queria reaver a chave lá do lar dele.
Chamada aquela empresa de chaves que detém na sua designação dois nomes de localidades, assim veio o necessário arrombamento tecnico-científico da fechadura, como também o orçamento para uma nova. Porém, e dado que até as fechaduras progrediram em vinte e cinco anos de trancas, as pessoas quiseram uma xpto, daquelas à prova de melgas - em sentidos estrito e lato - e tudo. 
Desconheço se o vizinho volta a enganar-se na porta, mas certinho é que vai pensar duas ou três vezes antes de lhe meter a chave, pois desta vez, só para não ser a boazinha do costume, pu-lo a pagar o que estragou, que é como manda a lei e o ditado popular.
E viveremos bem trancafiados para sempre.

23/07/2018

Santa Ana, cabeleireira # 2

E eis que é chegada a hora em que Santa Ana, a minha responsável capilar, comete, se não um pecado, pelo menos um engano, embora desculpável, sobre a minha cabeleira.
Pois então que, farta de andar em modo espanador-de-penas, que esta estação do ano, seja lá ela qual for, não favorece nem ajuda, desloquei-me ao local de trabalho de Santa e disse "Corte", parecia mesmo um realizador de cinema, mas em chique. No final da operação, ainda eu no recobro, e talvez por isso, não me apercebi da assimetria em que ficara a minha cabeça, ou seja, em números redondos, do facto de um dos lados ter ficado mais comprido do que o outro. 
(Logo eu, que só de entrar na Desigual*, nomeadamente na do Freeport - que é redonda!, será por isso? - fico imediatamente enjoada, quanto mais se usasse aquelas peças errr... desiguais? É que aquilo tudo me provoca o TOC da arrumação, a gana de pegar numa tesoura e acertar as pontas mais compridas às peças. Ah, e é tudo, basicamente, horrível.)
E agora ela foi de férias. 
Não, eu não vou lá ao salão reclamar do trabalho da minha Santa pelas costas dela. Para além de eu ser muito vertical, não esqueceis que ela tem a faca e o queijo na mão, designadamente a faca, e bastante perto da minha cabeça. 
As soluções que se me apresentam são outras:
1. Passo a andar com a cabeça de ladecos, para não se notar a diferença;
2. Uso um enrolador de cabelos só do lado maior, para compensar;
3. Ponho um estimulante de crescimento capilar só no lado mais curto;
4. Muno-me da tesoura especial corte de cabelos que possuo, e acerto eu, correndo o risco de acertar demais, depois ter que compensar do outro lado, e assim sucessiva e dramaticamente até ao apocalipse. Ou até ao eclipse, ou lá o que é. À elipse;
5. Defeco no assunto, espero que Santa me regresse de férias já com a cabeça fora de água, e tomo um calmante diário até lá. (É que, parecendo que não, elas não matam, mas moem, como diria a minha sogra.)


* ninguém me paga para me calar


20/07/2018

Eu tenho problemas com tudo # 33

Isto deu-se na Zara*. Mas podia ter-se dado em qualquer lugar do género, porque foi comigo, e eu atraio situações.
Vamos supor que o ser humano pretendia adquirir uma t-shirt branca. Tipo t-shirt, tipo branca, a coisa mais normal e vulgar que existe em termos de vestuário, ex aequo com o jean. Acerca-se do expositor das ditas, que, no entanto, apenas expõe números daqueles que ninguém usa, S e L e XL, capaz de também o XS. Aborda então uma funcionária, aleatoriamente, e questiona se por acaso há o M.
[Da Zara, honra lhe seja feita, desapareceu o irritante só-há-o-que-está-exposto. (Ou, como diria Jhi, feliz proprietária da loja do xnês, só-tem-o-à-mostla.) Agora sói usar-se um leitor de códigos de barras, que nos dá uma imediata resposta relativamente ao stock lá do bas-fond.]
Vai ela e põe aquela espécie de secador de cabelos na etiqueta da t-shirt (que eu havia tido o cuidado de escolher o L para amostra), diz que "há no armazém", e, antes de sumir para nunca mais voltar, dita: "É esperar aqui uns dez minutinhos", lá ao pé daquele spot que a loja agora tem, espécie de ponto de encontro onde as coisas do armazém vão ter com as pessoas que as solicitaram. Por acaso, achei dez minutos uma eternidade, porque eu sou aquela pessoa que tem sempre um tacho ao lume, mas lá me estaquei um nico, que não há-de ter ultrapassado os setenta segundos, findos os quais me pus a cirandar pela loja e a desgraçar mais a bolsa de valores. Bom, sei que esperei o quê? Talvez uns onze vinte minutos, ao cabo dos que me pus no encalço da desaparecida, para que me explicasse o estranho desaparecimento, por não aparecimento, da t-shirt e, de caminho, dela própria. Nada, nem de uma, nem da outra. Porém, eu estava decidida a sair dali com uma t-shirt branca. Acometida de uma epifania, resolvi pedir esclarecimentos a outra menina que ia ali a passar, ao que ela me respondeu, simplesmente, "A t-shirt está aqui há uns minutos", sacando-a, amachucada, de um dos separadores lá do spot destinado a sapatos, de cima de um par deles. Baixou-me por segundos o Tourette, respondi "Tinha que ter uma bola de cristal para adivinhar que você ia meter uma t-shirt toda enrolada no separador dos sapatos", rodando o calcanhar na direcção da caixa. 
Sim, eu sei que a atitude correcta seria deixar-lhe lá a t-shirt, mas caneco, eu queria mesmo uma t-shirt branca, já disse? E ela, não sendo comissionista, defecaria nas alturas na minha atitude correcta.

* Ninguém me paga para me calar

19/07/2018

podia ser (a) minha mãe

Saímos da padaria, ela à minha frente, uma muleta num braço, um pequeno saco, com um pãozinho lá dentro, na mão do outro. Pretendeu descer os dois degraus que a separavam do passeio, apoiou o braço que levava o saquinho num murete logo ali ao lado, pôs o pé da muleta no primeiro degrau e o saco caiu ao chão. Desviei dois passos do meu caminho que havia de ser feito com duas pernas saudáveis até um carro confortável, e segurei-lhe o braço sem muleta, dizendo Vamos descer juntas, pois que sempre me deixou desconfortável o verbo ajudar. Assim fizemos, alcançámos o passeio em segurança, entreguei-lhe o saco que, nem quero imaginar, seria o jantar dela, até que ela disse, Que Deus lhe dê tudo o que a senhora desejar, e eu debati-me entre duas verdades íntimas e, se calhar por isso, dolorosas, Já deu -, pensamento posto nos meus filhos -, Já tirou também -, pensamento posto nos meus pais. É esta a lei da vida, dizem, e eu aceito, quem sou eu para contestar leis, ainda mais se forem dessa tal vida? Fiz o pequeno percurso até ao carro de cabeça baixa, envergonhada de mim, dos meus pensamentos, da minha heresia ou da minha descrença. Ela seguiu, desapareceu logo, talvez se tenha refundido com a calçada ou com o ar, posso tê-la sonhado, quem sabe não ando a delirar de saudades, se ela podia ser minha mãe.

15/07/2018

Começo a suspeitar que a fada dos dentes não existe

Fui ao dentista dos olhos bonitos, desta vez para que ele me colocasse um aparelho, que era coisa que já queria fazer para aí desde os meus onze anos, ou seja, há várias décadas. Ainda bem que esperei, pois, nessa idade, o senhor deveria ter deslargado os cueiros há pouco, e eventualmente não estaria preparado para me aparelhar a dentuça.
Aterrei os quartos traseiros na cadeira lá dele, recostei-me naquele misto de excitação com ansiedade, e abri-lhe a boca. Vai ele, e esclarece-me que só me iria colocar o arame de baixo, já que os de cima não necessitam, mas que sim, que mo porá na mesma, assim os que a natureza me implantou e assentam no maxilar móvel estejam alinhados. Eu um pouco desanimada, acho que até amuei um nico, pois lembro-me de ter fechado a boca para desenhar um beicinho. Mas passou-me logo, quando ele me perguntou se estava psicologicamente preparada para arrancar um dente da frente, eu que ia preparada psicologicamente era para meter os açaimes de cima e de baixo, mas que sim, pois então, se se trata(va) de um dente inferior, arranca lá o que te aprouver, desde que daqui a uns meses tenha o sorriso mais Kolynos da minha rua, que é para isso que aqui estou. Picou-me então as gengivas até se fartar, viu-se e desejou-se para pôr o dente a abanar, e depois, de alicate em riste, fez sair o 41 (foi assim que lhe chamou), coitadinho, até tive pena dele, tão saudável que estava que a raiz era exactamente dois terços do total do marfim. Para que eu não ficasse desdentada e a fazer vento a cada S e a cada F, pôs-me porcelana no entremeio, de modos que nem assim consegui ficar ciciosa e sibilante. 
Já com o freio novo, fui-me embora. Mas lembrei-me, à saída, que me faltava (literalmente) o meu dente, e então voltei ao gabinete e pedi-lho, com a desculpa da fada dos dentes. Ofereceu-mo numa caixinha própria e tudo, apesar de não ser azul, mas eu também não me sentia em condições de regatear.
Começo a suspeitar que a fada não existe, pois ainda não deu mostras disso, e já lá vão duas noites com o dente debaixo da almofada a moer-me os ossos. Chateia-me muito e volto a pô-lo no lugar dele.


13/07/2018

A ver se eu percebi

Pois, eu, acho mal. Não porque possa interessar-me ver o que quer que seja, num jogo de futebol, a não ser o próprio jogo, e, mesmo esse, depende. Olhem, depende dos fatos dos jogadores, da combinação em matchi-matchi da bermuda com a blusa mais o soquete e o téne, da harmonia entre os uniformes das duas equipas naquele todo com o verde em pano de fundo, enfim, depende de uma série de factores estéticos, e também externos, que em nada se prendem ou sequer agarram com as meninas da plateia. 
O que verdadeiramente acho mal na notícia, são muitas coisas, a saber:
1. Para já, a noção de bonito é olimpicamente subjectiva - uma vez que se prende com o sujeito, e aqui mais do que nunca -, e o que eu posso considerar bonito, para o meu vizinho da frente ou o de cima pode ser o horror, e gostos não se discutem. Por exemplos, eu era capaz de achar que estavam a filmar uma mulher bonita num estádio se me aparecesse no visor a Audrey Hepburn, que essa sim, era uma mulher bonita, tinha uma cara lindíssima. (Mesmo à gaja, dar um exemplo de beleza de alguém que já morreu. E que já não se pode defender.) No entanto, o Zé dos Anzóis, essa mítica figura, era ver a Malhoa no ecrã, e upa-upa. Portanto, enfim.
2. Logo a seguir, não se entende por que é que se evita filmar mulheres bonitas, e não apenas e tão-só mulheres. Qual é a piada de ver mulheres no futebol? É pela novidade? Hum, é que não. Já não estamos nos anos 60 do outro século, pessoas. Uma mulher no futebol, é como uma mulher no ginecologista, e Lili Caneças não diria melhor. 
3. Mas, contraditoriamente, que eu sou este poço, também acho chato que deixem de filmar as petizas futeboleiras, porque é assim: aquele é O momento delas, são os seus quinze minutos décimos de segundo de fama, para os quais se maquilham, vestem (?) a rigor, com vista a darem nas e encherem as vistas, batendo pestanas (postiças, ok, mas...?), batendo palminhas, fazendo momices, oh, pá, são tão fofas, é um bocado coiso tirarem-lhes isso...
4. Na mesma senda, não percebo que se filmem pessoas na bancada, independentemente de serem mulheres, homens, mais ou menos, ou um bocadinho de cada. Essa cena é altamente limitadora e também catalisadora. Já repararam na quantidade de gente que, ao perceber que tem o foco em cima de si, lhe cai logo uma lágrima? Há jogos cujas bancadas parecem autênticos museus com a obra completa do Menino da Lágrima, esse ícone. 


Então, aquilo é ou não é o efeito imediato da pressão mediática? Qual amor ao clube, qual quê, aquilo é a imagem para a posteridade, o momento das redes, apanhado na rede. 
5. Digam-me lá se esta medida da FIFA não pode originar dramas maiores do que o da simples filmagem das elegantes senhoras que se deslocam aos estádios? É que, a partir de agora, cada vez que a câmara apontar para uma mulher, ela vai poder considerar, automatica e justamente, que é consensualmente desonsiderada sensual e gira e bonita e demais predicados estéticos. Quer dizer, isto pode acarretar traumas e até aquelas coisas dos tribunais, como é que se chamam? Aquilo do direito à imagem, e assim. Eu, cá por mim, até acho que as mulheres que sejam filmadas, a partir de agora, não só podem passar a sentir-se feias, gordas, marrecas e desdentadas, como também devem considerar optar entre o que é que é melhor: ser assediada ou bullyingada?

Estão a ver por que é que eu não vou ao futebol? Era a câmara o tempo todo em cima de mim, nada de jogo, como naquelas transmissões que não pagam as licenças, sabem? E eu sem saber se era pela minha boniteza ou pela obediência às regras da FIFA, deixa-me cá ficar no lar, que eu não pago para ter mais traumatismos.

09/07/2018

orfandade

Esperava a minha vez na venda da fruta quando ela chegou com uma menina pequena pela mão. Somos vizinhas de rua há muitos anos, ambas temos quatro filhos e é tudo o que nos assemelha. Ela tem o cuidado de se demarcar pela distância e pela incapacidade de sorrir. Coloca a voz em modo snob, anasalado, arrastado nas primeiras vogais de cada palavra e um tom acima do necessário.
Olhou-me de cabeça baixa, os olhos pequenos em alvo disparando setas, por cima dos óculos, a testa numa persiana, e "Olá", seco. "Bom dia, Paula, está boa? Que bonita que é a sua Maria". Sem resposta, dirigiu-se à criança: "Espera, Maria, que somos já a seguir. A avó não te pega ao colo porque tem dói-dói". E eu para ali, cheia de contradições na cabeça, de entre as quais que não, que ela e a neta não eram as próximas a serem atendidas.
O funcionário da mercearia perguntou então quem estava a seguir, ela disse "Sou eu", e eu esclareci-a: "Não, Paula, não é a Paula que está a seguir, sou eu. Acontece que eu dou a vez à minha vizinha, tendo em conta...", eu num sorriso, derretida de parva que sou com uma criança, ela cheia de pedras no olhar, "Olhe, não é por ser sua vizinha, é porque as crianças têm prioridade", e lá se aviou, demorada e arrogante, enquanto as cinco pessoas que ali estavam à espera abriam bocas e olhos de espanto mudo e incapaz, e eu, toda órfã, engolia uma enxurrada de lágrimas feitas de brita pontiaguda, Mãe, mãe, mãe.

07/07/2018

Tantas vezes nos despedimos


mas nunca dissemos adeus. Nem daquela última vez, em que lhe senti o cheiro a mãe na pele branca e lisa, e me encolhi nessa certeza. Morria-se há tanto, desvanecendo-se, esfumando-se, dissipando-se suavemente. Não me morreu. Tenho-a nas árvores, tenho-a nas flores, tenho-a nos cheiros e nas cores do ar, tenho-a nos pássaros, tenho-a em todos os tons do Alentejo, tenho-a comigo nos fados, Pomba branca, pomba branca, já perdi o teu voar, tenho-a no meu reflexo, tenho-a toda dentro do coração - pequenina, e enorme.