02/10/2017

Aquela meia branca

Andar de metro à hora morta tem a vantagem de haver sempre onde sentar. Os cheiros não nos invadem. Não está abafado. A população é heterogénea. Já não se vêem estudantes, empregados de escritório, mulheres da limpeza. Também há menos pedintes.
A escolha do lugar é aleatória, quando metade está disponível. Tenho só o cuidado de não ocupar nenhum dos reservados, embora estejam os quatro livres. Foi o acaso que ditou que me sentasse à frente dele. Na verdade, pus-me na sua diagonal, uma vez que ele estava junto ao vidro e eu perto do corredor. Não percebo que alguém — a não ser pela necessidade de se encostar — escolha o lugar da janela no metro. Não há nada para ver, nem a multidão do cais tem algo de interessante que mereça dar mais dois passos para lá e outros dois para cá, só para alcançar o posto de vigia do vidro.
Sei que o olhei de esguelha, que é o soslaio, por ter esta já velha mania, tanto quanto eu, de observar os outros. Deve e pode ser por isso que tenho um blog.

Na verdade, não tenho nada de interessante para relatar num espaço público, a não ser estes meus assuntos-não-assunto. As estatísticas do meu blog falam por si. Estou quase a morrer, como morria muito nos primeiros dois anos disto. Só que agora, como nessa altura, não estou triste. Tive, no somatório destes quatro anos e meio, talvez um ano e meio ou dois de 'ribalta' na blogobola, escrevendo praticamente todos os dias, geralmente textos enormes, como este vai ficar. [Até vou fechar a caixa de comentários, para que isto não pareça o que não é: um pedido de miminhos. Este blog é também o meu muro, não só de lamentações, mas também um muro puro e duro, que eu tenho vindo a escrevinhar de uma ponta à outra, e cujas paredes, muitas vezes, se erguem diante de mim ao ponto de se tornarem intransponíveis.] Pode ser o tamanho dos meus posts que me derrota e me derruba, mas não há volta a dar-lhes, nem a mim, que misturo não-assuntos com pseudo-assuntos, faço associações de ideias que nem eu percebo como, e ninguém — às vezes nem eu própria — tem paciência para ler. Também eu sou leitora, e sei que é assim.


Também podia vir aqui relatar como foi o acto de ter ido votar (não o meu voto, naturalmente). A cena do cartão de eleitor. O desespero de ter telefonado para o 3838, como quem liga o 112, para me darem o bem-fadado número. O raio do chip do cartão de cidadão que não diz esse número, e, de toda a maneira, ainda que o dissesse, teria que existir um leitor magnético, eu teria que saber um outro código de acesso, e tudo seria (ainda) muito mais complicado. Por isso, prefiro vir para aqui falar do homem com quem viajei hoje no metro. O homem era velho e magro, e o que me chamou a atenção nele foi, em primeiro lugar, as meias. Trazia um fato cinzento de bom corte, novo, impecavelmente engomado, mas luzidio, quase luminoso. Do colarinho alvo, imaculado, saía, estrangulada, a cabeça, mas muito vermelha. Dali se estendia uma gravata primorosamente esticada, mas vermelha. Do bolso da lapela brotava um lencinho branco, de seda natural, mas às bolas vermelhas. Os sapatos eram mocassins de camurça castanha, mas tinham um debrum preto, e eram de pala curta. Deles transbordavam dois pés calçados em duas meias. Mas eram brancas. 

Escrevi este post ao longo de três horas diferentes do dia. Comecei-o de manhã, escrevi mais umas linhas depois de almoço, e termino-o agora, sem saber por que é que o escrevi.
Sei que o homem se há-de ter convencido que a minha incapacidade para desviar o olhar daquelas meias podia ser uma espécie de fascínio. [E até era, senhor, e até era.] Vai daí, começou a esticar o pernil na direcção dos meus pés, que, como já disse, estavam na diagonal dele.
Felizmente, a viagem acabou, antes do confronto. Impossível explicar-lhe em duas palavras, que, para além de todas as outras razões que me assistem na vida, jamais eu poderia olhar para um homem de meias brancas com bons olhos. Só conseguiria dizer
meias
brancas
.


Sem comentários: