15/12/2022

Diz que é Natal outra vez

Era para ter escrito sobre Cristiano, o único, mas deu-se que me passou da ideia. Acho que era acerca do quão irritante é a posturazinha do português médio, que endeusa e derruba a mesma pessoa em menos de um fósforo, que bate porque tem marquise, bate porque aluga barrigas para ter filhos, bate porque o botox já lhe paralisou toda e qualquer manifestação de emoção, bate porque tem namorada kitada, bate porque deu uma entrevista controversa/ que fez dói-dói a muito menino. Mas esquece que a mesma pessoa chegou a Lisboa com nove anos, dormiu num quarto nas instalações do clube, levou-nos onde nunca sonhámos, fomos vice e depois campeões da Europa, arrastou dez coxos para cinco mundiais (não esquecer que “antes” tínhamos ido a três) e que tem uma acção social que muitos, com muito mais, não têm. Um dia enfiamo-lo no Panteão e cai-nos aquela lágrima de crocodilo com a acidez do costume.
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A cidade inundou porque tem sete colinas. E tem muitos túneis e passagens inferiores. E muitos plátanos. Vi com estes que a pira há-de cremar o pessoal da Junta a varrer folhas secas e, poucas horas depois, o mesmo tapete nos mesmos lugares. Ninguém consegue vencer a velocidade com que aquelas árvores se desnudam. Ainda por cima, são altamente alergenas. Quando eu era nova, tipo há um ano, nem podia passar perto de um plátano, que me rebentava toda. Era demolirem aquela porcaria toda e metade da água não teria subido como subiu. Ao invés, andaram a abrir as grelhas das sarjetas todas, resultado: os esgotos estão cheios de folhas secas, as tampas estão de modo a fazer uma senhora tropeçar e partir uma clavícula ou então enfiar os dois pés juntos nos buracos e ficar para ali feita estátua, cheia de malhas nas meias. Estimo que a Câmara suporte as indemnizações.
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Tanto andei, que consegui conquistar uma Bimby. Estou a adorar, atiro com tudo lá para dentro e ela faz coisas. Nunca cozinhei tanto em tão pouco tempo na minha vida. Ando exausta. Qualquer dia, atiro-me lá para dentro, a ver o que é que ela faz. Vai-se a ver e saio de lá mais mansa.
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A da farmácia acha que eu tenho cara de tansa. Primeiro, pediu-me colaboração em géneros para fazer cabazes para ajudar as vinte e cinco famílias carenciadas do meu bairro. Esclareci-a que tal conceito não existe aqui, perguntei quem são e do que é que vivem o resto do ano, mas não soube responder-me. Da lista de bens constavam gel de banho e escovas de dentes. Eu sou uma besta, levei atum, arroz, salsichas, esses supérfluos. Agora pediu-me para ajudar a carregar os cabazes para as tais famílias. Eu. Operada há meio ano a um cancro. Só não ri porque me apeteceu chorar. Só não chorei porque me apeteceu rir.
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Fez um ano o meu diagnóstico. Fez um ano que comecei a quimioterapia. Vai fazer um ano que me despedi do meu cabelo. Comprei uma lembrança muito especial à minha Sandra. Nunca me esquecerei das lágrimas dela, em contraste com os meus olhos secos. 
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Sou uma besta, sim. Entrei na fase da raiva e nunca mais saí de lá.