16/02/2022

Sou um número

Se existe sensação dolorosa que guardei da infância e me atormenta até hoje, é a de dar saltos no escuro ou — basicamente, em consequência — ficar perdida. 

Lembro-me do dia em que o meu pai tirou as rodinhas  de apoio à minha bicicleta. Eu nem sequer sabia arrancar e travar, tinha que ser ele a empurrar-me o selim, e, quando acabasse o meu passeio em círculos, agarrar-me de frente o guiador. Naquele dia, depois de dezenas de voltas ao pátio do prédio onde morávamos, pedi-lhe que me travasse a bicicleta. Ele negou, eu passei a implorar, mas o meu pai persistiu, “Hoje vais aprender a travar sozinha”, e eu às voltas, já aos prantos, “Pai, por favor!”, e que não, isso acabou, “Papá, eu não consigo travar!”, até que tive a pior das ideias, que foi largar a bicicleta e atirar-me para o chão. Esfolei-me toda, dos joelhos às palmas das mãos, não ficou bocado nenhum que não misturasse alcatrão com pele. Não sei como não parti nada, mas sei que aprendi a travar e a iniciar a marcha da bicicleta nesse dia.

Lembro-me também de constantemente perder-me da minha mãe nas grandes superfícies. Naquela época, havia só talvez o Tutti Mundi, na Avenida de Roma, o Grandella e os Armazéns do Chiado, na Baixa. A minha mãe ia para os provadores, avisava-me para ficar ali ao pé e não sair sob pretexto algum — embora soubesse que ia acontecer —, e, de repente, era toda uma queda no buraco da árvore, não sei se era eu que começava a cirandar pelos expositores, se a minha mãe se eclipsava para um mundo paralelo, sei que eu ia parar ao País das Maravilhas, onde tudo era estranho e nada fazia sentido, principalmente porque tentava voltar à casa de partida e nada de mãe, altura em que abria o berreiro, sentava o meu desespero na alcatifa — as lojas eram alcatifadas —, e, ou era socorrida por uma condoída senhora, tão estranha como todo o cenário, ou era “encontrada” pela minha mãe, às vezes impaciente (o que percebi mais tarde, quando tive filhos).

Entraram agora as palavras “companhia de seguros” e “plafond máximo anual” na equação da minha caminhada, e então pôs-se a urgência de sair da minha zona de conforto — literalmente — para uma outra onde, talvez embora não haja croissants, sei que há os melhores pãezinhos com manteiga e doce do mundo. Estive naquele hospital há meses, não tenho uma ponta de unha a apontar ao tratamento que lá recebi. A não ser, claro, uma ou duas pessoas que me azedaram uns minutos da estadia, mas essas, por alguma razão inexplicável, estão um pouco espalhadas por toda a parte.

Porém, isto significa também que vou deixar o meu médico giro, para gáudio de uns (“olha-me esta vacuda, instala-se no cinco estrelas com uma cabeleira linda, sobrancelha ok, unhas pintadas, não enjoa nem grega, e ainda lhe calha um oncologista giro”), e para indiferença de outros (“o que importa é o protocolo do tratamento”), a verdade é que sinto que estou a fazer uma dolorosa transição. Não sei o que me espera do lado de lá, desconheço se vou encontrar um/a médico/a simpático/a e optimista como este que me acompanhou até agora, tenho medo de encontrar alguém pragmático e seco, porque sou aquela cobarde que prefere que lhe digam “Estás óptima, daqui a poucos meses já acabou”, mesmo que só lhe restem umas horas de vida. Descobri em mim uma pessimista nata, que, entre a surpresa e a queda, opta pela primeira, daí que espera sempre o pior, não tanto para poder comemorar, ao invés de lamber feridas, mas mais para respirar fundo até à próxima angústia, real ou imaginada. Isto parece tudo um bocadinho contrassensual, mas lá está, atentem na palavra, que significa apenas mais duas características minhas: sou do contra e sim, tenho o ar de mulher fatal.

Living by numbers tem bailado muito ultimamente nesta cabeça já de si perturbada: o primeiro encontro com o oncologista giro foi de uma empatia imediata, os olhos dele sorrindo sobre a máscara, eu ainda com o cabelo sem necessidade de Natércia. Pareceu-me algo de recíproco e definitivo, que duraria, pelo menos, até um dia em que nos despedíssemos sem vontade de nos revermos. Tipo amores de Verão, que ficam enterrados na areia. No entanto, desde que lhe anunciei a imperiosa mudança para o “público”, senti o abandono de uma forma inexplicável. Os olhos dele escureceram e, no final da consulta, levantou-se da cadeira, segurou-me no braço e disse “beijinhos”. Ofereceu-se para me receber quando eu quisesse. Mas nunca mais o vi, ou sequer passou por mim a acenar e a sorrir daquela maneira. 

They don’t want your name. Just your number.

Estou um pouco assim: mãos e joelhos esfolados, e perdida da minha mãe. 

Mas sei que, apesar de they just want your number, vou aprender a travar a bicicleta sozinha e tenho a certeza de que existe algures à minha espera uma mão não estranha para segurar a minha e sairmos juntas do armazém.