27/12/2021

Despedi-me do meu cabelo, sabes?

É para ti que escrevo hoje, que entendes da importância que tem — tinha, teve, terá — o meu cabelo para mim, e não consideras a peruca uma futilidade,

como me cansam as pessoas da “solução” que são “as soluções tão giras que há hoje em dia, com lenços, turbantes, toucas”, mas eu lá sou mulher de turbante? Ainda ninguém me sugeriu um hijab, um nikab, não sei como não, se essa é que seria a fórmula certa que me levaria à rua, sem medo do preconceito — enfrentando outro? — da doença, as pessoas estigmatizam e rotulam quem tem cancro, eu sei porque sou pessoa. Nunca o fiz por maldade — e que mais maldade se pode fazer a quem já carrega uma assim? —, mas por pena, por Deus-me-livre, por condenação à vista.

Foi ontem, durante a manhã tocava no cabelo e saíam fios aos dez e dez — não que os tenha contado um a um, mas, se não eram dez, eram onze —, sei que larguei umas lágrimas, talvez também umas dez — podem ter sido onze, um dos meus olhos chora sempre mais do que o outro, deve ser o do lado adquirido, porque o do lado inato sorri mais bonito, estou em crer que choro sempre em número ímpar, eu, que não gosto de ímpares e agora vou estar praticamente um ano com idade ímpar, é que me dá transtorno obsessivo a desigualdade —, e então liguei para uma espécie de anjo que tem um cabeleireiro e exerce a profissão, não queria que a mutilação fosse operada em casa, por uma das crianças — que, entretanto, se fizeram mulheres e homem e se ofereceram —, queria o egoísmo meu a um domingo, salão fechado a abrir só para mim, e o mimo todo da minha Sandra (tenho várias Sandras na minha vida, e são-me todas tão preciosas, que, caramba, só pode ter a ver com o nome) para aquele momento que auspiciava de terror e a acabar em desmaio meu.

Fui encontrá-la mais nervosa do que eu, queria cortar curto, “Rape, Sandra”, e ela começou a cortar, não cortou madeixas grandes, não vi as minhas ondas no chão, vi a minha vida em retrospectiva, eu aos vinte e poucos na faculdade, com o cabelo pelos ombros, eu aos onze anos, com o cabelo à tolinha, eu aos quatro anos, quando cortámos, a mana e eu, rente à cabeça, e, finalmente, eu. Hoje.

Tenho uma cabeça muito bonita: lisa, sem marcas — porque tive sempre o cuidado de “partir a cabeça” em zonas visíveis, na cara —, sem ondas, sem uma borbulha. Só mais um ou dois rubis, sinais vermelhos minúsculos que também tenho no corpo (três? Talvez quatro, para não ser ímpar). 

Quando saí, abracei a minha Sandra, ela em lágrimas a garantir-me, quem sabe se não cientificamente, que eu vou ficar boa, eu seca dos olhos, porque já tinha deitado aquelas dez. Não devem ter chegado a onze.