24/06/2020

As minhas [quase invisíveis] pegadas

Parece que, afinal, Street é uma fêmea. Já desconfiávamos, devido ao tamanho do corpito, à delicadeza de gesto e modo, ao susto por qualquer movimento por perto quando vinha saciar a fome na taça diária que lhe deixamos, faz agora um ano. Provavelmente, Juliana será um macho, apesar de ser também um animal pequeno: muito mais atrevida, muito menos dependente da ração diária, umas vezes aparece, outras, quase todas, não. A novidade é agora isso mesmo: Street faz-se acompanhar por um gatinho aí com oito semanas de vida. Comem da mesma malga, serão com certeza parentes. Não me apercebi de a ter visto prenhe, eu que a vejo todas as noites, para confirmar que se alimenta. Não falhou um só dia a taça, desconheço se pariu algures e veio, mesmo assim, alimentar-se no pós-parto, para poder amamentar a sua cria com alguma qualidade. E também não é muito vulgar uma gata dar à luz apenas um gatinho. Prefiro pensar que o adoptou, ou que o resto da ninhada encontrou outro poiso, ou então que ainda é demasiado frágil para se aventurar a percorrer as ruas com a mãe, à noite, até onde sabem que encontram alimento. É uma cria toda preta, apetece-me chamar-lhe Night, para manter uma certa coesão anglo-saxónica nos nomes familiares, e também alguma assexualidade facilmente adaptável a ambos os géneros.
- Eu bem vos avisei [que vocês iam acabar a alimentar uma família de gatos]. - Diz-nos ele, com aqueles olhos cheios de verdade e amor, depois de ter visto o gatinho pela primeira vez. 
Tenho que pensar numa solução para o tipo de ração que lhes passo a deixar: a mãe não pode comer comida de bebé, a cria não pode comer comida de adulto. De resto, temos igualmente um pombo a alimentar-se da taça, todos os dias o mesmo, que baptizámos de Anastácio. Faz a sua vida de pombo durante todo o dia, mas espera com manifesta impaciência pela refeição quando a tarde se aproxima do fim (provavelmente, as minhocas estão em dieta), e, por isso, é sempre o primeiro a inaugurar a taça. É estranho pensar que um pombo come comida de gato, que, por sua vez, se alimenta de aves, atum, salmão, frango, e todos os eteceteras escritos na embalagem. Depois de debicar uns quantos croquetes de ração felina, volta a ser pombo até ao dia seguinte.
Entretanto, Dona Molly vigia todas estas démarches, derramada no parapeito da janela, curiosa e sobranceira, exigindo, no final, ração nova da sua, ainda que tenha a taça cheia. Ou há democracia ou... E ela prefere a segunda hipótese.
Ontem tinha um besouro na casa-de-banho, preso por encandeio numa das lâmpadas do tecto. Fomos buscar um banco para lá chegar, um copo e um papel, recolhemos o bicho para dentro do copo, o papel a fazer de tampa até à janela, onde lhe devolvemos a liberdade. 
Talvez a incapacidade crescente para tirar uma vida, acompanhada da necessidade de criar mais vida correspondam à justa medida em que a minha própria estimativa perde dimensão. Seja qual for a explicação para o fazer, a verdade é que me dá um gozo imenso pensar que contribuí para que um curso natural não tenha sido interrompido. 
Como quando vou correr, que tenho o máximo cuidado para não pisar as formigas que atravessam, indiferentes, inocentes, inconscientes, a pista.


2 comentários:

  1. E assim se cumpre a vida, não é?

    Boa tarde

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    Respostas
    1. Sem interrupções, noname. A intenção é essa.
      Boa noite

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