27/05/2019

Ando indocumentada

É verdade: de há duas semanas para cá, ando ilegal. Tenho o meu bilhete de identidade de cidadão nacional, vulgo cartão de cidadão europeu, caducado. Passado da validade, mais ainda do que eu. Expirou (Santinho!). Tem sido a minha pequena irreverência, a minha rebeldia à maluca, o eu sentir-me um nico marginal, quase uma delinquente.
Aconteceu que a pessoa humana, tal como milhares de concidadãos e concidadãs, tinha uma data de apodrecimento do coiso para os meses de Março, Abril e Maio de 2019. As notícias que de lá vinham - provindas de quem tentou a renovação antes de mim - eram de algo de semelhante ao apocalipse elevado ao serviço público. Coisas com senhas que, afinal, não garantem a vez aos humanos, chusmas de gentes que se faz valer de prioridades muita malucas (ainda vou escrever um post sobre o trio que empurra o carrinho da criança elevador adentro e gozam todos da prioridade), funcionários que vão tomar café de meia em meia hora, tempos de atendimento para lá da morte lenta, filas gigantescas em caracol, em espiral e em linha recta, a darem a volta ao bilhar grande. 
E porque não me apetece baixar a varina três vezes (mínimo) no mesmo dia, ora porque vejo um velho com um latagão de 18 anos ao colo, ora porque me passo com o do balcão derivados à quantidade de vezes que ele interrompe o serviço para ir defecar, ora porque tenho um ataque de pernas inquietas e já ninguém me segura sentada, eu sei lá, toda uma vida de transtornos que só eu sei, decidi que amanhã madrugo, atiro-me da cama abaixo ainda quase de noite e percorro oitenta quilómetros de estrada, mas vou fazer o meu cartão novo a outra cidade deste país. 
(É claro que me preocupa o facto de chegar lá ensonada e depois andar dez anos - serão dez, sinto-o - com a mesma cara de bêbada olheirenta no meu documento. Mas tudo por deslargar a vida boémia em que ando há duas semanas.)
(E preocupa-me se me mandarem sorrir. Ainda tenho o meu aparelho, do qual não rezará a história daqui a dez anos.)
(E também me preocupa se me quiserem medir. E se encolhi?) (E se cresci?) (Não saberei lidar com tais mudanças.)
(E aquela cena da assinatura com a caneta óptica. Pareço uma analfabeta a assinar.) (Talvez assine de cruz.)
(Não vou ter tempo de lavar o cabelo antes de ir. Vai assim, deslavado, que se fornique.)
Era capaz de ser melhor dormir até à hora de sempre e depois enfrentar as bichas no sossego da minha cidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário