01/10/2016

espelho

Eram muitos participantes na escritura, todos eles beneficiados por uma inesperada herança. Pelo meio da multidão de tios e primos, chegou ele, olhos baixos, sorriso amedrontado, corpo volumoso, acrescentando-se anonimamente ao espesso grupo de gentes faladoras, abraçadoras, beijadoras pelo forçado reencontro que, por uma vez, não teve como finalidade um funeral, já que de baptizados e casamentos não reza a História um para amostra. 
Segurei-lhe ambos os braços carnudos, e, enquanto me dizia Como está?, devolvi-lhe: Tenho muita pena pela tua perda.
Trinta e sete anos, viúvo há dois meses, o legado maior deixou-lhe a amada há tão pouco: três filhos, dois só dela que também já são dele, e uma pequena com três anos, filha do amor que durou um fósforo. 
Vi-o assistir ao acto formal, que se estendeu para lá de qualquer expectativa e bom senso, sem se mover uma única vez da cadeira onde ficou sentado, atrás de todos, junto à porta da rua, segurando a sua enorme barriga, quase gravídea, dentro da t-shirt. A tristeza é um espelho quebrado, cujos cacos se atravessam na alma e se reflectem no olhar — e só isto me passou pela cabeça, em todo o tempo que ali permaneci, normal e naturalmente alheada de tudo menos daqueles olhos de água, movidos a mágoa.
Quando foi chamado a assinar, ergueu-se, pesado, e flutuou levemente até ao livro, onde depositou a assinatura que o iria aliviar da asfixia financeira em que se encontrava até àquele momento, salvando da miséria toda a enorme família construída há tão pouco. A última esperança de lhe ver os olhos sorrir, quanto mais não fosse para o céu imenso que o esperava a partir dali, desfez-se em cacos iguais aos de um espelho quebrado, trespassando a lâminas a ingenuidade de semelhante ilusão. — Confirmando-me, pela leitura óbvia do olhar de tristeza que ele carregava à saída, a estafada e velhíssima máxima de que o dinheiro não traz felicidade, mas também a certeza de que há fósforos que não se apagam jamais.

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