31/08/2016

31.08.2000

Lembro-me de não poder ter mais filhos.
Lembro-me de querer ter mais um. 
(Só mais um, que é sempre o seguinte.)
(Depois de ti voltei a querer outra vez.)
Lembro-me de querer ter outra menina.
Lembro-me da pena que tinha de nunca vir a saber como é que seria um rapaz com a minha cara.
Lembro-me de não poder estar grávida.
(Tu eras o 0,000001 de probabilidades.)
Lembro-me de saber que estava grávida.
Lembro-me de o médico me dizer "É um rapaz".
Lembro-me de levitar na marquesa.
Lembro-me de uma sala azul, cheia de holofotes, e eu ao centro.
(Nós os dois ao centro.)
Lembro-me de um cabelo preto, cheio de ondas do mar.
Lembro-me do nosso primeiro encontro, tão animal, em que nos cheirámos tanto.
Lembro-me do nosso segundo encontro, tão animal, em que te alimentei tão bem.
Vou sempre lembrar-me, faças dezasseis ou faças noventa anos.
(Vais ver.)
Meu menino azul.


And that awkward moment # 14

em que vais a passar na rua, fermosa e não segura (nem segurada por um seguro de vida que te assegure a segurança contra loucos), cruzas-te no passeio com uma senhora já com idade para ter juízo — que é aquela idade, sabem? —, que desata, em falsete perfeito (mas não cantado, como o Herman José), neste discurso:
És tão boa, és tão boa, és tão boa...
E vês surgir um cão (cadela?), todo/a lampeiro/a, língua de fora, a dirigir-se-lhe, patas ante patas?

29/08/2016

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 46

Vamos supor que a pessoa entendeu necessário adquirir um creme para os olhos, como diriam os franceses. Na realidade, trata-se de um creme para as pálpebras, ou venha de lá a primeira doida que enfie o dito nos olhos. 
Entra na Séphora* e é logo atendida. Diz ao que vai, que quer um creme para as pálpebras, que já usa há bastante, refere a marca, mas não se lembra do modelo. Isto é uma treta, a memória dispersar-se precisamente no que interessa. Mas, caneco, já fui mais nova e, se assim não fosse, também não estava ali para comprar um creme para a porra das pálpebras. O rapaz que me atende está fabulosamente maquilhado: usa uma base compacta dois números acima do seu tom de pele, o que o faz parecer um boneco de cera cor de tijolo. As sobrancelhas estão depiladas a linha, e pintadas de preto. As pestanas têm o rímel meticulosamente bem colocado. O eyeliner há-de ter sido posto a compasso com tira-linhas.
Sinto-me uma parola. Uma doce e encantadora parola, mas, ainda assim, uma parola. E isso é extremamente confortável, uma vez que se prepara a cena do costume: ele vai tentar impingir-me cento e tal euros de cremes para as minhas pálpebras que eu acho envelhecidas.
Aponta-me dois, um sérum e um hidra, ou lá o que é. Os dois juntos, prometem maravilhas e malabarismos oculo-cutâneos. No entanto, sei de mim o suficiente para adivinhar que, caso os compre, me encherei de rugas de contrariedade e autodesilusão. Há que equacionar os prós. O homem pede-me a mão — que é como quem diz — e ensina-me a colocar o sérum, o tal que vai reverter um processo que é natural. Começa a desenhar oitos ou infinitos, nas costas da minha mão estendida, para me indicar como é que o hei-de aplicar. Surge-me a dúvida se as argolas do infinito devem assentar em cada um dos meus olhos, e o ponto de intersecção na cana do nariz.
Sinto-me uma estúpida, por não perceber a utilidade de passar uma gosma tão cara no alto da cana, mas não pergunto nada. A verdade é que não tenciono comprar aquilo, e é-me absolutamente indiferente se é suposto desenhar oitos ou oitentas ou infinitos e mais além com a bisnaguinha milagreira.
Agarro um frasco de outro creme, que diz "contour des yeux" e leio a embalagem, onde consta "anti rides", "anti cernes", "anti poches", no meu mais apurado francês. E digo: "Rugas, olheiras e papos, este tira tudo". Armada em estrangeira ou poliglota. 
Toca-me o telemóvel e nasce-me ali, de partenogénese, a secreta esperança de que seja alguém a berrar por mim, a bradar por um fogo que só eu possa apagar. Assim não sendo, digo: "Estou na Séphora* [séfura]". Sei que a forma como pronunciei o nome da loja vai deixar o homem todo eriçado de nervos, mas cheguei àquele ponto desesperado em que quero que ele não goste de mim e me ponha a correr dali para fora. 
Mas é claro que isso, só nos filmes. Já na caixa, pergunta-me: 
- Tem cartão Séphora*? [sêfôrrá]
Já vou longe quando percebo que ele meteu no saco da compra do bendito creme a oferta de um par de óculos de sol. Lunettes de soleil. 


*Ninguém me paga para isto, mas, em compensação, também ninguém me paga para me calar.

28/08/2016

Rentrée sans sortie

Fiz uma entrada triunfal no ginásio, achei eu, convicta de processar a minha rentrée muito antes do resto do pipol, mas, sobretudo e em particular, por levar comigo duas lascas da minha safra, e eu feliz e tão emproada quanto uma galinha consegue pôr-se. Por outro lado, e não menos importante, envergava os meus calções tamanho S, alegria que devo à Decathlon* que, ao reformular os números das etiquetas, chamou S aos códris 40, e vá lá o femedo do 38 vestir o XS e as do 36 (se é que existem) vestir o XXS. 


(Este S está-me largo, mas comprei-o mesmo assim, por motivos que se prendem comigo, que não posso sentir-me, lá está, presa por coisas que não sejam de malha, alapadas como lapas.)
(Não ponho foto de mim com eles envergados, que já me basta de raivas e ódios contra mim na blogobela.)
(Mentira deslavada. Suja.)
Afinal, aquilo encontrava-se vazio, a não ser que considere a presença de três ou quatro perdidos que perderam a bússola, mais o senhor da mercearia (que eu acho que lá vive). 
Disse-me o PT mais brasileiro e mais mulato do espaço:
- Estás preta.
Ora se esta não era a ocasião perfeita para entrar na piada fácil? Não comigo, que vou sempre por caminhos:
- Sabes, este é o meu tom natural. Eu ando é o Inverno inteiro a besuntar-me de despigmentante.
Não custou nada voltar, mas só percebi porquê à saída, quando fiz as contas à última vez que lá tinha estado: 15 de Agosto. 
(Fui de férias a 16 e queria ir tonificada, porquê?)

* NMPPI

27/08/2016

Diálogos

Estamos em viagem. Tenho uma garrafa de água na mão, leio o rótulo, onde estão escritas as palavras exactas do que quero dizer-lhe. Viro-me para trás, os nossos quatro olhos encontram-se aos pares, ficam só dois. Os meus dizem-lhe a frase do rótulo, mas entrego-lhe a garrafa e digo:
Já viste o que está aqui escrito?
Ele lê, em silêncio. Os olhos dele dizem-me
Eu sei
mas diz:
Estas garrafas têm uns rótulos muita giros.

Não vivemos num palácio.
Mas tu és o meu
principezinho
—————


26/08/2016

Pega-azul

Para trás, ficou um pequeno pinhal, paredes-meias com a traseira da casa onde ficámos. Para além do papagaio de um vizinho, que gritava "olá!" durante todo o dia e para todo um quarteirão, pousavam nos pinheiros uns pequenos pássaros, cantarolantes e irrequietos, que, por isso, não foi possível fotografar. Azuis, de um azul tão bonito, tive que fazer pesquisa para lhes saber o nome. Por "pássaro azul", ia dar, não só mas também, ao restaurante dos Olhos d'Água (como gosto deste nome, não sei por que não nasci num sítio com um nome assim), e a uma infinidade de pássaros exóticos e periquitos, mas não era nada daquilo que procurava. Depois de ter posto em Mr. Google "pássaro azul, cabeça preta, pescoço branco", lá me apareceu o que procurava: a pega-azul.

Imagem daqui
Fui dizer-lhe, toda satisfeita, que tinha encontrado o "nosso" pássaro. 
E ela, que tem o sentido de humor mais fino que eu conheço, respondeu:
- Blue-slut. 

O ovo ou a galinha?

Há vários dias que não via o Marácuja. A última vez que o vi, foi quando ele, apontando para mim, anunciou ao colega de vendas de bolas e a todas as pessoas que se encontravam em redor dos arredores da minha roda: 
- Foi ela que inventou a bola de maracujá.
Não fui. Ele anunciou-a como se ela existisse, eu quis prová-la, ele mandou fazê-la, eu passei a pedir por ela. 
Ele diz que eu criei a necessidade. Eu digo que foi ele. 
Quem é que inventou a bola de maracujá?
Para mim, foi ele. 

Sangue raro

Ligaram-me do Instituto Português de Sangue e Transplantação.
(Saltou-me um nico do coração pela boca, porque pensei "Medula, medula, precisam da minha medula!")
Diz que precisam do meu sangue.
Diz que estão com falta de sangue do tipo do meu.
Diz que tenho um sangue raro.
Acredito, sobretudo, na última frase.

25/08/2016

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 45

É que não havia necessidade. Estava tudo a ir tão bem, o pequeno-almoço breakfast todo em singulares, tinham que pôr o tomate em plurais porquê, senhores?



É como o nome desta praia, valham-nos os santinhos: para quando a castração do S, e, de uma vez por todas, a bem das consciências e dos bons costumes, passar a chamar-se Praia do Tomate?


Por falar nisso, existe um vendedor de bolas de Berlim na praia, que é o Paulo, mais conhecido por Senhor Paulo, e algo famoso porque apareceu na revista Visão há dois anos. Há quem se gabe, à boca cheia ainda vazia de bolas-bolo que só compra bolas ao Senhor Paulo, porque (e à falta de melhor argumento) o homem tem uma pastelaria (sic). Eu, como tenho a PDM, acho que aquilo é só mais um reflexo da PDM dos outros. Uma espécie de elevação social por conta da pertença a uma elite autocriada. Depois nunca falha o verdadeiro argumento que justifica a qualidade superior das bolas do Senhor Paulo (oi?): o homem apareceu na Visão há dois anos.
Outro dia, uma senhora torrada de castanho escuro, correu para ele, e perguntou-lhe assim:
- Senhor Paulo, Senhor Paulo, ainda tem bolinhas?

Bandeira azul

Amanhã já aqui não estarei, e, se calhar por isso mesmo, o mar está revolto. Ou revoltado, diz-me a minha pretensão e água benta, salgada. No entanto, a bandeira está verde, o que me leva a ponderar a possibilidade de os nadadores-salvadores terem deitado fora as outras duas bandeiras, por uma questão de desnecessidade. Têm a azul, e isso basta-lhes (-nos) (-me).


Na senda de "Sou só eu?" # 3

Para o último dia de praia (nesta praia), reservo o meu biquíni preferido. Também devo ser só eu que faço isto. 
Sou tão singular. Sou tão rebelde.

A mim, fica quase igual à menina, só que um bocadinho diferente

24/08/2016

Estar de férias é pôr os miolos de molho. (Para quem não tem barbas.)

É também ganhar um dia de férias, de brinde, sem nunca o ter perdido.
Algures num dos primeiros dias desta temporada a sul, meu chico-smart caiu no chão da privada, fez a cena histérica do costume, desmantelando-se todo, salta capa, saltam costas, salta bateria. Lá o conjuntei, qual construção de Lego, meti-lhe data e hora e não pensei mais nisso. Aliás, não pensei no próprio momento em que lhe estava a meter a data, e vamos supor que o fiz assumir uma data posterior, ou seja, que lhe pus a data do dia seguinte. 
Pronto. E assim se passou uma semana, o povo todo no dia certo, aqui a pessoa humana um dia à frente, futurista e visionária.
Hoje alvorei pouco depois das 7 da madrugada. Olhei para smart, e lá estava ele, a anunciar-me 25 de Agosto, quinta-feira. Fiz as minhas contas muito por alto, subtraí e arredondei, ainda puxei atrás, "se ontem era terça-feira e hoje é quinta, onde é que se meteu a quarta?", noves fora, nada, ahhh. 
Ganhei um dia de férias, dado por mim a mim mesma. Nem sei o que lhe fazer, de tanta sobra se me apresenta.
Estar de férias é isto, o cérebro em brain freeze de tanto se comer gelados. 
Ou então, hipótese também a considerar, estou a ficar cheché.
Estar de férias e a ficar cheché, tudo a um tempo, parece-me, neste momento, bastante descansativo.

23/08/2016

E hoje, o que vês tu das tuas janelas, Blue?

Vejo uma menina sentada no chão. Ao seu lado, um rapaz, ombro no ombro dela.
Vejo uma mulherzinha, debaixo de um guarda-sol colorido, protegida dos raios maus, protectora do menino que tem consigo.
Vejo uma adolescente embrenhada no seu mundo virtual, e, ainda assim, atenta à criança que tem à sua guarda, escassos três anos mais nova, brincando com uma pá e um balde cheio de areia.
Vejo duas pessoas que não trocam uma única palavra, uma porque não precisa, a outra porque não pode, e que dialogam continuamente. 
Vejo dois seres que saíram da mesma mãe, e se entendem na perfeição dos monossílabos dele e dos gestos não impacientes  que não é o mesmo que pacientes  dela.
Vejo-a a ela e a ele à sombra, sem sombra de dúvidas, sem dúvidas que os ensombrem.
Vejo uma irmã, cuidando do seu raríssimo irmão.
Vejo amor.

22/08/2016

A doce liberdade

De abrir a porta de casa e não sair uma gata disparada escada abaixo, escada acima.
De poder ter janelas abertas sem medo de que uma das bichas saia em voo picado.
De poder andar às arrecuas sem olhar, com a certeza de que não se vai pisar uma cauda e, como brinde, quem sabe, receber uma dentada. (Sim, também utilizo a marcha-atrás sem retrovisor.)
De deixar o fio do carregador ligado à ficha, sem ter a preocupação de que uma felina vai roer a ponta onde passa, precisamente, a corrente. (Sim, sou tão incivilizada quanto isto, e sim, pago balúrdios de luz.)
De deixar a casa às escuras quando se sai à noite, sem achar que as coitadinhas vão andar a marrar com as paredes.
De não ser relevante se faz sol ou se vai chover, porque não vai uma chanfrada desatar a subir às paredes.
De poder usar o secador do cabelo sem que surja um animal assustado com o barulho, porém doido para lutar contra o fio.
De deixar o ferro a arrefecer no chão, sem receio de que haja um focinho/bigodes queimados no minuto seguinte.
De meter a roupa na máquina e poder ir buscar uma peça esquecida, deixando a porta da máquina aberta.
De abrir armários e gavetas à vontade e mantê-los abertos pelo tempo que for preciso, sabendo que não vai aparecer do nada um bicho que se instala num canto e já não sai de lá até acabar a sesta, umas dez horas depois. 
De deixar a sanita com o tampo aberto, sem pensar que, três segundos depois, uma gata se enfia inteira lá dentro. (Sim, a minha casa possui sanita.)

O amargo que foi a primeira viagem sem a Mel, que viajava fora da gateira, à janela, a ver a paisagem, ou a dormir num colo. 
O amargo que ainda é ter toda esta doce liberdade.

Vá lá a ver se agora se faz para aí uma petição para revogar aquela aberração do artigo 37.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas

ARTIGO 37.º 
Os membros da família de um agente diplomático que com ele vivam gozarão dos privilégios e imunidades mencionados nos artigos 29.º a 36.º, desde que não sejam nacionais do Estado acreditador.

ARTIGO 31.º 
O agente goza de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador. 

21/08/2016

Pedradas no charco

Eram sete mulheres, todas entre os cinquenta e os sessenta e qualquer coisa. Duas, em duas esteiras, as restantes sentadas de roda, quase metade de sete debaixo do colmo, a outra parte ao sol. Todas mães, algumas avós, certamente. Livres de tarefas domésticas, libertas de obrigações, preconceitos e amarras, apenas presas pela alegria do encontro, que poderia ser reencontro, foram abrindo, e depois bebendo, cervejas pretas umas atrás das outras. Bebidas directamente do gargalo, tão bem que as compreendo, tão bem que sabem bem. Duas das mulheres mais velhas começaram a falar mais alto, mais enfaticamente, mais arrastando o álcool na voz. São senhoras bem educadas, não hajam dúvidas acerca disso: vocabulário sem nódoas, bons biquínis, cabelos de cabeleireiro. Mas engrossam voz e tom, quebrando por momentos a finura do gesto e modo. Até que uma delas diz a palavra vibrador, e a praia pára. Como na história da Bela Adormecida, cada um petrifica no exacto momento em que a senhora exclama vibrador aos quatro ventos, vindos de todos os pontos cardeais: uns, a contemplar o mar, outros a conversar, outros a morder a sua bola de Berlim. Quase posso jurar que aqueles que se encontravam no mar, também quedaram, assim como as próprias ondas, de tanto espanto foi. A todos, a expressão comum de olhos em alvo, surpresa absoluta. Depois, como que arrancados da hipnose, todos recomeçaram exactamente no ponto em que haviam deixado a vida. Talvez tenha havido uma excepção ou outra: não sei onde ia eu, mas é possível que a navegar pelos meus pensamentos cheios de mar. Refeita do non sense, retomei o ciclo natural, naturalmente, a rir.
~
Há meia dúzia de anos, estava numa praia da Caparica, e passou um grupo de três golfinhos no mar, atravessando a costa em saltos cadenciados. Estavam milhares de pessoas na praia, e a reacção foi mais sincronizada do que um flash mob bem treinado: novos e velhos, adultos e crianças, pararam absolutamente tudo o que estavam a fazer, dizer ou pensar, puseram-se em pé os sentados ou deitados, e exclamaram um ohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!, de coro perfeito.
~
Desta vez, apesar de o momento inesperado ter tido o seu quê de cómico, fizeram falta os golfinhos.

Eu tenho problemas com tudo # 13

Sou tão prosaica.
E prolixa.
Ao terceiro dia de praia, considero as toalhas demasiado sujas e quero lavá-las. Este mar, rapidamente as enche de uma placa composta por sal, sol, água e talvez gordura, que não só não as deixa secar durante a noite, como também as põe num desconforto de fazer chorar os grãozinhos da areia: sempre húmidas e duras, e vá que não me vou alongar na descrição.
Vai daí, enfiei-as a todas na máquina. A coisa recusou-se a centrifugar, e as toalhas saíram de lá encharcadas. Fiz mais dois programas, exclusivamente de centrifugação, e as porras cada vez mais molhadas. Meti-as na secadora, isto era uma da manhã. A p. não funcionava, nem que eu acendesse uma vela à santinha das roupas. De repente, percebi que se encontrava desligada da corrente, pelo que me meti dentro de um armário para chegar à tomada. Escolhi o programa mais longo e mais intenso, que era para dar. A secadora parecia uma locomotiva, ou um avião a tentar arduamente o take off. Ninguém conseguia dormir, e condoí-me. Na verdade, temi-me. As retaliações familiares são das penas mais penosas de cumprir. Parei a máquina e só me faltou meter a cabeça lá dentro para tentar ter uma ideia, se não boa, pelo menos quente. Com o estendal cheio, e de frágeis cordas (deve ter sido concebido por um Stradivarius), rebentaria com elas se insistisse em pôr-lhes o peso das toalhas molhadas. Encontrava-me num impasse daqueles muito meus. Ir para a praia sem toalha, ni muerta: fui uma vez, na Figueira, e doeu-me. Comprar mais toalhas, ni pensar: não caberiam no carro, de regresso a casa. Não ir à praia, ni hablar: não trouxe o meu tricot nem o meu bilros, morreria de tédio.
Ficaram na varanda a passar a noite. O primeiro sol da manhã não só as secou completamente, como também as ia queimando. Minhas ricas toalhas da Primark*, tanto que me custaram adquirir.

* com o selo NMPPI.
As toalhas são um bocado merdosas, na verdade. Não se teria perdido nada.


19/08/2016

E eu que adoro crianças

Tenho à direita, sob um colmo, pai, mãe e duas filhas, que ora atendem por Cuca e Chica, ora por Carlota e Francisca. Têm 6 e 8 anos, não sei se respectivamente. Gritam de boca aberta e olhos fechados, o nariz na direcção do céu, uns quantos decibéis acima do que estou capaz de suportar. Nenhuma das duas tem já idade para birras daquelas e daquele tamanho. Ou melhor, para birras. Os pais cuidam delas como se, em vez dos anos que efectivamente têm, tivessem os mesmos, mas em meses. O pai pega numa ao colo, leva-a para o mar, fica a outra a berrar aos ouvidos da mãe. E aos meus. Estão ambas vestidas até ao pescoço, com camisolas de bodyboard e braçadeiras. Há um momento em que a mãe as despe, e ficam ambas integralmente nuas. Tanta cagança, e depois...
~
Tenho à minha esquerda um tiraninho de dez meses, sentado numa piscina que as duas lacaias, mãe e avó, andaram a encher com água do mar. O pequeno homenzinho grita a cada pequena contrariedade, nem que seja porque uma gota de água que ele próprio chapinhou o atinge. Ambas as mulheres caem em credos e ais de cada vez que o despotazinho abre as goelas. Um dia, bate nas duas. 
~
Está uma família inteira debaixo de um colmo, onde se incluem três gerações. Há tios, há tias, há uma avó, há gente de todos os tamanhos e feitios. Uma exclama para um miúdo gritão:
- Tem que aprender a lidar com a frustração.
O petiz esmifra-se em berros, e ela conclui:
- Tem que aprender a ouvir.
"Tem que aprender a calar-se" - grita-me a mim, a minha impaciência.
~
Passam alguns casais com um filho ou dois e os pais de um deles. As férias ficam caras, e a desculpa de trazer os pais, para ajudar com as crianças, é sempre altamente circunstancial. É como a daqueles casalinhos que se passeiam no IKEA com a mãe de um deles. Esquemas bem montados, mobílias por montar, vidas por construir.
~
Observo ainda que continua a existir um tipo de pessoas que acha que ter tido um filho foi a coisa mais extraordinária que podia ter feito na vida, e que mais ninguém é capaz de fazer semelhante obra. Mais: que ser pai porreiro é o pináculo da condição humana, e que dar um bom espectáculo nesse sentido é uma porta aberta para ser considerado o macho Alfa do areal. Ter sobrinhos, então, é o máximo dos máximos a que um homem pode aspirar em termos de família bem constituída. E que mais ninguém no mundo inteiro conseguiu fazer sobrinhos tão fantásticos como eles, que são thios.
Um ferro, como diria o Dâmaso.
~
Um dia, encontro a praia ideal.
Que não me polua as vistas com toneladas de celulites e tatuagens sem nexo. E que não me polua os ouvidos com estas infâncias tão sonoras.
Estou velha, minha gente.

18/08/2016

Na senda de "Sou só eu?" # 2

São, estatisticamente, cerca de 90% das vezes: sento-me à mesa de chinela Havaiana (por acaso, as minhas são das baratas, estou apenas a utilizar o nome da marca Havaianas como designação genérica. Já me calava, mas não resisto a reafirmar o quão tão pouco blogger sou) nos dois pezinhos. O problema põe-se com mais acuidade e premência aquando do gozo bom de férias: descalço-as, solto os porquinhos que, os dez felizes, se espraiam pelo soalho, ladrilho, relvado, who cares. Quando, por fim, resolvo recalçar-me, ele há de tudo um pouco ou um pouco de tudo à minha espera: 
- É a chinelinha que não aparece ao tacto do pé, transformando-me numa involuntária e contrariadíssima Cinderela da xanata;
- É sentir que estão lá as duas para mim, para o que der e vier, mas trocadas, feitas malandras, a esquerda a oferecer-se ao pé direito, muito devassa, e vice versa;
- É dar com uma capotada, dar-lhe um toque, um leve jeito, para a virar para cima, e ela dar uma volta de 360º, e continuar capotada até eu me meter, espumante, debaixo da mesa e me fazer grua e reboque;
- É ter uma (ou as duas, também consigo o pleno) virada de frente para a ponta do meu pé, dar-lhe com ela, e a chinela virar-se de ladex. Depois dar outro, e ela para o outro ladex. Encher-me da raiva, dar-lhe um coice e ela ir parar ao Samoco, inalcançável, continuando, assim, em contramão. Ou contrapé, ou lá o que é.
Morais da história:
1. Eu também calço o meu chinelo;
2. Também me foge o pé para o chinelo;
3. Nem todo o chinelo me serve;
4. Ao menos, que seja Prada;
5. O diabo veste Prada;
6. O Papa calça Prada;
7. Não tenho qualquer hipótese de não ir dar com os costados no Hades. (Pode ser que vá calçada com Prada.)


17/08/2016

Afinal chama-se Marácuja

Remansa, estendida à mercê do último sol do final da tarde de um dia de viagem, tento o start do restart que a minha alma falida e o meu corpo insolvente precisam de se operar urgentemente. Vejo-o surgir, cesto no braço, óculos azuis, mil dentinhos, o samba nos pés, 
Bolhinhá!
Já não faço apostas mentais, nem comigo mesma, sobre se ele me reconhecerá no meio de milhares de pessoas. Sei que as perco, embora também saiba que ele tem a vida dificultada: eu nunca estou no mesmo lugar, nem dia após dia, quanto mais ano pós ano. 
Bolhinhá com crêmi, seim crêmi, dji chocolátchi, lhimão, aufarrôba e...
E pára, quando me vê, junta os dois pés e grita,
... dji maracujá!
- Hoji teim, chigaram hoji!
- Eu também.
- Chegou hoji? A bolhinhá dji maracujá também. Chigáram junta. Quer uma?
- Claro.
- Sai dji maraca.
E nisto, reparo na forma como está escrito maracujá na embalagem da minha bola. 
Afinal, o rapaz chama-se Marácuja. Eu é que escrevia mal.


16/08/2016

Mola para o nariz

Estava eu (muito pouco) descansada a fazer as malas (afinal são várias), quando me deparei com uma das molas que tenho, para quando nado ou mergulho, designadamente em piscinas, que também las hay. 

Esta imagem palmei-a da netty, pois nem tenho tempo de fotografar a minha, nem sei já onde a meti.
(Penso que não a tenho posta no nariz enquanto escrevo, que aquilo dói)

Pela enésima vez, experimentei-a no meu nariz, que — note-se!, e fique já aqui bem assente — é pequeno e foi, aí pelos meus 5 ou 6 anos, sujeito a uma adenoidectomia.
As dores foram, conforme já esperava, por memórias das anteriores tentativas, excruciantes. 
(Este estupor está a sublinhar-me a vermelho várias palavras, por ignorância dele. Vou ter que adicionar ao dicionário, passe a aliteração — olha, outra —, que é para ele ver se aprende alguma coisa comigo, que eu não duro sempre.)
Mentalmente, decidi que não o vou usar, embora o tenha guardado num dos sacos, não vá mudar de ideias durante o percurso, e depois chorar lágrimas de sangre e amargo arrependimento. 
Foi, no entanto, uma experiência que me confirmou a enorme admiração que nutro pelos atletas olímpicos, não pela força e pela arte (veja-se o caso das bailarinas da natação sincronizada), mas por aguentarem aquela tortura mais do que dois segundos agarrada às narinas. Antes uma mola da roupa.
Mesmo após higiene nasal profunda — qualquer monco, por pequeníssimo que seja, transforma-se num rochedo que ameaça detonar-nos todo o canal, qual pólvora seca em montanhas do deserto do Nevada —, quase pude jurar, entre ameaças várias de choro convulsivo, que os meus ricos adenóides haviam regressado, ou, quiçá, lhes haviam nascido um par de gémeos, tipo quadrigémeos (mais uma para o dicionário. Ou hoje estou particularmente erudita, ou este coiso está com dificuldades em acompanhar o meu ritmo).
O melhor é apertar o nariz, qual nauseada, cada vez que mergulhar, ainda que seja em profundidade, tipo nas poças.
Poças para o tango, como diria o povo.

Também posso estar a ficar louca

mas canto mentalmente isto todo o dia. 
Às vezes, até mesmo para aqueles todos de quem sou, efectivamente, mama.
Ain't your mama.

15/08/2016

Quando eu ganhar o Euromilhões # 11

Arranjo uns duendes — têm que ser duendes — para me fazerem as malitas de viagem, mas meterem no carro, mas retirarem de lá à chegada ao destino, mas desfazerem e arrumarem tudo em compartimentos muito bem compartimentados tipo IKEA, as meias por cores, os vestidos por tons, os sapatos por fases da vida. 
Vou de férias, meu povo.
Encontro-me exaurida. Quis meter o Rossio na rua da Betesga e ele não coube lá dentro. Fui empurrando a feitura da mala para a tarde, depois para a noite, são estas belas horas e não a fiz. Pior: pus tudo o que pretendo levar em cima da cama, o que, para além de não me ter adiantado na mala, ainda me impede de ir dormir. Pondero sinceramente ir dormir para o sofá, ou numa cadeira qualquer. 
Este ano, viajamos num autotanque emprestado, porque o nosso deu-lhe o Ipiranga. Vamos numa coisa que atende pelo nome de Espace, o que, naquele caso, é um eufemismo: o gnu é imensamente espaçoso, mas ao nível do tablier. A distância do volante ao vidro dá para encaixar três pranchas de surf. Mas não tem mala, já que os dois bancos de trás encostam ao vidro traseiro. Por isso, temos ordens expressas e superiores para levarmos o mínimo indispensável. 
Longe e loucos vão os tempos em que levava mais biquínis do que os dias de férias que ia gozar. Só naquela. Para ter panóplia, cardápio, paleta. Reduzi ao máximo a quantidade de roupa que gostaria de levar e, mesmo assim, acho que não vai caber naquele carro. Falta-me o saco com sapatos, que não consigo encolher nem que me encolha eu toda. Mas os mínimos são as havaianas (que não podiam ser mais grossas), as Fly (para o conforto, e são igualmente gordas), a sabrina para os dias em que me sinto uma Floribella, a sandalete high heel para os dias sim e o téni One Star, para os dias em que me sinta one star. Ora, só isto é motivo para:
1. Ter que levar o saco da sapataria ao colo a viagem toda;
2. Ter que enviar o saco da sapataria para mim mesma, via CTT;
3. Ver-me obrigada a apanhar a camionete e mandar o saco da sapataria de automóvel;
4. Ser compelida a reduzir nos xanatos e ter que amuar um niquinho;
5. Ir descalça, por uma questão de atitude, que também a tenho.
Amanhã, depois de uma noite mal dormida, e de (ou quando já devia ter as) malas à porta, decido a melhor estratégia a adoptar. After all, lá dizia a Scarlett, essa grande O'Hara. Ou era Tara?


14/08/2016

Perfeito coração

Estava para ali sozinha, toda rodeada de pessoas, e algumas dormiam. O calor não é amigo de ninguém, menos ainda de pássaros que já voaram muito, uma vida inteira. Tinha-a ali na minha visão periférica, enorme e desmanchada sobre um sofá, nem dormindo nem não dormindo, só assim, dormitando.
Na televisão, ligada e abandonada à parede, as notícias anunciaram o festival Sol da Caparica, e relataram o sucesso dos The Gift, ainda na noite anterior a encher o perfeito coração que no meu peito bateria. Ouvimos um excerto, ouvimos 
Que perfeito coração
no meu peito bateria,
e, pelo meu ouvido tão periférico quanto a visão, percebi claramente que ela, enorme e desmanchada sobre um sofá, sussurrou, quase falou, quase cantou,
Meu amor, na tua mão

Aprende também a não ler todos os sinais que a vida te dá

A pessoa acorda cheia da pica para ir dançar. Está um nico menos de calor, a aula não estorva o trabalho (true, true), faltam muito poucos dias para rumar daqui para sul, tudo se conjuga. Aperalta-se, apruma-se, faz-se à estrada, ao leme de seu boi. Pelo caminho, depara-se com este anúncio, qual prenúncio, e confirma.


Chega ao ginásio e Não há aulas de dança em Agosto.
Mete-se no remo e rema, (sem) rumo.

13/08/2016

A minha vida dava um filme de David Lynch

Ainda me estou a ver, sentada numa cadeira de acrílico transparente. A sala tem uma estranha geometria, parece um U, parece um C, parece uma salsicha gigante. O cheiro é demasiado intenso, a comida requentada, ou pré-azedada. Diante de mim, a mulher continua sentada, atrás de um balcão branco, e ainda não tirou os olhos do computador. Nem mesmo quando ali pousei as mãos e me avisou, entre dentes, que o balcão é traiçoeiro. Percebi isso mesmo no momento em que, das mãos passei aos braços, e aquela porcaria se virou na minha direcção, tendo feito tombar uma vela grossa e seu castiçal metálico, redondo como uma bola, que se encontravam em cima da placa de contraplacado ordinário. E ela sem mexer uma pálpebra noutra direcção que não fosse a do monitor. Perguntei-lhe então o que é que tem para hoje?, ao que, à laia de resposta, me entregou uma pasta com algumas dezenas de folhas lá presas, cuja capa transparente deixava ver uma tabela, igual a um horário escolar hiper-preenchido, contendo os menus da semana toda e, eventualmente, de todas as semanas do ano. Tive que fazer cálculos mentais para me lembrar que estávamos em quinta-feira. Reclamei, num desperdiçado sorriso, que, de facto, uma tabela em que o menu se apresenta em letras tamanho 8, brancas, sobre fundo cinza claro, nem que eu fosse um lince seria capaz de lê-la. Ainda assim, não respondeu, não se mexeu nela um único fio dos cabelos pretos e sujos. E eu ganhei olhos de lince por segundos e li lasanha vegetariana. 
Ali sentada, inspeccionei a porta à minha direita, que deixava antever um pequeno corredor, ao fundo do qual se encontrava uma casa-de-banho semi-ocupada com balde, esfregona e talvez mais coisas. Havia ali também uma porta, que dava acesso à cozinha, que eu preferi não espreitar. Quando a porta se fechou, li-lhe "Área exclusiva do pessoal". O chão, numa imitação de madeira cinzenta, encontrava-se em péssimo estado, como se tivesse sido — e, provavelmente, foi — cenário de várias inundações e algumas limpezas com produtos impróprios.
Tinha acabado de fazer o meu pedido, após o qual a mulher levantou o rabo da cadeira — ou aquilo que deveria estar no lugar dele, pois que tinha a zona sacra totalmente achatada —, enfiou a cabeça por uma pequena janela de acesso à cozinha e gritou "Ó colega", procedendo à transmissão do meu pedido. Voltou a sentar-se, atendeu um telefonema e disse, por diversas vezes, a palavra "você".
Houve um décimo de segundo em que considerei a hipótese de entrar um anão que desatasse a dançar em chão de ziguezague, mas não: entrou o estafeta, com o saco da distribuição vazio, e pareceu-me que vinha de fraldas. Afinal, eram umas calças de fato de treino, justas ao longo da perna grossa, e bastante largas no rabo. Quando tirou o capacete, verifiquei que só tinha cabelo no alto da cabeça, tal e qual um manjerico, muito negro, muito farto, em perfeito pendant com as sobrancelhas, duas hirsutas cabeleiras pretas. Não me custou a crer que se tratasse da reencarnação de um lenhador que, à noite, se fizesse lobisomem.
A lasanha estava muito boa.


12/08/2016

positiva +

Apetece-me chamar-lhe Fernanda.
É muito raro, senão mesmo inédito, mudar os nomes às personas de quem falo aqui no blog.
Esta pessoa pode chamar-se Fernanda. Ou talvez não. Mas sim.
~
Encontrámo-nos por um daqueles acasos que a vida nos prega, como partidas de bom gosto no meio da desarrumação que ia na nossa vida. Estava, naquele dia, de serviço ocasional à UCI,
O meu lugar é na urgência de pediatria, lá é que é o meu lugar,
como se aquele lugar lhe pertencesse por direito de propriedade, escritura lavrada, e lá se sentisse em casa.
Eu sou seropositiva há doze anos, mas isso não me tira a vida,
e ai de quem não acreditasse.  Loira, daquele loiro amarelo do cabeleireiro de há dois meses, raízes escuras, olhos da transparência do âmbar, dentes muito brancos e tortos, linguagem corporal dentro de um corpo seco e bonito, constante, viva, ondulante.
Nunca toquei em drogas, mas foi uma loucura. Tenho trinta e um anos e há doze que sou seropositiva. 
Falou-nos dos filhos.
Um de cada pai.
E de como se dá bem com todos, os dois pais dos dois filhos, as duas namoradas dos dois pais dos dois filhos, os dois filhos — e ai de quem não acredite, tamanha é a luz e a febre boa que jorra a jorros daquela urgência de vida, cujo lugar é na urgência de pediatria. 
Já vi tanta coisa naquela urgência, há pais e pais, há pais tão maus, eu não quero pais assim para os meus filhos.
Nem quando fala nas sombras que a assombram, nem mesmo nessa altura, se ensombra. 
Eu viajo, eu gosto de viajar, se tenho que ir, vou, deixo os putos bem entregues e saio pelo mundo,
tudo cantado num sotaque algarvio cerrado.
Tudo espelhado num espelho de água de olhos que pertencem à urgência da pediatria e da vida, e que nunca se ensombram.
Nada me tira a vida,
deu-nos ela aquela lição, enquanto esperávamos por boas novas na UCI. 
Tem que acreditar.


11/08/2016

Paralelo

Como numa realidade alternativa, para onde a mente se transfere quando a que está se torna insuportável, vivo a impressão de que ainda me encontro dentro do pesadelo, de que esta foi a minha forma de fuga, por estar tudo tão perfeito que não pode ser, devo estar a sonhar que o pior já passou, daqui a pouco vou acordar e estarei mergulhada nas trevas.
Olho para ela, confirmo-a, revejo-a, quero ganhar certezas absolutas de que está mesmo ali e que é ela, forte, bonita, saudável, minha.
Tenho tanto medo de estar a sonhar, que não invento uma desculpa para a tocar. Simplesmente, aproveito o gozo bom de a ver assim.
Tenho tanto medo de a assustar com as minhas dúvidas descabidas, que ela me desapareça no ar como se fosse um sonho bom, que me mergulho inteira no silêncio e numa paz que nunca virá.
Eu sempre soube que as mães não têm remédio, como dizia a minha mãe.

10/08/2016

Quando tudo te grita 'Não saias de casa!' # 3

Vamos supor que isto se deu com outra pessoa humana. É preferível, para o bem de todos.
O café que a pessoa frequenta, para ir à bica, fechou para férias das pessoas.
Então, a pessoa passou, por estes dias, a ir a outro, porque lá sem bica é que não. Até se lhe turvam as fossas nasais. 
A primeira incursão já não tinha corrido lá muito bem, visto que a inconveniência chegou à minha casa e montou acampamento. Estava sinceramente descansada na esplanada, ainda nem a beberagem iniciara, e já uma das minhas companhias tinha proferido uma frase que eu não vou aqui repetir, mas que o empregado ouviu claramente e me deixou sei lá a pensar em quê, quanto mais a ele. Digamos que era caso para não voltar lá, mas arre égua que a teimosia também acampou lá para as bandas da inconveniência, e vai de insistir.
Foi tudo muito simples e muito rápido: o mesmo empregado acerca-se, a pessoa está a iniciar uma frase, e deslarga-se de lá, vindo juro que desconheço de onde — palpita-me que da boca do estômago, ou da boca do inferno, mas que me saiu pela boca afora, não hajam cá dúvidas, ainda ventilando um pouco ambas as narinas —, um arroto.
Um arroto. Sonoro.
Daqueles arrotos irreprimíveis, que se esticam ao longo de uma palavra e aproveitam quando as pessoas estão, precisamente, de boca aberta, em plena vogal aberta, a dizer uma alarvidade do género "Hoje não está [prrrrááááá] tanto calor como ontem... ai, que me saiu um arroto". Foi o pânico mental, o enxovalho social, o descrédito público. Lançadas as duas mãos à cabeça, que me cobrissem os olhos e a vergonha (não confundir com as vergonhas, que essas, ao menos essas, estavam tapadas), ainda me ouvi dizer baixinho "Ai, que horror. Antes um peido". 
Mas eu sou uma senhora, lá está. O ar, mesmo o ruidoso, só me sai por cima. Uma lady, não necessariamente na mesa.
Amanhã já vou à bica a outro estabelecimento. Diz que não há duas sem três.


E aquelas pessoas que

quando falam para alguém incapaz de as entender, seja uma pessoa surda, um estrangeiro, uma criança pequena (muito em particular se for um bebé), ou alguém que consideram analfabeto, começam a falar mais pausadamente, mais alto e com os olhos muito abertos?

A mim, vá, se me disserem uma frase em holandês, ou mesmo em português daquele que eu não domino — nomeadamente se for mal falado ou a falar mal —, também lhes dou a liberdade de pausar o discurso, elevar o tom, fazer saltar as órbitas, até de fazerem o pino contra a parede, que, vá, também não vou entender nada nem coisa nenhuma do que me estão a querer transmitir, ou sequer fazer qualquer esforço nesse sentido, tamanho é aquele que estarei a fazer para não me rir/chorar/sair a correr. Antes de me embrutecerem, emburrecem-me. Depois aborrecem-me. Ou divertem-me.



09/08/2016

Dúvidas que me assaltam à mão armada com alguma frequência # 4

Por acaso, acordei a pensar nisto: por que é que a voz dos grilos não é gri-gri-gri, quando a designação do bicho é, evidentemente, onomatopaica? Ou então, por que é que eles não se chamam antes crilos, já que é comummente aceite que a voz deles é cri-cri-cri?

Assim como os nomes de tantos animais são retirados do som que emitem — veja-se cão, veja-se os verbos miar e piar —, seria justo, senão lógico, que os grilos se chamassem crilos, ou então que se aceitasse pacificamente que, quando cantam, se ouve gri-gri-gri.

Eu sei que sou esquisita.

Este post
uma 
Mas não é. 
Não tenho imaginação para iniciar uma.
Gri-gri-gri.

Até quando o cheiro é mau, cheira bem — em Lisboa

O raiar do dia foi azul-cinza, assemelhando-se a nebuloso. E, no entanto, ou talvez por isso, esta pode ter sido a noite mais quente do ano. Ultrapassei-a numa luta entre a garrafa de água e o elástico que me amarrou o cabelo, empapado que já ia costas abaixo, almofada afora. Pratiquei uma alvorada mais escura do que ultimamente, era mais escassa a luz que me invadia o quarto, nariz e garganta a denunciarem fumo no ar, ar queimado de eucaliptos. Não preciso de ir ver as notícias para saber que, algures para os lados de Sintra, ardem árvores de boa saúde e bom cheiro. 

Lisboa tem cheiro de flores e de mar.

08/08/2016

Por pouco não nasci na terra dos grilos

Podia ter nascido no Alentejo, porque foi de lá que me chegou a minha mãe. Os Verões eram, em parte — numa parte crucialmente importante — passados a correr nas ruas sem carros, a bater à porta de todos os primos e a perder a conta aos gelados de água, seguros em mãos que eram pequenas, meladas da groselha (que também se espalhava de alegria pelas caras, já de si vermelhas de vida), cheias de poeira e sol, que é aquela mistura indelével que tatua um tipo de felicidade que fica para sempre. 
Havia grilos, à noite, que cantavam à desgarrada com a escuridão, como se a festa só pudesse terminar de madrugada. E nós achávamos que eles eram também nossos primos, por tanto cantarmos como eles. Invente-se alentejano, ainda que não dos sete costados, como nós, que não goste de uma boa cantoria, e ter-se-á inventado uma espécie nova, mas insobrevivível. 
A cidade está cheia de cigarras, aflitas com o calor. Gritam todo o dia, durante as horas de sol, à desgarrada com a luz. Se fechar os olhos, debaixo de uma árvore qualquer, ouço os grilos e volto ao Alentejo, cheia de poeira e sol.

Fuck logic

Isto foi há dias. O cenário é a ala da pediatria de um hospital público. Os adereços são um tabuleiro de almoço, no qual se inclui uma laranja. Com casca.
(Ora, não é preciso já cá andar na Terra há muitos anos para se saber que o único mês em que a laranja verdadeiramente não presta, é precisamente o mês de Agosto. Mas não é isso que aqui me traz.)
As personagens são a auxiliar de enfermagem (que acho que agora tem um nome pomposo, tipo técnica superior de primeira classe ao nível dos cuidados médicos), e a pessoa humana, vestindo a pele de "acompanhante", mais conhecida por "ó mãe".
Derivado a ter-me parecido que não ia ser possível à criança internada roer a laranja na falésia, como no Porto Covo, assim com casca e tudo, dirigi-me à dita técnica e, com o meu melhor modo — que, naquelas circunstâncias, é o equivalente ao de uma varina agrilhoada —, questionei:
- Como é que a empresa de catering sugere que as crianças comam uma laranja com casca, quando  a envia para a pediatria?
- Isso é para a mãe descascar.
- Ah. Muito bem. E com que faca, eles sugerem?
- Está lá uma faca...
- Para o peixe. 
- Tem que usar a mesma.
- Ou então, lavá-la no lavatório. Sou capaz de pedir que me mandem detergente e um esfregão. Já agora, quando descascar a laranja, onde é que a ponho?
- Como assim? Dá-a à menina...
- Não tenho prato para a pôr. Não posso dar-lha inteira. Fico com ela na mão, a pingar?
(Por acaso, estava tão seca que nem um burro aproveitava aquilo para palha.)
Hão-de ter julgado que eu me julgava a mim num hotel de cinco estrelas. Mas sim, tendo em conta que aquela hóspede é (d)a(s) (quatro) pessoa(s) mais importante(s) que eu conheço, exijo para ela(s) tratamento VIP. E não contesta, não questiona, come e cala.

07/08/2016

As coisas que eu vou desencantar ao baú... # 10


Diário de bordo
(25.08.2009)

Querido diário:


Caiu um penedo em cima de um número indeterminado de pessoas. São 4 da tarde, e a rocha despencou-se ao meio-dia. Tiraram de lá um homem morto e uma senhora foi para o hospital. O rádio diz que a praia voltou à normalidade, e a mim parece-me que está tudo do avesso. A normalidade do rádio significa que os banhistas estão no mar, a banhar-se, e ao sol, a corar. Ninguém cora de vergonha, acontece que é um dia diferente, caíram umas pedras lá de cima, uma era enorme, morreu um homem, está uma mulher muito mal, há máquinas de obras no areal, muito movimento de bombeiros, vêm os políticos, sabe-se que há mais pessoas lá debaixo, mas o mar chama, o bronzeado bonito apela, “isto não me vai estragar as férias”, diz quem viu, diz quem podia ter lá ficado também, diz quem chorou quatro horas antes.

De repente, parece que muita gente podia lá ter estado, e só não estava porque “se deu o milagre”. Como quando cai um avião. Eu própria equaciono assim a coisa: tive uma casa apalavrada na Oura, a praia mais próxima dessa casa seria a Maria Luísa, será que… também eu…? Não. Eu não gosto da Maria Luísa. Não gosto de praias pequenas, metidas entre três paredes e o mar, claustrofóbicas, não gosto de rochedos altos, montanhas de asfixia num ambiente que se quer tudo menos apertado. Iria para a praia de outros anos, mais uns quilómetros de carro, mais ar, mais areia, mais espaço. Suporto cada vez com mais dificuldade esta quantidade de tias castanhas, que estão a ficar piladas, não concebo como é possível estarem daquela cor sem recurso a instituto, a milhares de horas de sol, a exageros de óleos. Tenho medo de ficar assim, um dia. Já cheguei à cor que quase não gosto, e escondo-me à sombra todo o dia. O mar é tão quente que nem dá para nadar, mas, ao menos ondula o cabelo. Faz-me falta o gelo da Costa, a hipotermia nas pontas dos dedos, as sovas do mar cavado, o sangue a correr nas veias.

Os homens ganharam mamas, estão quase iguais às mulheres, e elas, para se vingarem, ganharam barriga, e ficaram iguais a eles. Não se distingue o que é deselegância e o que são gravidezes no primeiro trimestre. Está toda a gente a escorrer celulite, varizes e mazelas várias. Os carecas resolveram rapar o cabelo que lhes restava, passam creme nas costas obesas das tatuadas, ao longe todos parecem muito sujos, mas é tudo tatuagem! Toda a gente tem pêlos a mais, ou amolgadelas algures, ou então um penteado indecifrável. Os fatos de banho são inomináveis. Devia existir uma taxa à porta da praia. Tatuado, peludo, calções ridículos, taxa. Para elas também. Pena de prisão, não remível, multa.

Eu passo a ferro. Cuido dos filhos. Cuido da gata. Take care, naturally.

Vou para a praia de carro. Enjoo de carro. Sou a única adulta que conheço que enjoa de carro. O mar está demasiado quente.

Mãe, não é verdade que o G. fica gordo se continuar a comer desta maneira?

Mãe, dá-me mas é a bola de berlim!

A gata está nas suas sete quintas. Ninguém me convence que os gatos não conhecem dono. Esta está-se borrifando para o facto de ter mudado de casa. Está connosco, está bem. A casa tem dois andares. Ela anda escada acima e escada abaixo atrás de mim. Deita-se na tábua de passar a ferro a fazer-me companhia, e a ocupar-me parte da tábua, o que me impede de colocar o ferro no descanso. Come a relva do jardim, vomita verde, mas não desiste daquilo. Cheira a piscina e prova a água.

O rapaz inventou uma dor no joelho. Coxeia como o Dr. House só por saber que eu gosto dele. Continua em pleno complexo de Édipo. Para o torturar, digo-lhe, enquanto o cubro de beijos: "Não chegas aos calcanhares do meu Housinho". Não se safou de ir ao médico, e de fazer um tratamento com gelo e pomadas. O pai fez, eu nunca acreditei naquela dor. Dói-me tanto uma costela que não tenho tempo para complexos com nomes de deuses gregos. Devo-a ter partido, e são dores tão lancinantes quando espirro ou tusso que já só rezo para não me constipar. Quase não posso rir-me, o que não é fácil por estes lados, com os figurinos da praia e os nomes dos candidatos a autarcas. Dá a sensação que, para alguém se candidatar a estes municípios, tem que ter um nome estrambólico — Abúndio Martins, Seruca Emídio, Noélia Ribeiro, Jovita Ladeira, Joaquim Vairinhos, Jamila Madeira...

Um destes dias volto. Agora vou ver o Dr. House.

(tenho um nome demasiado vulgar)

promessas, horóscopos, previsões metereológicas, feelings

Leva-as o vento.
Acredita só quem quer.
À primeira, todos caem; à segunda, cai quem quer; à terceira, cai quem é parvo — lá diz o povo, que é quem mais orden(h)a. 


Ouço promessas, leio horóscopos e previsões metereológicas com a mesma exacta e finíssima desconfiança. Não terão passado cinco minutos, e já terei esquecido tudo o que ouvi e li. O meu ouvido, olhos, atenção e memória não envelheceram um único dia desde sempre, porque desde sempre foi assim: deslembro. Deve ter a ver com questões de crença. 
Também não sou uma pessoa de confiança para levar a sério — menos ainda a cabo — os feelings dos outros. Já os meus, sigo-os com uma fé peregrina e devota. Raramente me enganam, nunca me dão dúvidas.


06/08/2016

Perfeito encaixe

Estávamos todos desencaixados, já não havia telemóveis que nos matassem a sede de nos vermos nos olhos e de nos abraçarmos com todos os braços que se ficam vazios quando a distância se faz tão longa que nos aperta sem dó. Foi assim que nos encontrámos, reencontrados, nos estreitámos de volta, na volta, e pela volta — inteiros e plenos, passado que foi o pavor de voltarmos quebrados e incompletos. 
Reencaixados e reconstruídos.

Daqui

Sabes que estás a ficar blogodependente

quando vês um post acerca de piolhos e, nessa mesma noite, sonhas que a cabeça do teu mainovo está pejadinha e infestadinha deles. 
(Porém, estavam todos em terra, os meus...)

05/08/2016

Diálogos à sombra # 24

- Está aí algum médico?
- Assim médico-médico, não está nenhum...
- Sim, foi o que eu perguntei: um médico a sério, tipo aqueles que tiram um curso de médicos numa faculdade de medicina.

Isto anda a preocupar-me um nico

Eu sou daquelas que contam a vida toda no blog?
E, sendo, isso é preocupante?
E, sendo preocupante, para quem fica o prejuízo maior?

Bom, quem não gosta, tem bom remédio. Eu ajudo: não leia. Isto aqui é uma porta aberta: de entrada, mas também de saída. Não é nenhuma prisão.