11/05/2016

O estranho caso dos personagens que desapareciam da história

Passou pela chuva e entrou na casa que a esperava de braços abertos, sob a forma de escadaria. Subiu pé ante pé, nos biquinhos dos dois, subitamente invadida pela alegria infantil que sempre a tomava de cada vez que lhe chegava o aroma que se soltava daquelas madeiras e da sua memória. Descalçara-se antes do primeiro degrau, para que os passos não a denunciassem, mas as velhas tábuas, uma a uma, rangeram o gemido em lamento pela saudade e pela ausência que dela haviam sentido e que se espalhava por toda a casa. Levava o cabelo solto e leve, ligeiro como os passos flutuantes que agora a conduziam ao andar de cima, onde descobriu o tesouro escondido que era a porta, ainda quieta, ao fundo do corredor. Era a livros muito lidos e a lareira de serões o odor da lembrança que sentia agora. A sala estava deserta de viv'almas e de outras também. No entanto, reconheceu-a cheia e quente. Suspenso nos barrotes do tecto, um baloiço marcava a compasso de espera feliz o ritmo do coração de uma criança adormecida. Entendeu o sinal como um convite, uma irrecusável e irresistível determinação. Não havia um só espelho na sala e os únicos vidros que poderiam reflecti-la choravam demasiada água para que pudesse ser vista. O cabelo fez-se em tranças e o fato formal desfez-se num vestido leve e branco, de gola grande, à barco, branca e encarnada, no momento em que tomou o baloiço e saiu num voo intacto, atravessando um tempo que nunca saíra de si.

Num canto da sala, ainda estava o telefone preto, de disco cheio de números até zero. Pousado fora do descanso, reconheceu claramente a voz da avó, aconselhando, amorosa e ininterruptamente, Podes agora ir buscar os vestidos ao guarda-fatos lá de dentro, traz o comprido, que vai até aos pés, esse mesmo, de flores verdes escuras e azuis turquesa, e usa-o naquele baile que imaginaste ao espelho, onde depois entraste e se fez jardim, traz também o de flores cor-de-rosa com peitilho branco, mas tens que me prometer que não vais pô-lo com aqueles sapatos de carneira com atacadores, nem com aquelas meias que a tua tia te deu no Natal, que ideia a dela, e olha, rapariga, veste lá o casaquinho de malha azul escuro, que com a chuvada de hoje, a ventania que fazes aí em cima e essa frescura de sonhos que carregas, quando chegares a soprar as velas, já será com um valente espirro.


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Ideias inspiradoras aqui e aqui.
Outros episódios:
1 - Outro Ente;
2 - Flor; 
4 - Mirone;
7 - C.N. Gil;
Possivelmente, haverá mais, mas eu não sei deles, pelo que agradeço que, em querendo, me ajudem a actualizar esta lista.

4 comentários:

  1. Adoro a referência aos vestidos.

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  2. Ohhhhhhhhhhhhhhh! Tão bonitas as duas histórias entrelaçadas :)))))))))

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    1. Ohhhhhh tão bom, a Palmy protagonista na minha caixinha :)

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