10/10/2024

Alegria de estar viva

Talvez a explicação para o estado de euforia com que entrei hoje no cabeleireiro seja a de que aquele espaço me acompanhou desde o início, através das bondosas mãos da Sandra e depois da Jaqueline, quando decidi fazer um tratamento para que o meu cabelo nascesse forte e saudável, que é só o que se deseja nos tempos que antecedem um nascimento. Reconheço que tagarelei em excesso, que ia dominada pela alegria de estar viva e poder pintar o meu cabelo, já comprido. À minha direita estava uma senhora que sorria, à minha esquerda uma outra, mais velha, a quem a minha Sandra punha quadrados de papel de alumínio e pintava com uma tinta azul. Reparei nos ténis, iguais a uns que também tenho, nas meias de compressão elástica, na saia desinteressante, na maquilhagem disparatada, nas bochechas sumidas ossos adentro. A expressão era dura e incomodada, talvez porque estava verdadeiramente contrariada com o meu excesso. Tinha insistido em ler a última Hola!, que ainda não estava disponível no cabeleireiro. E eu, num passo de mágica gaffe, disse que não percebia nada da vida daquelas gentes. Não foi com desdém, apenas quis evitar que me oferecessem revistas dessas, por considerá-las um assunto que não domino. Também não leio revistas de Física Quântica, já agora. Até que, de repente, ela me estende três dessas revistas como uma espada ameaçadora e pergunta: “Quer?”. Aquilo amedrontou-me, assim à queima-roupa. Disse que sim e sentei-as no colo. Percebi que era uma forma de me mandar calar como se faz às crianças: toma lá a chucha. 
Depois a minha Sandra falou no dia em que teve que rapar o meu cabelo. “Um dia de tempestade horrível, era mesmo um dia de pesadelo. Lembra-se do que chovia?”. Lembro-me do que chovia, a tempestade fez parte da tormenta dela. “Lembro-me do que chovia, lá fora e nos seus olhos”. “É verdade, eu a chorar e ela ali, impecável, como se nada fosse”, disse para a velha d’ A Casinha de Chocolate. Foi um amansar de expressão instantâneo. Sorriu-me. Fez-se humana. Só por causa de um cancro que nem lhe dizia respeito.
Eu, feliz, abracei Sandra, Jaqueline e Andreia, “Adeus, minha querida”, “Adeus, meu amor”, “Adeus, linda”. E saí para o ar fresco, sem chuva nem tempestades.