Cada vez que ali vou, venho de lá doente. Parece um anacronismo, só ali vou porque também eu. E, de tempos a tempos, convém espreitar se o bicho não está à espreita. Passei para as consultas semestrais, o que foi uma escalada imensa na invisível montanha que tenho para subir, algumas vezes com pedrinhas e espinhos que se espetam na minha carne para me fazerem doer a alma. Basta ter uma doença paralela — gastroenterite, como há duas semanas —, que é ali que vou. Uma espécie de oráculo que sabe tudo e tudo resolve às pessoas como eu, doentes oncológicos. Isso obriga-me a lá ir muito mais do que duas vezes por ano. Quando foi das dores de barriga, na espera daquela sala tenebrosa, encontrava-se um senhor com uma peça plástica na garganta. De minuto a minuto, emitia um som de asfixia e assoava-se por ali. Eu sou forte, já vi muitas coisas, já fui sujeita a dores inimagináveis, mas, naquele dia, enfraqueci até ao limite, disse à senhora que estava ao meu lado que ia desmaiar e agarrei a cabeça para poder baixá-la. Pus a possibilidade de bater com a cabeça no chão, mas pareceu-me que qualquer coisa era melhor do que voltar a assistir à agonia do homem. Ela deu-me um rebuçado, abençoada.
Foi ontem a consulta semestral. Enquanto esperava, fiquei numa saleta improvisada do hall dos elevadores. Ao meu lado, estava uma enorme africana, braços largos de abraço gordo — os melhores, não é? —, pés gigantes em chinelas de borracha, trancinhas de extensão vermelhas e um vestido maravilhoso, certamente feito à medida, de florzinhas encarnadas. Apoiou os potentíssimos cotovelos na imensidão das pernas, a cabeça tombou-lhe para as mãos de festas grandes e adormeceu. Assim que o fez, ecoou pela sala, pela outra ao lado e pelo corredor um ressonar, um ressoar, um ronco de exaustão. Ao cabo de vinte minutos fez-se silêncio, parou a ressonância que já me embalava a mim também, e acordou uma cara de criança, lisa e bochechuda, que quase ia jurar já ter visto numa imagem pintada, tamanha era a obediência aos cânones de beleza dela. Levantou-se da cadeira, o quadril gigantesco a bambolear no vestidinho fino e dirigiu-se a um rapaz que eu tomei por ser marido dela, a quem tratou por filho. Ele tinha o tumor mais agressivo que já vi ao vivo: num olho, em metade da cara. Tudo tapado por uma espécie de lenço de tecido fino e uma gaze. Não percebi o nome dele, porque as enfermeiras o trataram sempre por "querido" ou "meu amor". De prender a respiração, este sinal que elas, sem querer, dão.
A mãe, que provavelmente o deu à luz com catorze anos ou menos ainda, estivera afinal a fazer uma reza de leoa, um pedido por conta de uma aflição, uma promessa irrealizável pela sua cria. O trovão que lhe saía da garganta mais não era do que um rugido de leoa acossada.