21/01/2023

Como uma filha

Não sei se tu és crente, filha,

diz-me, à laia de pergunta, aquela que é o legado mais precioso deixado pelo meu pai: uma tia, já velhinha, a quem abraço muito quando — dolorosa porque raramente — nos vemos. Vivemos à distância da primeira para a segunda capital do país, o que parece pouco, mas é muitíssimo, se considerarmos outras distâncias que não constam do mapa. 

Sou, tia — digo, mais para a sossegar, mas não mentindo completamente —, pelo menos, sou uma crente interesseira, pois é d’Ele que me lembro sempre nas maiores aflições, e se eu tenho tido algumas, ou até demais. Mas não me metam com padres, que isso já não dá para mim.

No Verão passado estivemos juntas, pude rever as minhas primas e apertar nos braços aquela que perdeu o único filho para a doença que me queria levar agora a mim. Foram demasiados anos sem poder fazê-lo, esperava dela alguma mágoa, interrogações várias, mas fui encontrá-la apaziguada com a vida, não conformada, mas também não revoltada. Certamente à custa de muita terapia, mas, fundamentalmente, resultado de uma educação de amor e de um carácter limpo e bem estruturado. Sei agora, pelo meu próprio exemplo, por que é que há pessoas que se afastam diante do sofrimento dos outros: ele é insuportável porque reflecte a possibilidade do nosso. Mas também sei agora que nunca mais somos capazes de esquecer esse adeus, se não tivermos a força gigantesca e a delicadeza da minha prima Teresa, mais rara que um diamante entre rochas.

Sabes, filha, eu rezo todas as noites e peço a Deus que me dê uma morte suave. Peço também pelas minhas filhas e por ti, não peço por mais ninguém.

[Nem pelos netos, nem pelos bisnetos?]

É que te tenho a ti como uma filha.

E aquilo caiu-me dentro do peito: a irmã do meu pai, que tanto mo lembra, agora é minha mãe, e isso faz um sentido tão certo que não contesto e agradeço toscamente, “Ai que bom, agora tenho outra vez mãe”.