29/09/2021

A mulher que podia ser minha mãe #4

chega, visivelmente nervosa, à entrada de um dos quatro elevadores do edifício. Na cabeça dela, vem atrasada, como o senhor coelho da Alice maravilhosa, sempre com pressa sabe-se lá para quê. Estou acompanhada por duas filhas, já somos três no elevador — cuja capacidade é de oito almas despenadas —, em não me falhando a matemática da contagem pelos olhos, adquirida ainda anteriormente à efectuada pelos dedos. Hesita se entra connosco, 

Já estão três, comigo quatro —, o miolinho a começar a fritar.

Sim, mas a capacidade é de oito, ainda que vá com metade, quatro é razoável.

Três mais um, é igual a quatro; oito a dividir por dois, é igual a quatro —, claramente que se trata de um raciocínio paralelo com uma qualquer fórmula utilizada na Física Quântica, percebo no pestanejar miudinho, nas reviravoltas dos globos oculares, no murmúrio quatro, somos quatro, que toda ela é combustão, enquanto seguro a porta, entre o incrédula e o expectante. Põe um pé dentro do elevador, Podemos ir juntas, já nos conhecemos há tantos anos, e é no momento em que liberto a célula que ela bate em retirada, Não, é melhor não, e se dirige para outro elevador.

Pareceu-me daquelas situações em que alguém vai apanhar um avião e, por alguma razão, não embarca, e depois a coisa despenha-se. Só não percebi muito bem se era suposto, para que todo aquele episódio fizesse alguma lógica, qual dos elevadores despencar-se, o nosso ou o dela. 

E depois o maluco sou eu.


28/09/2021

Relação de causa-efeito?

Creio que vai sair-me um volátil, porém guinchado, desabafo.

A miúda do andar de cima continua a gritar. Está aos berros desde o início da pandemia. Passou do ano e meio de vida para os três anos, sempre aos guinchos. Gostaria de saber se são as crianças-covid, chamemos-lhes assim — então não há as crianças-galinha e as crianças-lobo? —, que são mais irascíveis do que as de gerações anteriores, ou se sou eu que estou mais intolerante. Desde a praia, ao campo, à montanha, à cidade, à aldeia, para onde quer que me volte, há uma criança aos brados, ou aos silvos,  atingindo agudos insuportáveis ao fino tímpano da comum mortal. Já considerei mesmo se não será antes a minha cabeça que fabrica estes ruídos, só para me irritar a mim. 

Mas não era isto que vinha hoje partilhar. Até comecei bem, contudo a pluma leva-me por caminhos. 

A criança do andar de cima. 

Julgo, não percebendo grande coisa de materiais de construção, menos ainda de Física, que, sendo a água boa condutora do som, as casas de banho, sejam na Buraca ou na Lapa, são “excelentes” locais para — em querendo, e daí as aspas, ou mesmo que não —conhecer um pouco da vida íntima dos vizinhos.

A miúda do andar acima do meu. E o pai da miúda.

Há largos meses que começo os meus dias brindada pelo chinfrim que fazem as cordas vocais da filha e o intestino grosso do pai. Pronto, já disse, agora não posso desdizer. 

Resta-me saber, já que os dois ruídos me entram paredes — chão com tecto — adentro enquanto me maquilho, se existe uma relação de causa-efeito entre o silvo da filha e o flato do pai. Qual provoca qual?, é a enorme questão. A filha desvaria quando o pai se deslarga, ou o homem tem um acesso flatulento quando a criança guincha? Eventualmente, nunca saberei. Ou se, simplesmente, se trata de mera coincidência, por simbiose biológica?

Pergunto-me amiúde, mas (ainda) não me respondo, em que estado estarão os nervos daquela mãe. Imagine-se, se eu, que só moro umas quantas vigas + pladures abaixo, sinto que corro o risco de errar o risco e enfiar o lápis de olhos num olho, que direi dela? Será menos arriscado se não se maquilhar, concluo. 



26/09/2021

26 de Setembro

Muitos, muitos anos no corpo miudinho de pele escura, apoiado na canadiana, cabelo branco como algodão, há-de ter sido por tudo isso que o encarregado da Junta lhe soprou ao ouvido que podia passar à frente na fila para votar. Outra Maria, fico sempre com as Marias, e há sempre muitas, de todas as idades, tamanhos e feitios. Não quis exercer a prioridade, e, no entanto, por não me ter visto — demasiado grande, de calças vermelhas, invisível a esse ponto —, colocou-se à minha frente, e eu permiti, em silêncio. Amarga, a mulher Maria que lhe calhou à frente, virou a cabeça penteada com rolos postos em casa, óculos de aros dourados, nariz pontiagudo e boca desaparecida na ruga da contrariedade, também ela próxima do mesmo motivo de prioridade, Tem que manter a distância de segurança, mas Maria boa — Mariazinha —, não entendeu ou não ouviu o que disse Maria má, pois as pessoas boas vivem noutro comprimento de onda e não escutam, por não captarem, o ruído, ora sicioso, ora num silvo, da maldade. Assim, deixou-se estar, encostada à muleta, a muleta apoiada à parede, enquanto Maria má, sacudindo os ombros e estalando saliva, se afastava o suficiente para não respirar o mesmo ar que a Mariazinha — tanto, mas tanto, que foi ficar quase colada a Maria neutra, que esperava vez à sua frente. 

E eu, Maria inútil, para ali fiquei, calada, desconhecendo-me, toldada de raiva e mágoa, encostada à mesma parede, sem muleta, Mariazinha, podia ser a minha mãe, podia ser a minha mãe.


23/09/2021

Com amigas assim, quem precisa de... (outras) amigas?

Enquanto me hospitalizaram e eu não tinha mais nada para fazer, a não ser, aparentemente, arranjar modos vários de não me darem alta, dei-me a um estudo antropológico das minhas amizades, através das mensagens SMS que recebia, nalguns casos bi-diariamente, noutros penta-diariamente, ou até ad-nauseum-diariamente, tendo chegado à conclusão que sim, talvez, quem sabe, é possível que seja verdade que atrais aquilo que és. (Enfim, isto não pode ser levado ao rigor rigoroso, caso contrário seríamos todas belíssimas, e não somos. Percebem?) Bom, em primeiro lugar, apercebi-me de que tenho muito mais amigas mulheres do que homens. Vá-se lá perceber porquê, os homens não costumam ser meus amiguinhos. Olhem, ide-vos encher de moscardos, já não vão aos meus anos.

Quase posso afirmar que saí do hospital com uma carrada de stress pós-traumático digna de ir directa para a Psiquiatria. As pessoas não têm consciência da profusão de mensagens (e não telefonemas porque cortei o canal logo pela raiz) que uma humana recebe quando internada, às quais não consegue dar vazão, só lhe restando uma de duas alternativas: ou responde, ou ignora. E acontece que grande parte das mensagens contém trinta perguntas, não se contentando o emissor, depois receptor, com um simples: "Estou melhor". É um "Já falaste com o médico?", "Já comeste?", "Já cagaste?", “O que é que surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?”. A sério, pessoas? 

Não consigo, assim de cabeça(da), eleger a best friend forever of das minhas mensageiras, sem que me sinta mal-agradecida ou malévola. Ou injusta, pois a verdade é que tal nem é possível, já que houve duas que ficaram ex aequo na capacidade de serem, como dizer…? Um ferro. Uma mala. Uma sarna.

1. A amiga que todos os dias me mandou mensagem de como estás, à qual respondi, imaginem o que quiserem, pois, indiferentemente do que dissesse, contra-respondia: “É uma recuperação muito lenta”. Imagine-se que a minha resposta à primeira abordagem do dia era: “Estou excelente, aos pulos na cama, já ensaiei o triplo mortal encapado à retaguarda com dupla pirueta”, que sim, lá vinha a contra-resposta pré-fabricada. Um dia enviou-me um longo texto a relatar que ficou presa na varanda e teve que chamar quem passava na rua, mas quem se passou fui eu, e então não dei resposta. Esperava-me uma recuperação muito lenta, nomeadamente deste tipo de interacção;

2. A amiga que todos os dias quis saber notícias, e, tal como a outra, tinha uma contra-resposta-tipo: “O que é que disse o médico?”, porque, convenhamos, ninguém melhor do que o médico — que, por vezes, ainda nem tinha feito a ronda e, quando já, tinha estado comigo, na loucura (não nessa loucura), dez minutos por dia —, sabia como é que eu me sentia. Um dia, à laia de solidariedade na saúde e na doença, disse-me que o marido estava com uma prostatite, e eu, impossibilitada de esgrimir de igual para igual esta espécie de argumento, já que nasci sem próstata, não respondi.

Para elas — se me lessem, mas felizmente que não, pois esta revolta sem reviravolta mágoa há-de passar-me (a tal recuperação muito lenta?) —, mas especialmente para mim, vale o lema: “Se não tens nada de útil ou agradável para dizer, simplesmente mantém-te calado”.


22/09/2021

Às vezes, também eu vivo no limite

Rosinha, minha canoa, transmutou-se, por motivos não óbvios, mas vários, num carro partilhado do lar que acolhe estes ossos que agora aqui escrevem. Meu boi envelheceu drasticamente, talvez nem seja possível arranjar-lhe novo dono, encontrando-se apenas à espera que um meteorito venha dar-lhe paz, o que pode nunca vir a acontecer, pois está jazendo na garagem.

Depois, acontecem episódios destes: pessoa humana liga a ignição de Rosinha, toda lampeira que vai dar um giro, e lê o sinal de falta de combustível. Havia emprestado a viatura a uma das crianças durante a manhã, ou melhor, um dos consortes havia feito uso do bem comum. Quando aquele sinal se ilumina, costuma carregar lá no botão que avisa quantos quilómetros ainda pode percorrer sem ficar apeada de colete reflector vestido e ar compungido numa qualquer estrada da vida. Digamos que deu 0. Zero. Dava para, tipo, minha gente, zero. Zero mais zero, é igual a zero. Podia, em suma, ligar o motor e ficar dentro do carro estacionado, à espera que ele se desligasse naquilo a que os antigos chamavam o peido mestre. 

Raciocinando soluções, ir buscar um jerrican de gasóleo era qualquer coisa de impensável: as quatro bombas mais próximas, equidistantes, todas a mil e quinhentos metros: uma a direito, duas a subir, outra a descer. Três mil metros de saltos altos não me pareceu fazível, pelo que se está mesmo a ver qual das quatro escolhi: se tudo falhasse, era destravar Rosinha e weeeee, lá vai disto. Pois, porque empurrar a coisa, lá está, de saltos altos, nem falecida, quanto mais a vender saúde. 

Enfim, ar condicionado desligado, vidros abertos, um quilómetro e meio de rezas e algumas promessas — nomeadamente, “Apagas-te agora e nunca mais levas Evologic” —, transgressão muito bem efectuada com vista a atalhar caminho, lá levei Rosinha até à manjedoura com tranquilidade. Para ela, porque a pessoa condutora ia nuns nervos tais, que desconhece ainda hoje como é que não entrou em auto-combustão, agravada pela profusão, no local, de combustível, passe o pleonasmo.

Ainda não foi desta que estreei o colete (tamanho XXL, não acho normal. Terei que lhe fazer uns ajustes e personalizá-lo com um cinto, ou assim), nem tive que adoptar aquele semblante de vítima do infortúnio.


20/09/2021

RESPECT

Se acharem que é spoiler, é não lerem # 15

Hum, não sei o que diga. Moí os ossos ao meu povo para que algum deles me acompanhasse a ver esta fita. Quase tive que ameaçar deslargar o lar para todo o sempre, cortar os pulsos (de um deles, não os meus) ou fazer greve de fome até ficar igual à Claudia Schiffer, mas em morena e bela. Está bem que podia bem ter ido sozinha, porém deu-me a birra e queria levar pessoas. Consegui convencer, através de suborno, uma única que se prestou e lá foi comigo. E, no final das contas feitas, apanhámos uma pastilha de duas horas e meia sem intervalo [carinho e amor para o legislador que permitiu o regresso do balde de pipoca à sala, pelo que pude permanecer desmascarada durante todo o filme, a chafurdar-me naquilo], a ponto de praticamente ter-me visto na contingência de ter que lhe pedir desculpas e de a indemnizar, para confirmar a óbvia conclusão de que, para se ter algum sucesso — e (consequente?) queda retumbante ao fim de meia dúzia de anos — no showbiz, há que abraçar as drogas ou ser-se naturalmente um bom borracholas. Parece que o plateau não é para sóbrios.



19/09/2021

Disparidades

Convocada para estar presente numa reunião com o homem do gabinete sem janelas, que toda a gente da minha família (a qual, conforme é sabido, é algo numerosa) — menos eu — já conhecia, entro e a primeira coisa em que reparo — fora o facto de não haver janelas, não sei se já disse —, é que ele tem um braço mais curto do que o outro. Terminada a reunião, comento com quem me acompanhou que não sabia que o homem tinha uma assimetria nos braços, e vá que não fiquei muito espantada que a minha companhia não tivesse em tal reparado, pois que é distraída, pois também que o assunto que nos levava ali era de maior absorção para ela do que para mim. Chegada ao lar, faço uma alusão ao facto, e não é que os restantes elementos da prole — um dos quais jogou à bola durante anos com o referido — me garantem que nunca deram por nada? Pessoas, eu estou a falar de uma diferença de vários centímetros, tendo em conta que o braço esquerdo do homem está em permanente ângulo de noventa graus. Qualquer coisa de evidente, que salta e pula à vista desarmada. Porém, explicações para semelhante mistério, já equacionei N:

1. Vi mal. Estive com ele à frente cerca de meia hora, mas foram trinta minutos de ilusão de óptica/ delírio/ alucinação;

2. Ele estava com uma cãibra ao nível do cotovelo, perfeitamente indisfarçável;

3. O homem comprou um fato num saldo, made in Tiroliro, e o molde de um dos braços era totalmente diferente do outro;

4. O homem teve um pequeno AVC assim que me viu, que basicamente disfarçou como pôde, ou seja, mal;

5. O homem já nasceu assim e eu estou rodeada de distraídos.


17/09/2021

Inoculada = chipada?

Aqui há coisa de dias submeti-me À vacina. [Eu digo vacina com o primeiro A fechado. Estimo que quem diz vácina pondere muito bem como é que pronuncia quando, em vez do C, está um G.] Ia assim meio a medo que demorasse, não a entrada do líquido na chicha, mas entre o ir e o voltar, recobro incluído. Uma desilusão, nada para contar: militares desde a entrada até à saída, parecia que tinha entrado em, sei lá, Cuba, ou então num quartel-general, tudo muito musculado, só faltou baterem continência aqui à idosa, era da maneira em como lhes fazia o mesmo. Logo à chegada, um militar giro, grisalho e vestido de camuflado — olhem, podia ter que se esconder, assim de repente, na mata adjacente ao pavilhão, e ficava logo invisível, enquanto mulher-coragem dava o corpo às balas —, disse-me que não podia deixar-me entrar, mas hahahaha, era só uma piada. Lá dentro, o chão de acesso ao pavilhão muito torto, claro que perguntei ao senhor que ali estava se era para verificarem quem é que chegava ali sóbrio. Preenchido um questionário (Tem febre? Tem caspa? Doem-lhe os rinzes?) num sitinho tipo sala de actividades do jardim de infância, fui encaminhada para o espaço dos leprosos das pessoas que já tiveram covid e, por conseguinte, só merecem uma dose, logo chamada para uma espécie de gabinete, onde uma belíssima e simpatiquérrima militar me inoculou/ me salvou a vida, ou, nas cabeças mais torturadas, me injectou o chip para Alguém me controlar (calma, que eu sou tão interessante, que haverá neste mundo quem o queira fazer), ou, no limite, me transformar num jacaré. Olhe, pode antes ser aquele lagarto da Lacoste?
(Passei vinte e quatro horas com dores no braço e a sensação de estar outra vez covidada, mas depois passou tudo. Estou como nova, tipo botox.) (O FBI ainda não me contactou, não se percebe esta lentidão nas merdas.)

15/09/2021

Eu tenho problemas com médicos # 25

Naquela consulta na médica das miudezas, que uma pessoa mulher só reza para que passe rápido, ou, em alternativa, que o tecto tenha uma réplica das imagens da Capela Sistina, mas que também podia ser um filme da Disney, ou qualquer outra forma de fuga em frente, dizia-me a querida doutora, olhos postos no ecrã e sorriso nos lábios atrás da máscara, que tenho um útero limpo, liso, sem irregularidades nem pólipos nem quistos (só faltou chamar-lhe lindo e maravilhoso, mas eu percebi), muito bem operado por quatro vezes, sem cicatrizes nem aberturas, ou seja, oco, vazio, como se quer, e então, amolecida derivado a tantos elogios uterinos, e um bocado para fazer conversa de circunstância — já que o tecto, ainda por cima, era branco e liso (ninguém merece) —, perguntei:

- Nem pessoas?

- Como?

- Não tem nenhuma pessoa lá dentro?

Não que pudesse ser ou de tal suspeitasse, mas nada como confirmar pela opinião do mecânico que as vielas estão on top.


14/09/2021

O novo anormal

Vamos imaginar que uma pessoa humana se dirige a uma filial do “seu” banco, ou daquele onde deposita, senão as suas esperanças, pelo menos as suas parcas economias, com vista a deixar lá umas notas e, assim, reforçar a possibilidade de a instituição bancária lhe abafar uma módica quantia mensal justificada por, vá, despesas de manutenção, seja lá o que isso for. Então, entra, dirige-se a algo que antes foi um balcão de atendimento ao público, mas que se transformou, num passe de mágica — ou terá sido doble? —, na secretária de quatro pernas de alguém que está supinamente aborrecido com a vida no seu geral e com a entrada de uma freguesa no seu particular, deseja bom dia e confessa que pretende efectuar um depósito em numerário. Que não, que já não fazem semelhante operação, que agora é ali naquelas máquinas. Plantada a dita coitada diante das mesmas, verifica, um nico atónita, que se trata de duas colunas siamesas, sendo a da esquerda muito parecida com um vulgar multibanco e a da direita com um triturador de papel, mas em grande. Pondera em que ranhura há-de enfiar o cartão, que descobre na coluna esquerda, mas não arrisca. Há um botão touch a dizer qualquer coisa como “fazer como na aplicação”, toucha aí e não acontece nada. Depois mira a trituradora, equaciona enfiar ali as notas e seja o que Deus Nosso Senhor quiser, mas debate-se interiormente com a possibilidade de a massa lhe sair feita em esparguete por algum buraco invisível, e demove-se. 

Imaginemos que a cena ainda durou o quê? Vá, entre três e quatro minutos. Sem manual de instruções, sem que o funcionário desalapasse a peida da cadeira (Facebook oblige), sem qualquer orientação vinda do Além, ala que se faz tarde, mais vale meter o conteúdo dos bolsos no colchão, que ao menos a humana sabe como fazer e não lhe come comissão nenhuma. Como antigamente, acrescente-se.

11/09/2021

Onde andavas tu?

Em casa. Nesse tempo, eu era feita do material de uma bolha protectora. Tinha um bebé com um ano, que tinha acabado de almoçar e estava a deitá-lo para a sesta. Tinha uma menina com dois anos e meio, uma com quase cinco  — que tinha rachado os queixos dias antes e não parava de pular (ainda hoje, minha cabrinha Mimi) — e uma com quase sete. O mundo mudava lá fora, mas, não fora o telefonema de uma comadre das minhas, e não teria sabido de nada. Desconheço por quanto tempo mais duraria a minha ignorância, mas estou certa que, se soubesse o que sei hoje, nunca teria deixado rebentar a querida bolha.

(Curiosamente, o dia 11 de Setembro estava — e está — gravado no meu coração como a DPP de abertura e encerramento da minha maternidade.)


09/09/2021

Não lhe dês peixe

A história andou sempre à volta de um carreto no bolso, que o segurança do supermercado viu, sabe-se lá se à transparência, se tinha mesmo assistido à prática do furto, era para uma cana de pesca do homem já velhinho, não levava mais nada quando passou a linha de caixa sem pagar, nem um peixe, nem uma côdea, só mesmo o carreto, e então escutei o estrondo do silêncio na sala quando ele explicou que era para ver se conseguia pescar alguma coisinha para comer.


08/09/2021

Faça chuva ou faça sol

Primeiro, apenas uns pingos que diz que só molham os tolos, ia já a caminho do meu destino, estrada fora, bem sozinha, mas não para levar o lanche à minha avozinha, nem descalça para a fonte pela verdura, lá ia eu, e a água em gotas a cair-me na cabeça, nos braços e nas pernas à mostra, mas quem me mandou sair de vestido branco e leve como um véu, com um céu óbvio de chumbo? Cheguei bem borrifada, como antigamente se punha a roupa "boa para o ferro" — havia até uns frascos de plástico que diziam "Borrifador", não fosse uma pessoa pequena confundir aquilo com uma bisnaga de Carnaval —, aviei-me dos avios que ali me levavam, mas, à saída, já caía água a jorros lá de cima, sem sequer alguém avisar "água vai". O senhor que veio lá da terra das especiarias (que ainda não percebi se Índia ou Bangladesh, pois fala um Português enviesado que não responde às minhas dúvidas) emprestou-me um guarda-chuva que daria para guarda-sol, tamanho era o tamanho dele, e deste modo voltava para o lar quando descobri, debaixo de umas arcadas, uma mulher encharcada, feita pássaro apanhado na cheia, tiritando discretamente, e então meti-a debaixo do guarda-chuvasol e deixei-a no destino dela, não seca porque não há milagres, mas cheia de luz e festa por ter tido semelhante sorte, e percorri os poucos metros que me faltavam, eu sim inundada até aos ossos — parece que o chapéu encolheu entretanto, e o distanciamento social imposto só deu pano que chegasse para uma, que foi ela —, não sei se de água, não sei se de sol. 

06/09/2021

A mulher que podia ser minha mãe #3

quis calçar-me uns sapatinhos todos rotos e eu não deixei. Tinha acabado de chegar e vinha cheia de excesso de informação, como sempre, mas, naquele dia, eram gritos que saíam de toda ela: leggings de flores garridas, top rosa salmão e casaquinho rosa cerise em cima, brincos e óculos de sol de plástico vermelhos, e a máscara, isso é que eu não perdoo, a máscara bordeaux, cirúrgica, descartável. Expliquei que os sapatinhos, com que ela pretendia vestir as minhas sandálias para as proteger do vírus, tinham furos dos saltos dos sapatos de outra mulher, e que, por conseguinte, aquilo era uma falta de higiene. Ficou maluca, destravou a língua, argumentou que os lava com lixívia e álcool-gel, que os manda vir do estrangeiro, que, caso tivesse que dar um par a cada pessoa que ali entrasse, teria que acrescentar cinco euros à conta. Depois fiquei maluca eu, respondi-lhe que essa lavagem fica mais cara do que comprar pares novos, que se vendem no chinês de Alvalade, e que, para a próxima vez, levo um par comprado lá por mim.


04/09/2021

A mulher que podia ser minha mãe #2

pergunta-me, à chegada e à queima-roupa, se estou grávida. Fica imediatamente atarantada com a minha não sei se exagerada incredulidade, de tal forma que não respondo. Levo um vestido de corte império, que me faz napoleónica e bonapártica, mas também barriguda. Posso igualmente estar com os enchidos cheios, mas não será de ar daquele que sai intempestivamente (porque eu sou uma senhora e não faço essas coisas), ou, sendo, há-de sair integralmente por cima (discretamente, minhas mini-narinas afora, em ventinhos paralelos), se Deus quiser e o discurso de absurdas desculpas dela não continuar ao ritmo alucinante que já leva no embalo. Afirma agora  que estou mais magra, eu que a balança diz que não, e lembro-me que aquele mesmo vestido tem catorze anos e ainda cá mora. Nunca perguntes a uma gorda nem a uma multípara cujo filho mais novo tem vinte e um anos se está grávida. Efectivamente, nunca perguntes.