19/03/2018

o odor do amor

Houve aquele momento em que ele pediu que, de olhos fechados, nos lembrássemos das três mais remotas recordações da nossa infância. Não preciso de fechar os olhos para saber que todas as que trago guardadas em mim há mais tempo estão ligadas ao olfacto: tenho comigo o cheiro da minha mãe, da sua pele branca e lisa, orvalhada de um perfume desaparecido há muitos anos, dando-me que pensar se esse não terá sido também o ponto da sua partida. Conservo intacto o cheiro do meu pai, dos abraços com braços pequeninos e de cabeça encostada às pernas dele, ao abdómen, mais tarde ao coração, e a passagem neles da certeza de que tudo estava bem e de estar num abrigo que jamais me faltaria. Ficaram-me outros tantos odores só meus, do mar da Costa, dos pinheiros carregados de resina, da lareira no Alentejo, das azeitonas nos alguidares de barro, dos tarros de cortiça, da casa da minha avó no Porto, dos móveis passados a óleo de cedro da minha Titi, das sardinheiras da sua varanda, dos lápis de cera e dos pincéis na escola, das sardinhas na Feira, e do vento, que nunca mais cheirou da mesma maneira. Todos são irrepetíveis mas eternos, se calhar por serem meus, apesar de eu já não ser aquela mesma. 
E os olhos do meu pai. Havia também neles um odor de desvelo e entrega, que era o odor do amor.
Calhou ser Dia do Pai e ele fazer aquela pergunta, logo hoje, dia em que ele próprio comemora o seu primeiro Dia como Pai.
Calhou ter feito uma longa pausa, quando chegou a minha vez. Assim que a voz me voltou, falei-lhe das incontáveis vezes em que parti a cabeça, do primeiro dia de jardim de infância e da quantidade de bonecas que tinha para cuidar.


12 comentários:

  1. O meu livro favorito da literatura portuguesa do século XX começa assim, precisamente, esta é a primeira frase: A família do Juíz de Instrução morava do outro lado do terreiro da feira (que visitado anos depois era muito mais pequeno do que em criança lhe parecia), para lá dos ciprestes do colégio e da casa do médico amparada a goivos e a sombras, na parte da vila que cresceu, frente às névoas do Caramulo, em ruelas mais estreitas ainda, afogando os destroços da sinagoga num labirinto de palheiros.

    Tive uma infância belíssima. :)

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    1. Só podia ser dele :)

      A minha foi boa, mas já foi há tantos anos que nem me quero lembrar! :)

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    2. Sabes de quem é? :)

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    3. Mr. Google também ajudou, mas apenas confirmou um forte palpite :)

      http://lindaporcaoucheirodeestrume.blogspot.pt/2017/12/estado-civil.html?m=1

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    4. que comentário fiz eu nesse post, meu Deus! sempre tive esta relação amor/ódio com o Lobo Antunes; tudo bem. acho que ultimamente tenho regressado ao universo dele com maior prazer. Desculpa-me, Antunes. E boa noite, Blue.

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    5. Mas isso é normal, acho eu: também tenho moods, épocas, alturas, umas em que amo, outras em que detesto. E não achas que ele ficaria satisfeito por saber que mexe com os leitores, para o bem e para o mal?
      Oh, pá, ele é genial! :)
      Boa noite, Diogo :)

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    6. sem dúvida que sim... só mostra quantas faces tem a leitura, arriscaria dizer, a vida, de um livro de Lobo Antunes. melhor elogio não se lhe pode fazer. todo o artista deseja essa ambiguidade, ferocidade. mistério eh tão bom, uh uh. :)

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    7. Sobretudo, o não ficar indiferente.
      Está criado o cordão humano pró-Lobo bom. Dá cá a mão :)

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  2. Respostas
    1. O mesmíssimo que eu ia pôr no teu, da medida do amor :*

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