20/10/2017

Tranquilidade

Tinha andado todo o dia arredada, lá na sua vidinha ocupada de afazeres vários e tantos, agenda lotada de minudências e maiorências, tudo muito alheador e incapacitante de se actualizar. No telefone sobredotado, de vez em quando uma notificação, as redes a ferver, ai, as redes, por tudo e por nada movidas a sangue e suor, havia de ser assunto de lágrimas, já vejo, já vejo, agora não posso, ó Gabriela, despache lá isso, que eu tenho pressa, levo o verniz a secar pelo caminho, abano as mãos ao pé do ar condicionado do carro e ficam boas até sair, já na garagem. Estou aqui farta de receber mensagens, castigam-me pelo sms, pelo whatsapp, pelo face, até no insta já tenho coisas, diz que arde tudo lá para longe, e eu aqui sem saber.
Passagem breve pelo cabeleireiro chique do centro, no supermercado, mesmo ao lado, estão a pedir comida e artigos, passa rápido, senão ainda vêm atrás dela, só quer ir comprar a espuma do cabelo, sem ela é como se estivesse nua, não pode sair assim para a rua. 
No fofo do roupão branco, banho morno tomado até aos cabelos, refeição leve deixada preparada pela outra — como é que ela se chama? Sei que também tem um nome de novela brasileira, acho que é Simone, ou é Elis? Cantora, então, mas brasileira, pois —, tem que ser leve, pois leve é a vida e o Mundo é dos magros e daqueles que não precisam de comida, comer é coisa de pobre. Plasma ligado, as notícias dizem o mesmo que as redes, morreu outra vez tanta gente, o fogo levou-lhes a vida, os pais, os filhos, a casa onde moravam. Ouve falar de luto nacional, o segundo em quatro meses. Mas que aborrecimento. E agora? 
Tem que dizer alguma coisa a esse Mundo, não vá passar por insensível, ou, pior que tudo, ignorante. 
Abre a página virtual, cola-lhe a bandeira do país, não verifica se está graficamente correcta, mas o que é que isso interessa, se o que interessa é, apesar de tudo, o pesar? Ao lado, cola-lhe a fita do luto, escreve a frase que nunca nada diz, mas lhe parece dizer tudo, "Não há palavras", pois não há palavras precisamente para quem não as encontra por não as procurar na alma, desliga o PC e adormece, finalmente em paz.

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