21/04/2017

uma gota no oceano

Tocaram-me à porta, como quem me toca no coração. Do lado de lá da placa de madeira que nos separava, a voz de um de dois, macia e delicada, anunciava a UNICEF. Ficaram felizes por saber que haviam batido à porta errada, pois que atrás dela encontraram uma pessoa já Amiga da UNICEF — designação que me enche de orgulho e tomara que maior paz —, o que fez cair pelo pó da terra a necessidade de convencerem mais uma a contribuir (o verbo ajudar faz-me tremer as penas). Porque ainda é preciso bater porta a porta — e quantas permanecem encerradas? —, pedir e mostrar as caras de quem foi socorrido pela UNICEF (os voluntários são quase todos antigas vítimas de flagelos) para que quem não é necessitado do básico (água e comida, não me refiro sequer a electricidade e gás, tão pouco a combustível e uma cama fofa) perceba que metade da população mundial vive abaixo da linha (que irónico, chamar linha a uma fronteira tão trágica) da pobreza. E que essa linha é uma corda grossa que agrilhoa o pescoço, da qual nenhum de nós está livre, bastando apenas estarmos no epicentro errado de uma catástrofe natural ou de uma guerra, para que a aparência de tranquilidade em que vivemos — nós, do lado de da linha — possa alterar-se de um minuto para o outro.  
Ainda tenho na memória os negros olhos do jovem que, um dia, me bateu àquela mesma porta e se apresentou como voluntário da UNICEF. Vinha propor-me uma contribuição mensal mínima para que todos os dias uma criança pudesse ser vacinada. Também guardei no coração o brilho aquático daquelas duas doces azeitonas, ao ver-me assinar os papeis sem um pestanejar das minhas, quando confessou "Eu também fui uma criança dessas, e foi a UNICEF que me salvou". 
Agora, com toda a celeuma à volta do tema "Vacinação - sim ou não?", questiono-me se um destes dias não serei vista como uma contribuidora para a dizimação massiva da população do lado de . Estou há anos a vacinar uma criança por dia. Passaram de mil as crianças que contribuí para vacinar. Pergunto-me ainda que alternativa apresentariam as facções anti-vacinação se singrasse entre nós, povos evoluídos e assépticos, a cólera, a diarreia, a febre tifóide, a febre amarela, só para início de uma conversa que não deveria ter que existir. Quero acreditar que passaram de mil as vezes que fintámos a doença e a morte, juntos, as crianças, a UNICEF e eu. E é dessa paz que falo ali em cima: não o apaziguamento das consciências, o deixa cá dormir na minha cama fofa sem pensar que há pessoas deitadas em chão de terra com a barriga vazia de alimento e cheia de subnutrição, e sim porque o caminho para a Paz se percorre com passos pequenos, é certo, mas firmes e perseverantes.
E eu sou apenas uma gota no oceano, mas também faço parte dele.


4 comentários:

  1. Anónimo21/4/17

    Pena que ainda seja preciso bater de porta em porta e imagino o que sentiste ao ouvir o rapaz dizer que FOI uma criança a quem a UNICEF ajudou. Se ajudas, tens bom coração. :)
    AINDA não contribuo para...
    MAS sou madrinha de uma criança através da Helpo, e sinto-me realmente bem ao saber que faço o bem. Com muito ou pouco, todos juntos somos mais fortes.

    Vacinação - sim ou não? O caso da rapariga de 17 anos que faleceu e tem dado que falar, dá realmente que pensar. Não sei se consigo imaginar a dor daqueles pais e talvez o eterno arrependimento, remorso...
    É que as pessoas não vivem em redomas, convivem com os outros, ou seja... Exacto!

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    1. É nesse pouco que está a diferença entre fazer e não fazer. São quantias que nem sentimos no porta-moedas e que salvam vidas, ou participam no bem estar de alguém.
      :)
      Ao que sei, a rapariga não podia ser vacinada. Não conheço os contornos da história nem tenho conhecimentos científicos para saber se isso pode ser assim. A verdade é que teve uma sucessão de azares, sofrendo consequências nefastas de uma doença que é benigna. Quanto aos pais, coitados, espero que não sofram de remorsos nenhuns, pois já é suficientemente dura a mágoa que têm para penar eternamente.

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  2. Anónimo21/4/17

    Já ouvi várias versões. Em caso de doença e problemas com a vacinação, já é mau demais a rapariga ter falecido tão jovem. Que os pais não se sintam culpados e com remorsos, obviamente.
    Perder alguém é sempre duro e não, nunca esquecemos.

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    1. A desinformação é sempre tanta que temos que aprender a filtrar e, mesmo assim...
      Sei que não queria estar na pele deles. É a vida ao contrário.

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