Ora, tudo isto para dizer que com uma única atitude da minha parte, consegui o desalento em três pessoas humanas, embora uma delas não devesse contar para este cômputo, já que é a pessoa propriamente dita.
Então, eu sou freguesa de Santa Ana, a cabeleireira mais santa do meu bairro, que me faz as vontadinhas (quase) todas, que sabe o significado de dois milímetros, que percebe que alguém só goste de lavar a cabeça com água fria — mesmo no pino do Inverno —, que se abstém de comentar quando lhe adentra a porta uma mulher que se recusa a pôr creme nas pontas porque lhe põe o cabelo numa nhanha, e lhe diz que lava o cabelo com Johnson's* — tudo isto junto na mesma despenteada.
Mas deu-se que me senti compelida — não foi bem tentada — a traí-la, indo a outra. Olhem, farta de uma gripe, farta de não ter tempo, farta a priori da ideia de me enfiar num cabeleireiro cheio de mulheres pré-Natal (não confundir com grávidas), farta de ter que encaixar os meus horários espartanos nos espartilhos dos horários da minha Ana, fui-me à Célia, moça de voz de desenho animado, queixo de desdém e olhar por cima da burra lá dela. Defequei, estava tão doente e tão impaciente, que entrei lá no salão e disse assim: "Olhe, pinte. A cor é esta". Vai ela e pergunta: "Isso é o quê?". Ora, ao invés de ficar logo desconfiada, logo eu, que sou tão dada, retorqui, pormenorizando: "É castanho escuro, não é preto".
Só agora que relato isto é que me apercebo que Célia sofrerá não só do tal desdém ao nível mandibular, como também de daltonismo, memória curta e surdez selectiva. Das minhas singelas e translúcidas frases, há-de ter retido apenas "pinte" e "preto" — pois que me pintou a melena de preto.
No dia seguinte, acordei triste (primeira coelha morta) e dirigi-me ao estabelecimento de Célia, com vista a que me refizesse a cor natural que a Natureza me deu. Célia olhou-me com aquele olhar, esganiçou-se naquele timbre de desenho animado que só Melanie Griffith consegue bater, e respondeu assim à minha súplica: "Preto? Ai, desculpe, mas isso é castanho, até tem uns reflexos dourados". Confirmado o daltonismo, rodei os calcanhares, fazendo, literalmente, uma pequena dança de salão, e saí para nunca mais voltar. (Segunda coelha morta.)
Liguei então à minha Ana, confessei-lhe tudo (terceira coelha morta), pedi clemência e um nico de perdão. Que nada a fazer, que é ir lavando para a tinta sair, que é esperar que passe, que é dar tempo ao tempo. Desliguei o telefone com o som amargo das palavras dela ainda dentro dos ouvidos.
Tenho lavado amiúde o cabelo (preto).
Tenho lavado amiúde o cabelo (preto).
* NMPPI, mas eu também não disse que tenho um cabelo espectacular.
NMPPI ?
ResponderEliminarÉ logo assim ?
Serei eu a interpretar mal ?
Dá lá umas dicas.
É uma sigla, não acrónima, de "Ninguém me paga para isto".
EliminarNem dicas, explicação completa!
eu foi uma ondulação, barra, permanente, com uns bigodis (sei lá como é que escreve) muito largos, e tudo muito para ir controlando um cabelo que nem é carne, nem é peixe, umas vezes, sim, outras, nem tanto, e foi na minha cabeleireira de sempre, e ela trouxe aquela técnica de um sítio bué de fixe, e agora, estou que nem posso, vou alisar o cabelo duas vezes por semana. não se aguenta. solidariedade total. abraços e uma pequena lágrima que teima em não sair. vou picar cebola.
ResponderEliminarbeijinhos, Linda.
Dá-lhe com uma boa espuma de pentear, que a ondulação agradece e assenta um pouco. Tecni Art*, e não digas que vais da minha parte. (Quem rima sem querer é amado sem saber.) E espera um pouco, que isso também vai ao lugar em poucas semanas...
EliminarCalma, amiga. Solidária também, been there.
Beijinhos, Mia
*NMPPI
Absolutamente solidária. Já estraçalhei o meu rico cabelo (e é dos bons) com uma ondulação "levíssima" numa Páscoa em que a minha Rosa resolveu ir passear a Sintra!
ResponderEliminarBeijocas, pretinha :P
Vá lá que isto dura menos do que uma ondulação. Mas é uma deprimência, não queria nada passar o ano tão escura.
EliminarObrigada, linda.
Beijinhas :)