24/10/2016

La solitudine

Lembro-me de ter estado doida, numa fase da minha vida. A loucura pode assolar qualquer um, num momento específico do seu percurso, e o meu foi aquele. Tinha uma criança que, com um mês de idade, começou a gritar de manhã até à noite, e depois trocou esta ordem, desde o dia em que uma vizinha nossa nos gabou a sorte, já que uma filha não sei de quem lá das relações dela só berrava de noite, e isto, conforme se sabe, tem uma base altamente científica. A nossa, a seguir, pôs-se a gritar todo o dia, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro, com breves pausas de dez a vinte minutos, em que adormecia, exausta, mas eu não, igualmente exausta. Isto durou até aos cinco meses dela, e depois não parou, mas ou porque abrandou, ou porque ficámos surdos, indiferentes ou totalmente loucos, já não a ouvíamos tanto. Levámo-la ao médico, e ficámos muito contentes porque, logo na sala de espera, estava outra da mesma estirpe, completamente afónica, e a nossa estava só rouca. Era impossível tê-la deitada, ou estendida na cadeirinha: só o colo abrandava um pouco a gritaria. E, para além dela, ainda tínhamos que ouvir palpites de gente que dormia noites inteiras, "Isso é manha" e "Vocês estão tramados". O que valia era que fingíamos que não ouvíamos, o que não era completamente simulado, porque ela literalmente acabou com qualquer interacção que pudéssemos ter com outros adultos. Tive, nessa época, uma oportunidade de trabalho, que foi (mal) tratada por telefone, mas cujas negociações ficaram goradas ao terceiro telefonema, já que não conseguia ouvir o meu interlocutor e, convenhamos, nem ele a mim. Tive também uma pequena obra em casa, coisa para ter durado duas semanas, em que os obreiros se enclausuravam na divisão intervencionada, exactamente para não ouvirem a minha criança, que isto quem lida com martelos e brocas todo o dia tem um ouvido para lá de fino. Também uma empregada se me despediu ao fim de um dia de trabalho, argumentando que "Não aguento o ritmo desta casa", enxofrada porque ela e eu comunicámos por linguagem gestual todo o dia, ao som dos gritos da petiza, que, já disse, não havia processo de se calar. 
Ou havia. Em desespero, quando já não conseguia aguentar mais um único minuto de gritaria que fosse, ligava a aparelhagem, onde já estava pronto o CD, e tocava La Solitudine — volume quase no máximo, o chão da sala vibrando, todo só nosso, parecia um salão de baile, ela no colo, eu com ela ao colo, dançando juntas. E só quando eu cantava alto, mais alto do que ouvia a voz de Laura Pausini, é que ela se calava, e, embalada, escutava, respeitosa e embevecida, a minha loucura.

Eu estive doida, mas repetia tudo outra vez. 



Non posso stare senza te

6 comentários:

  1. Nem consigo imaginar o que é ter uma criança a gritar o dia todo... há coisas que só mesmo o amor de mãe (e de pai), consegue tolerar e ultrapassar :P

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    1. Acredita que há um momento (ou vários) em que uma pessoa está mesmo louca. A falta de sono é o principal motivo, mas as horas de vigília serem tão cansativas, arrasa com os nervos a qualquer um. :P

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  2. Todas nós, mães, já fomos levadas a estados de loucura temporários pela mão dos nossos rebentos. E, no entanto, é com a máxima lucidez que afirmamos que repetiríamos tudo outra vez. Um delícia este seu texto, querida Blue :)

    Um beijinho

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    1. Enlouquecem-nos a razão e também de amor.
      E repetiríamos, com a vantagem (ou não) de já sabermos o que iríamos passar. Com esta, eu repetia "Não tenho mais nenhum". Tive mais dois, a seguinte ainda nem dois anos tinham passado sobre esta fase de loucura :)
      Obrigada, minha querida. (Sinto-lhe a falta, com a frequência anterior.)

      Um grande beijinho

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  3. Por acaso a minha fase de loucura foi antes dos berros da minha cria que, por sinal ou por sorte, era mais comedido nisso de berrar. Essa tua loucura faz parte das locuras de amor e, não dizem os entendidos, que são essas que se fazem com vontade, até mesmo com alegria? :)
    By the way, espero que tenhas noção que um dia vais ser uma bela cliente da casa Sonotone eheheheh
    :)

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    1. Perfeitamente consciente :)
      Se for só na Sonotone, já não vou mal...
      Só me lembro de ter prometido não ter mais nenhum. E ela foi a segunda de quatro :)

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