14/06/2016

Mãos

Quando pus verniz de gel nas unhas (não confundir com unhas de gel), não me lembrei de que, a seguir, vinha a saga de ter que o tirar lá, nas mãos da especialista. Três semanas volvidas, farta de andar a dar demãos com o meu verniz vulgar, retirei à unhada e à dentada partes do que ainda sobrava do resistente, e deu-se que adormeci com as mãos numa lástima de lascas. Até dormi de dedos encolhidos, não fora encontrar alguém de cerimónia nos sonhos, e não ter como explicar o estalanço do verniz, o desleixo a que tinha deixado chegar as unhas, espelho do meu aprumo, reflexo da minha alma. 
Acordei, naturalmente, com elas tristes, sós e abandonadas. Determinada a dar-lhes um pouco do mimo que merecem — são mãos de trabalho, as minhas: gastam-se no teclado e em afazeres tantos, que chego a pensá-las com autonomia em relação ao cérebro —, cortei as unhas bem curtas e parti cedo, em busca de quem mas pudesse salvar do caos.
Quando entrei num dos milhares de cabeleireiros que o meu bairro tem, dizia-me a sala vazia e a bancada da manicura que estava com alguma sorte. No entanto, ela disse-me que estava ocupada. Rodei os calcanhares das minhas sandálias mais bonitas e, quando já estava de novo à porta, ela, afinal, podia atender-me, já que a senhora de quem estava à espera estava atrasada. 
Calçou luvas de borracha e eu não mais lhe senti o toque, a não ser naquele liso desumano das luvas dela. Seguiu-se uma hora das nossas vidas, em que lhe entreguei as mãos e os pensamentos, incapaz de raciocinar mais para além dos parâmetros requeridos: unhas quadradas, verniz encarnado mais vivo do que eu. Mal encarada, estrangeira, magra, seca, quase muda, tentei tirar-lhe o perfil e imaginar que, longe de casa e dos seus, talvez a minha exuberância encarnada e piada fácil — que transpiro mesmo quando não tenho calor e me mantenho sem respirar —, lhe fossem incómodas. Decidi ignorar, aliviando a carga que, com tanta facilidade, instalo nos ombros. O trabalho dela revelava-se exímio, e, na verdade, eu não pretendia mais nada senão isso.
Já estava de mãos livres, quando entraram aqueles dois, apoiados um no outro: ela, com evidentes sequelas de uma trombose, sorriso largo, andar manco; ele, preso nela e por ela, o mesmo sorriso, andar dançante, ao ritmo do dela. Deixaram o cão à porta, entraram rindo e ele perguntou se podiam fazer uns caracóis ao cão. Contagiada, ri-me também e, quando eles passaram por mim, ela fez-me uma festa no braço, com uma mão de carinho e veludo — exactamente como ficaram as minhas. 

8 comentários:

  1. Deves ser a única pessoa à face desta terra que me faz sorrir a falar de unhas ou manicura ou cabeireiros

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    1. Aquele ambiente nunca é para mim. Eu precisava de uns palhaços, ou de uma stand up comedy para me distrair do horror :)

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  2. :)
    Preferível o casal "deixa que eu chuto + cão " ,do que o "casal aos kisses + meias e ténis pouco inodoros ".
    Certo ?

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    1. Preferível aquele amor assim, com ou sem meias :)

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  3. Há pessoas que nos trazem pequenos pontinhos de luz aos dias (fazer caracóis ao cão, está muito boa). Outras, fazem o seu trabalho, mas não estão presentes.

    Um beijinho, querida Blue, e um dia feliz :)

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    1. Assim mesmo, querida Miss Smile: a alegria daquele casal, a harmonia dos dois, apesar dos entraves, era tão mais contagiosa do que o azedume da rapariga, que eu prefiro pensar-me assim no futuro do que desta outra maneira dela.

      Um dia feliz também, e um beijinho :)

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  4. Por essas e outras (que me falta tempo, paciência e €€€€) é que me muni da parafernália toda e faço em casa essa maravilha chamada gel :)
    Por outro lado perdem-se estas preciosidades que ainda dão alguma esperança a este mundo!

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    1. Também tenho vontade de me meter nisso. O grande "segredo" há-de estar no forno e, agora, no removedor...

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