Encontrei o carro cheio de formigas de asas, enormes, molhadas, típicas da chuva, típico de um dia de chuva. Pelo tejadilho afora, em toda a extensão do capot, ao longo das portas e de todo o metal do carro, aterrou, um pouco amarando, no charco que já trazia nas asas, um formigueiro inteiro de formigas aladas, encharcadas, incapazes de voar.
As asas servem pra voar.
Lembro-me deste refrão com uma frequência avassaladora.
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Tirei a carta de condução aos trinta e muitos anos, quando toda a gente já a tinha tirado e eu era a última cliente de taxistas. Até aí, a carta não me fazia grande falta, por incrível que isto possa parecer: tinha sempre quem me desse boleia, fazia a minha vida toda nos transportes públicos e a pé, ou então de táxi, quando estava mesmo mau tempo, transportava comigo uma criança e ou a pressa era inimiga da perfeição. Depois fartei-me de apanhar molhas, apalpões e pisões e de levar com o Retalis aos berros+falta de educação+cheiro a árvore-ambientador+conversa de ir ao retalis+percursos absurdos para ir do ponto A ao ponto B+risco de vida e integridade física, tudo num só cubículo, e meti-me na escola para aprender a guiar. E foi mesmo a sensação de ter ganho um par de asas, a que eu tive.
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Uma vez deram-lhe um microscópio pelo Natal, e ela passou a caçar moscas e a arrancar-lhes as asas, para as analisar no aparelho novo.
Vem ver como são bonitas as asas da mosca, vistas ao perto.
Mas eu só via a mosca sem asas, fora do alcance das vistas do microscópio, e, cobarde, nunca consegui ir ver ao perto as asas que lhe faltavam para voar.
Não devo ter alma de cientista. A curiosidade científica não me mata mais do que a vontade de preservação da vida.
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Quando entrei no carro e me apercebi de que as formigas de asas — se não já mortas por afogamento na água trazida pelas suas próprias asas, ou na atracção pelas gotas da chapa —, iriam morrer quando o carro acelerasse a marcha e lhes secasse as asas, pensei no quão irónica é a vida, que corta as asas que servem pra voar a tantas criaturas de uma só vez, para que eu possa usar as minhas. E lembrei-me das outras, todas sem asas,
Vem ver como são bonitas as asas da mosca, vistas ao perto.
Não são nada — as asas são bonitas, vistas ao perto, se estiverem agarradas ao corpo certo. E, cortadas, como às vezes estão na vida, nada têm de bonito.
Nem sequer servem pra voar.
"formigas de asas" - agúdias
ResponderEliminarSão muito usadas para meter nas "ratoeiras" como "isco" para apanhar pássaros, sendo que nesta época, os mesmos já não andam a fazer criação, por isso "podem-se" apanhar.
Sei de pessoas que têm centenas de agúdias num frasco e este ano já apanharam mais de 100 pássaros, aos poucos, mas todos os dias.
Nota: não gosto de passarinhos fritos de cebolada.
Arrrgghh, acho que te odeio!
Eliminar:P
Só pelos apalpões, estive quase a sugerir - pedir - o regresso aos transportes públicos.
ResponderEliminarMas pensei melhor e achei melhor não.
Os teus rasgos de loucura antecedem grandes rasgos de lucidez.
EliminarSerá mais ao contrário, mas pronto..
Eliminar(já tens carta - uau! - que posso eu fazer?!)
Não, repara: pensaste que seria bom eu regressar ao transporte público. E depois pensaste melhor e achaste melhor não. Primeiro a loucura, depois a lucidez.
Eliminar(já - yey! - é melhor não fazeres nada!)
...
Eliminar(e agora, apalpo quem?)
...
Eliminar(eras tu, Brutus? Espero que tenhas gostado dos meus pisões)