Estava parada num semáforo, à espera que abrisse o verde, para poder avançar, e ir-me embora dali, como se nunca tivesse estado. Vou-me embora com tal frequência que nem sei como é que ainda cá estou. Não fiz mal a ninguém, mas sinto a culpa do mundo vezes a mais, desproporcional à capacidade - incapaz - de carga que tenho.
Dois rapazes ali ao lado, no passeio, a conversar, despediram-se com um toque de mãos, um foi para lá, a abanar muito as ancas, homossexuais, o outro veio para cá, a abanar muito as ancas, paralisia cerebral.
A mãe dele não há-de ser muito diferente de outras tantas que já conheci: olhar vago, sonho soterrado. Dois filhos num só - um sonhado, outro real -, que não coincidem, nem irmãos se parecem, apenas se interseccionam numa ínfima parte, vagamente espelhada naquele que é recebido nos braços. Uma pessoa sonha com um bebé e sai-lhe outro.
Quando se espera por um filho, traz-se um filho na cabeça. É o bebé imaginado. São nove meses à espera de uma pessoa, com ela dentro do corpo, a pele a rebentar de amor, o coração a descompassar de expectativa. É um tempo que custa muito a passar - não sei como é que uma pessoa aguenta -, nove meses é quase um ano. Chega a atravessar as quatro estações.
A sobreposição, com intersecção absoluta, das imagens do bebé real e do bebé imaginado, costuma acontecer no momento do nascimento. Isso convence-nos da nossa própria premonição. Por isso é que dizemos assim: "Ele é mesmo como eu o imaginei". Não é nada. A natureza defende-se e põe as mães a fazer photoshop de amor. Recortam o novo bebé e colam em cima da imagem do velho bebé, que trazem na cabeça há nove meses.
Lembro-me em particular da Rita. Não via, não ouvia, não falava, não andava. Praticamente só dormia. Aos dez anos, tinha o cabelo macio como o de um bebé de meses.
Sempre tive uma incapacidade absoluta para entender a incapacidade absoluta. Tem que haver um ponto de luz no meio de tanta escuridão.
- Rita, o teu cabelo é o mais bonito e o mais macio da sala toda.
Recordo-a a levantar a cabeça e a girá-la, na minha direcção, olhos perdidos na cegueira. Não creio que me ouvisse - era o que me dizia a educadora -, mas certamente sentia a minha mão no cabelo dela. Quando virava a cabeça para mim, oferecia-me a ilusão, de que lhe ficava tão grata, de me ouvir e entender - ao menos, ela.
Lembro-me também da mãe do Manel, que lhe nasceu vinte e sete dias antes de me nascer o meu. Disse-me ela que as mães das crianças com problemas - disse ela mesmo assim - não têm culpa. Espectro autista para o dela, inteligência normal para o meu. Naquela época, ambos com quatro anos, o meu pela mão, mãe-mãe-mãe, o dela no colo, a mexer no ar, lá nas sombras dele.
Tinha-Lhe pedido, quando esperava o meu, naqueles negócios que sempre fiz com Ele, que me desse uma criança assim, se achasse que era para mim, mas que, em troca, nunca me levasse uma das minhas. Sempre preferi a possibilidade de ter que enfrentar a minha própria incapacidade para fazer photoshop de amor, à irremediável e avassaladora sutracção da imagem desse amor.
O título é interessante, mas o texto é enorme... :(
ResponderEliminarVotos de boa semana...
Este não dava para cortar em dois ou em três... :P
Eliminar(E eu sou prolixa, nunca deste por isso?)
Boa semana também, brigadjinha :)
Fogo ó Porca... Isto deixa a malta (não eu...) de lágrimas nos olhos...
ResponderEliminarLINDO!
És pai, sabes? :)
Eliminar(Ah, é verdade: tu não...)
:)
Nunca pensei nisso do photoshop de amor, é um pensamento bonito. Eu sempre acreditei que te apaixonas por eles quando os olhas nos olhos a primeira vez, não que não os amasses já mas a paixão, essa vem ao primeiro olhar. E a paixão apaga todos os defeitos, tal como no amor, comigo foi assim!
ResponderEliminarJá vem de trás...
EliminarEu até acho que vem de ainda antes dos 9 meses.
Uma pessoa "faz" um filho, pode ser dez ou vinte anos antes de o conceber, depois sedimenta-o. Quando ele surge, é a revelação do sonho, do projecto, do imaginado. Photoshop :)
O que eu imaginei o meu menino! Quantas vezes o acariciei, lhe falei, lhe cantei!
ResponderEliminarMuito difícil, caber-nos em sorte um menino "especial"...
Beijos, LP sensível. :)
E eu, todos os meus!
EliminarCreio que levaria uma vida inteira em luto pelo bebé imaginado. Deve ser isso que põe o olhar das mães especiais tão vago...
Beijos, Maria Eu delicada :)
Desculpem se não concordo convosco. Eu sou uma sortuda, ter um filho especial fez-me ser maior, fez-me crescer, fez-me ser mais mãe, claro que choro, talvez mais que as outras mães, mas não por mim, por ele quando algo lhe corre mal. Não acredito em Deus mas digo muitas vezes que se ele era para calhar com alguém, ainda bem que foi comigo porque foi uma grande e doce lição.
EliminarBeijos
Be, não tens do que pedir desculpas, discordar é a coisa mais normal em qualquer conversa.
EliminarOlha, já não és a primeira mãe de menino especial que me diz exactamente isso. Mas, como também leste, nem eu nem a Maria Eu chamámos má sorte ou infortúnio à possibilidade - que assiste em todas as gravidezes, partos e pós-partos (que ninguém se engane que há paralisias cerebrais que acontecem no decurso do parto e nos primeiros tempos de uma vida) - de ter uma criança 'com problemas', como me disse a mãe do Manel, que referi no texto. Não se trata de considerar um azar, e sim de a vida nos impor uma etapa para a qual não estávamos preparadas. E depois, saber lidar com ela, com mais ou menos lágrimas, mas com o coração em pleno, como o de qualquer mãe.
Obrigada, muito.
Beijos para ti
Be,
EliminarAté fiquei arrepiado ...com tanto amor , sinceridade e essa forma de " estar na vida " !
Desejo -te as maiores felicidades.
Além do amor de mãe que é incondicional, é preciso muita coragem.
ResponderEliminar:)
Todas as mães se tornam mãe coragem, num ou noutro momento da maternidade. Mas há umas quantas a quem é exigida uma dose suplementar dela.
Eliminar:)
Tens razão. :)
ResponderEliminarSinto isso sempre que tenho de pregar 2 estalos ao meu mais velho que está a ficar bem mais alto do que eu! :P
Nem me fales nisso. Eu nunca bati na cara, mas, nos meus raríssimos ataques em que teve mesmo que ser, as dores nas mãos e na alma foram tantas que me desfiz em lágrimas - de autocomiseração, de dores físicas, de tragédia grega. Uma porcaria :P
EliminarJá li e depois voltei a ler. Como faço com todos os textos que gosto e gostei muito. Escreves muito bem, de maneira muito fluída e natural. Venho sempre ver se já escreveste outra vez. :)
ResponderEliminarObrigada, Sofia :)
EliminarJá me disseram que escrevo como falo, em discurso directo. Também já me disseram que falo como escrevo. Não sei separar uma da outra...