Passei o dia todo à espera destes dias. Que é como quem diz, passo todos os dias do ano à espera que venham dias com um céu neste tom, que até permito que fique vermelho ao fim do dia, e rosado, a adivinhar calor, quase à noite. Cada vez me convenço
mais que nasci no paraíso, e que Lisboa é a cidade mais bonita do planeta, bela sem senão. Estou, por estar nela, a pouco mais de dez quilómetros até ao mar, o
céu é tanto azul - tão e tantas vezes - e ainda se respira,
fundo ou ofegante, mas ainda se inspira e
expira em paz.
O mar da Costa é traiçoeiro e imprevisível como um gato vadio e batido,
mas lava a alma e repõe as coisas no seu lugar, numa rigorosa arrumação mental
que só quem sente, para crer. Quase um veneno, que sabemos que nos pode matar, mas
também nos cura de todas as maleitas que o tempo sem sol nos contagia e atinge.
Podemos entrar, no mesmo dia, no mesmo mar, em três mares diferentes: maré cheia com rebentação muito forte, de açoitar as
ancas e desafiar o equilíbrio, se não nos metermos debaixo da onda; ondulação alta, de boiar em cima e esperar que o mar nos leve, levemente, o que
resta de nós que já não interessa, mas também nos devolva o sal que perdemos pelos olhos; mar chão, silencioso, a lamber os tornozelos, meigamente, mansamente, intensamente aromatizado a melancia, colorido de prata, a brilhar até não se perder de vista a linha horizontal, que é onde e quando o sol
começa a mergulhar, cansado que fica de um dia inteiro a ver mergulhos.
Mas é ali que me encontro, ali ficou uma grande parte de
mim, ali ainda posso fechar os olhos e ouvir a mulher dos bolos, toda imaculada de branco, um trapo, branco, na cabeça, a mala, branca, com bolos de creme, branco, em gavetas, uma imagem quase santa, surgida da luz e desenhada pelo reflexo do areal, e também cientista, doutrinando acerca da nomenclatura de cada bolo, usando a pinça e os guardanapos, brancos, saídos daquele laboratório asséptico, pousado na bacteriana e fúngica areia fervente. Ainda consigo ouvir o homem que grita Há 'Olá' fresquinho, há frutó chocolate, batatinha frita!, e vê-lo a abrir a mala térmica cheia de gelados em adiantado estado de descongelação, um cheiro imenso, por intenso, a sumo de ananás, a miudagem a pedir gelados de laranja, Eu quero um de ananás, as batatinhas embrulhadas num saco de vegetal com dois cantos retorcidos à
mão, a praia toda a cheirar à melancia do mar, ao creme da santa cientista, a sumo de gelado descongelado de gelo de ananás, a óleo das batatinhas. A areia, naquele tempo, era mais dura, porque servia para fazer os castelos mais fortes. Eu, tão menina, fazia bolas de berlim, bolinhos com as formas, decorados de
conchinhas, sopa de areia com água salgada, no balde mexida com a pá, as
bonecas ao sol a ficarem brancas, que trabalheira que me davam as filhas, ia pô-las a dormir a sesta dentro da barraca. Os robertos na praia, uma multidão
de miúdos a correr na direcção do mar, os robertos punham-se à fresca, um
boneco batia na cabeça do outro até ele desmaiar, eu saía dali incapaz de aguentar a dor do roberto, ninguém percebia nada da
história, eu só percebia da dor - ai, que agonia -, as vozes estridentes, dos robertos, para esquecer, nunca me vou
esquecer daquela dor. Uma multidão de graúdos a amontoar-se à beira-mar, está alguém
aflito, o banheiro de herói, mar adentro, antigo pescador, homem feito, conhecia tão bem o mar - por isso, tinha medo do mar -, ainda no sábado ficaram lá quatro, eram seis, só
consegui trazer dois, aquela matemática infalível de quantos é que o mar
devora, o banheiro que montava as barracas e os toldos, todos os dias, pela
madrugada, que punha a vara na água e avaliava o medo, hasteando-o, decretava a bandeira, ele é que sabia, menina ponha o chapéu, menina vá para a sombra,
menina saia da água.
Entraram tantas meninas na minha vida entretanto, uma vez uma ofereceu-me uma colecção de conchinhas, enorme para a minúscula
mãozinha dela, e acreditou quando eu lhe disse que a conchinha pequenina era daquele tamanho porque ainda era bebé. Nesse dia, fui
ao mar com uma mãozinha nova dentro da minha, todas as mãos
pequeninas vêm guardar-se na minha, mas aquela ali abandonou-se toda, cheia
de certezas num mar novo, vamos lá para o fundo, numa confiança tão grande, que eu fui o antigo pescador por um bocadinho só, homem feito, que conhece
o mar, e eu sem medo do mar, menina tira o chapéu, menina vamos para o sol,
menina não saias da água.
Se abrir agora os olhos, já só vejo um rapaz vestido de
amarelo e vermelho, um bocado chateado, com uma bóia americana, óculos de sol para os olhos
não verem nem serem vistos, e nem um vestígio de lobo do mar, ou de peixe
alguma vez pescado, quanto mais de matemático das contas a quantos tirou do mar e tantos que ele lhe devorou debaixo dos olhos que tudo viam e por todos eram vistos. Mas, se mergulhar debaixo da onda, aquele som único da água
a entrar-me na alma repete-se, e repete-me que sou eu, ali, e tudo está no seu
lugar outra vez.
Perante uma ode destas que o Verão não se faça rogado.
ResponderEliminarBoa noite, LP
Tivesse eu aqueles poderes que os índios hão-de ter, e durante todo o Inverno faria, certamente, a dança do mar.
EliminarBoa noite, JM
Foi ler e voltar à minha infância. Até consigo sentir o cheiro a mar... Tão bom!
ResponderEliminarObrigada.
Ora essa, eu é que agradeço, um comentário tão bom!
EliminarÀs vezes penso se as crianças, quando estão na praia, vão, um dia, ter memórias assim. E acho que sim. Não acho nunca que no meu tempo é que era, mas que são os olhos da infância que retêm de forma diferenciada.
Porra LP, andas a dar-lhe na prosa...
ResponderEliminarBeijinhos minha querida!
Ando, porra. Sou o novo Manoel de Oliveira da blogosfera? :)
EliminarGros baisers, mon chéri!
Passo para te desejar uma Páscoa feliz.
ResponderEliminarObrigada, Páscoa feliz também para ti!
EliminarObrigado
EliminarEste texto está tão incrível que até me senti por instantes nessa praia.
ResponderEliminarum beijinho
Gábi
Eu "volto" lá tantas vezes!
EliminarObrigada, Gábi.
Um beijinho e boa Páscoa.