Toda a minha vida os vi assim, dois namorados, de mão dada na rua, de beijos na boca à despedida e à chegada, a dançarem os discos deles, esquecidos do mundo, na sala da nossa casa. Parece que ainda os estou a ver, agarrados, abraçados, unidos naquela dança que era só um pretexto para se sentirem, e se saberem, tão bem, um ao outro. Um no outro. O quarto deles, a porta fechada à chave, noite após noite, trinta anos de amantes fieis e constantes.
Parece uma bonequinha, só apetece pegar-lhe ao colo.
Aquela senhora tirou-me as palavras da cabeça.
Boneca era o que o meu pai chamava à minha mãe.
Ela apagou-o do discurso. Não fala nele, nunca fala nele, não fala nele há anos. Há tantos quantos os que começou a perder a memória. Quando começou a esquecer-se de tudo, esqueceu-se dele.
Eu não vi a demência. Nunca recebi nenhum alerta, nem nas frases, nem nos silêncios, nem no olhar, nem na postura. Por mais que me mostrem, por A + B, que os sinais estão todos lá, não vejo nenhum. O pior cego é aquele que não quer. Eu não quero. Eu não vejo. Sou a pior cega, porque sei que não é isso. Preciso de outra explicação, mostrem-me lá outro caminho, para eu ter paz. E deixá-la ir ter com ele.
A sua mãe não tem nada, tem muita idade.
Eu sei, eu sei, é isso que a cegueira me deixa ver.
E está a morrer de saudades do seu pai.
Uma caixa de bombons, devorada com sal do meu, enquanto escuto aquilo que já sei e só quero que alguém me diga outra vez, o que a estampa da bonequinha, a quem só apetece pegar ao colo, já me diz há tanto tempo.
Mas ela não fala nele há anos. Só outro dia. Perguntei-lhe com quem é que eu me pareço, e disse-me "Pareces-te com o teu pai". Até fiquei na dúvida se ela não me estaria a confundir com outra pessoa, e deu-me aquela resposta social, automática, para disfarçar a confusão.
Alguma vez a sua mãe deixou de a reconhecer?
Não. Acho que já esqueceu a maior parte das pessoas de que eu lhe falo, mas, a mim, nunca.
Porque você é o seu pai. Você leva-lhe o seu pai. Mata-lhe as saudades que ela tem dele.
Mato-lhe as saudades, mato nada. Tiro-lhe uma gota daquela imensidão do oceano das saudades dela. Não chega, não lhe chega, não chego, ainda assim. E ela está a deixar-se ir, vai ter com ele, para, finalmente, se reunirem naquela dança, pretexto para se sentirem e se saberem tão bem, um ao outro, um no outro, e fecharem, de uma vez por todas, a porta do quarto à chave, o resto da noite, para sempre.
Fecham-se num mundo onde mais ninguém entra. Sei-o.
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=p2pxJ5FmUOc
Abraço apertado.
Completamente isto, Maria. Ao som desta música.
EliminarAbraço, linda.
É um medo que me dá, quando leio a tua experiência com a tua mãe velhinha... e ao mesmo tempo uma alegria por te saber tão amiga dela...
ResponderEliminarÉ só o que queremos. Ter o amor dos nossos filhos quando pouco mais temos para dar.
Ser gostado na velhice é um dos maiores feitos do ser humano.
A tua mãe conseguiu-o.
Nem todas têm essa sorte.
Não tenhas medo, Uvinha. Todos os percursos são para ser feitos de mão dada, desde os tempos da barriga. Só temos que tentar fazê-los com a maior tranquilidade de que formos capazes, e percebendo-os. Eu estou a aprender com ela e de mão dada com ela que, ali à frente, teremos que soltar as mãos, e que há inevitáveis contra os quais é inútil lutar.
EliminarAs mães têm grandes lições para nos dar, sempre...
Mas às vezes perdemos a cabeça e gritamos, porque a vida não nos parece justa, não pedimos nada daquilo e só queríamos a vidinha tranquila de outra pessoa qualquer. Gritamos e dizemos o que não queremos, assim mesmo, de propósito, só para magoar no sítio certo. Quando a verdade é que queríamos gritar connosco mesmo por não sermos as pessoas boas e pacientes que as nossas mães mereciam.
EliminarÀ velhice é uma gaita. A velhice dos nossos pais é uma grandessissima merda.
Mas faz tão, tão parte da vida, da nossa vida, de nós...
EliminarUm dia pedi à vida que não voltasse a pregar-me aquela partida de tão mau gosto, que foi levar-me o meu pai sem me dar tempo para me despedir dele.
Aqui tenho a resposta.
A velhice não é bonita e pode ser muito trágica. Cabe-nos a nós embelezá-la.
Sabes percebo tão bem do que falas LP que não consigo deixar de comentar :(( Já tive nessa situação dois familiares muito próximos, recentemente o pai que partiu há uns meses.... e, quando acordo com saudades da presença fisica dele , dá-me coragem perceber que afinal ele tinha desistido de VIVER há uns anos, pois só o coração batia de facto, a cabeça, essa, tinha ficado lá atrás com a coragem e com a força de VIDA que não o faziam considerar-se velho, até então!...
ResponderEliminarAqui vai um abracinho apertado de carinho e solidariedadade que dê Paz ao teu coração.
Comenta sempre, querida.
EliminarAbracinho muito recebido, muito retribuído, pelo teu pai, pela minha mãe, pelos nossos velhinhos todos, que eu não percebo como é que nunca nenhum artista se lembrou de os pintar como anjos.
As saudades esmagam-nos ("nos" - a nós e a eles).
Sê linda mesmo e deixa-A ir...
ResponderEliminarUm beijinho muito quentinho*
A vida não me está a apresentar grandes alternativas...
EliminarOutro para Ti(l).
Olha eu já te segui e já deixei de o fazer.Acho que fiz bem mal...Este teu texto conquistou-me,arrebatou-me,eu sei lá...Tão bonito!!!Parabéns:)
ResponderEliminarDecide lá isso de uma vez, que eu estou sempre aqui.
EliminarObrigada :)
Vim aqui ter pela mão da Til e fiquei muito comovida com o teu escrito. És uma filha e uma mulher de sorte por teres vivenciado e testemunhado na primeira pessoa um amor verdadeiro e bonito, o dos teus pais. Olha que é uma raridade encontrarmos dois seres que se casam todos os dias por uma vida:))
ResponderEliminarAcompanha a tua mãe da melhor forma que te for possível e acredita que a saudade quando decorre de uma perda imensa e irreversível vai matando mesmo, aos bocadinhos. E no dia em que ela for ter com ele, da-lhe a mão, um sorriso e manda por ela um beijo teu e da tua irmã ao teu pai.
Agora deixo te um beijo e um abraço apertado.
Gostei muito de ter lido.
Obrigada, Sandra.
EliminarSou mesmo, muito privilegiada. Durante muitos anos, convenci-me que o casamento era aquilo. Passei a infância a achar que os contos de fadas eram tão mais pobres do que o que se passava dentro da minha casa. E eles, que nem por um padre passaram para se casarem, nem repetiram "até que a morte nos separe", ou talvez por isso, a morte nunca os separou.
Ela vai ter tudo, até me largar a mão.
Abraço e beijo recebidos e retribuídos.
Obrigada, outra vez.
Se não fosse já seguidora, passaria a sê-lo com este texto. Tocou-me como outros que já li aqui e acho incrível como escreves tão bem, sobre sentimentos, e em outros textos com tanto sentido de humor.
ResponderEliminarum beijinho e força.
Gábi
O óptimo era mesmo não ter que os escrever, Gábi. Isso é que era tão bom.
EliminarOs outros não, esses quero escrever sempre :)
Obrigada, minha querida.
Beijinhos para ti.
sabes quando ficas sem palavras, sem saber o que dizer? e darias um abraço porque dirias tudo sem abrir a boca?
ResponderEliminarbeijo doce.
Sei, sim. Mas olha, senti-o aqui, e soube-me tão bem.
EliminarBeijo xxl, doce és tu.
Que lindo. Sofre por dentro, mima-a muito :)
ResponderEliminarPois mimo :)
EliminarEla não me tem visto chorar vez nenhuma.
Quando acontece não aguentar, abraço-a e derramo para as costas dela.
(valentia da treta :)
Linda, um abraço grande. Estas tuas palavras fizeram-me soltar um lágrima e ter uma grande vontade de te abraçar, abraçar muito e muito apertado.
ResponderEliminarAceito, menina, aceito sim. Beijinho nos teus olhos bons.
EliminarHá quem tenha sentimentos. Tu tens, e frazes bem.
ResponderEliminarBe and let be happy.
Toda a gente tem, há é quem tenha mais facilidade em descrevê-los.
EliminarErrata: fazes bem e não 'frazes bem'. Gralha ó gralha :-(
EliminarEstás a chamar-me gralha? :)
EliminarOlha, mas frazes era um neologismo engraçado (fases, fazes, frases).
Sou alérgico a neologismos.
EliminarNão pá, a ti nunca chamaria gralha. Há outros adjectivos que te ficam melhor eheheh
Eu não :)
EliminarCom uma língua tão bonita quanto a nossa, ainda com esta elasticidade da criação...
Tais como pega? :P
Vá, eu ajudo :)
(Palácio Nacional de Sintra)
Aproveita todos os dias. Beijinhos :)
ResponderEliminarTodos, companheira. Todos.
EliminarBeijinhos :)
Tão depressa me fazes rir, como a seguir me deixas emocionada e sem palavras. O que não é descabido nesta situação, já que muito provavelmente todas as que eu pudesse dizer soariam ocas, sem poder para mudar ou aliviar o que estás a passar.
ResponderEliminarPor isso desculpa a estranheza, sei que sou uma desconhecida e tal, mas agora dava-te mesmo era um abraço apertado.
És tão desconhecida como quase todas as pessoas que aqui vêm. Mas isso não te retira a qualidade, que é teres sentimentos e seres carinhosa.
EliminarObrigada, querida. Recebido agora, repartido contigo.
Este texto...ai...faz-me sentir coisas tão diferentes. Por um lado o amor...estou fartinha de pedir a Deus que me leve primeiro...serei incapaz de suportar a dor de perder MorMeu....e ...se Ele não tratar disso trato eu...aqui sozinha sem ele é que eu não fico....
ResponderEliminarDepois ser mãe e ser filha...quanto a ser mãe estou tranquila, a minha mais novinha disse-me no outro dia que cuidava de mim até pr'aí aos 80 (anos)...o que para ela é uma fartura:)
Quanto a ser filha...tenho "inbeja" do amor que te une à tua mãe...gostava de sentir um amor assim:)
Deus te abençõe minha Linda (sem beatices)
Todo o amor é uma obra de construção. O nosso, meu e da minha mãe, já conheceu barreiras, paredes, fossos intransponíveis, entraves e pedras. Mas foi sempre maior, e, à nossa maneira, soubemos construir portas, pontes, passagens de luz. Faz parte da obra permitir que um dos dois saia dela, porque, na verdade, o amor não acaba nunca. Lembro-me sempre do que disse uma pessoa, uma vez, na televisão, acerca da morte da irmã: O amor não vai com a morte. Fica aí, no ar...
EliminarMas também te digo que, para mim, a morte mais irresolúvel é a de um filho. Para as outras, uma pessoa prepara-se, melhor ou pior.
Obrigada, minha Suri, linda és tu.
Vim cá ter por causa da Til. Tinha uma janela aberta para este canto :)
ResponderEliminarFiquei realmente comovida depois de ler as tuas palavras. O amor nunca desaparece, fica nas lembranças que arrumamos na gaveta do nosso coração.
Deixo apenas um beijo e um abraço :)
Nunca. Nunca vai, nem com a morte, como disse a outra senhora.
EliminarObrigada.
Um beijo também, abraço retribuído :)