19/09/2014

Ao menino do helicóptero

Todos os dias nos morre a infância, é bem capaz de ser por isso que alguns de nós, já adultos, já passadas as adolescências, a primeira, aquela dos oito anos, a primeira a sério, a dos catorze, a segunda, ou terceira, cada um sabe de si, aos trinta e cinco, só pode ser por isso que alguns, ou quase todos, continuamos parvamente a dizer que temos uma criança cá dentro, que nunca desaparece nem morre, mas é mentira, porque às vezes morre, ou sai de nós e vai brincar para almas mais felizes, depois volta, umas vezes, outras nunca mais e ficamos de peito vazio e sem a criança interior que nos canta canções infantis nos dias de sol, mas que não nos aguenta a tristeza quando ela nos atinge, e vai-se embora, a ingrata, só vive em nós quando a nossa alma é um recreio e isso não pode ser todos os dias, porque a vida também é feita de dias de chumbo, e hoje está assim, a criança fugiu-me, nós éramos quantos?, agora só fazendo contas, somando pelos dedos das duas mãos nem me chegam os dedos, dez primos, doze primos, todos das mesmas idades, mais ano, menos ano, tinham andado tias e sobrinhas e irmãs e primas grávidas ao mesmo tempo, nós os dez, nós os doze ou treze, todos a sujarmo-nos nas mesmas lamas, a magoarmo-nos nas mesmas pedras, a comermos gelados iguais, e tu, meu Artur, tão diferente, tão crescido, tão adulto, trocaste as voltas à vida, de cara enfiada nos livros na idade em que andávamos todos a esfolar joelhos na brita, tu sozinho, dez - nove! - ou doze - onze! - índios (e cowboys e donzelas) corados, ruidosos e suados, depois vi-te já homem a mostrares-me um helicóptero de brincar, mas que voava mesmo, os olhos cheios do brilho da infância perdida, dos joelhos que não esfolaste connosco, tu sozinho, sem ninguém para brincar contigo e com o teu helicóptero, e tu sozinho, a pedires ajuda pelo telefone a uma de tantas irmãs, que o teu enorme coração estava a rebentar dentro do peito, onde já não cabia mais, mas agora, neste dia de chumbo em que não sei da minha criança outra vez, só me resta pedir à vida que encontres alguém para brincar contigo, e que nunca mais fiques sozinho.

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