Não sei se é o avançar da idade que nos vai retirando a capacidade para nos adaptarmos. E a capacidade para aceitarmos "o próximo" como ele é, com defeitos e virtudes. Pode ser esse avanço do tempo que nos proíbe de continuar a aceitar idiossincrasias como normais, quando, na verdade, mais não são do que taras e transtornos obsessivos. Eu estou a trabalhar num sítio há mais de um mês e não consigo adaptar-me. De cada vez que parece que "é desta", há qualquer coisa que me diz "esquece, vai-te embora, este não é e não vai ser o teu lugar". Sabem aquelas pessoas estúpidas, que não conseguem meter uma peça cúbica num buraco redondo, porque não percebem que o buraco redondo é para o cilindro? (os buracos e eu). Pois. Eu não sou a pessoa estúpida, pá. Eu sou a peça cúbica. Não vou entrar por ali, aquela não é a caixa onde me vou adaptar, lá dentro, com outras peças que, embora diferentes de mim, são compatíveis. Não são. E tudo me grita, quase diariamente, que "este é o último dia, não aguento nem mais um". Só que acho que sou uma porreira e tenho um espírito de missão que é quase de sacrifício. Acho que noutra encarnação fui Jesus Cristo. Pediram-me para ficar um mês, eu aguentei um mês, apesar de ter chegado ao terceiro dia e ter dito: "Amanhã já não vou. Não cumpro o primeiro mês, não cumpro sequer a primeira semana". Mas fui. Por dar ouvidos a um amigo do coração, por tê-lo mole. Por o dinheiro me saber bem, sou tão puta. Por querer juntar dinheiro para tirar o pneu, sou tão fútil. Não interessa, fui. Ao fim de um mês pedem-me para ficar mais outro e eu fico. Fico como um preso, a contar os dias para acabar Abril, a riscar tracinhos na parede mental, a convencer-me que, com dois feriados pela frente, o mês é pequeno, são menos dias do que em Março. Cada diz que passa, risco-o num calendário, também mental.
Adoro o trabalho. Cumpro zelosamente. Nunca devo ter sido tão eficiente na minha vida toda. Chego ao fim do dia e vê-se obra feita. Ainda não houve um único dia em que pudesse "gabar-me" de não ter feito nenhum todo o dia. Quando bater a porta de vez, deixo uma extensa lista de deveres cumpridos atrás de mim. Deixo também três ou quatro pessoas de quem gosto muito. E sei que elas vão ter alguma pena que eu saia, tem sido sempre assim na minha vida.
Eu não percebo um lugar onde há uma mulher que se sente mal, começa a desmaiar, avisa-me que vai deitar a cabeça na mesa (a mim, que estou lá há 40 dias, não às outras, que estão lá há dois anos com ela), estão mais quatro pessoas na mesma sala e ninguém faz absolutamente nada. A que tem a mania continua ao telefone, as outras de boca aberta, ligadas ao zero, na merda dos computadores delas. Eu de pé, a pedir a uma que a segure e não deixe que aquela caia para o chão enquanto lhe vou fazer um café. Trago o café, dou-lho a beber, cuido, pergunto, preocupo-me genuinamente, não a largo enquanto não vejo cor regressar à cara dela. A vaca da que tem a mania desliga o telefone e continua a martelar nas putas das teclas, a chamar ora uma, ora outra, a dar ordens, a distribuir tarefas, capataz de merda, deve ter nascido de pés, verme. Mais uma vez, como tantas na minha vida, senti-me out, fora, deslocada, letras garrafais nas paredes a dizer "ESTE NÃO É O TEU LUGAR, SAI, FOGE". Bate a porta, nem olhes para trás, estás a conviver com uma pessoa desta categoria, acabas por ficar igual a ela, indiferente, seca, oca, desumana.
Não me adapto. Não consigo imaginar-me ali o resto da minha vida, por mais que me argumentem com a crise e a conjuntura e a minha idade e o meu sexo e o alho. Há uma linha que separa as tais idiossincrasias normais do que já é doença mental. Há uma linha que separa aquilo que só nós vemos como mau e o que é efectivamente mau. E eu vi claramente as duas linhas, desde a primeira vez que pus os pés naquele lugar. Já só faltam doze dias. Nem. Mais. Um. Mais feliz morro de fome do que tão longe de mim.
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