29/01/2014

Já que não posso dar sangue

Já me andava a incomodar a piadeira que os passarinhos, de vez em quando, faziam. Ia encontrá-los presos nas grades por terem as unhas muito compridas. São dois bicos-de-lacre (o nome reveste-se de erotismo - por via do "lacre" - mas não fui eu quem o atribuiu à espécie), minúsculos, como todos os bicos-de-lacre, assustadissíssimos, que quase se matam em voos desconexos contra a gaiola cada vez que alguém chega perto. Menos comigo, provavelmente por ser quem lhes dá de comer e lhes faz a lide doméstica. Às vezes sou empregada deles. Mas aquilo de ficarem presos e piarem um piar seguido, piiiiiiiiiiiiii, já me estava a fazer nervos, e comecei a fazer imagens mentais de aquilo lhes acontecer de noite e me morrer algum ou os dois e eu não aguentar de desgosto. Só que os tempos não estão para despesas e não me apetecia ir ao veterinário cortar as unhas aos passarinhos. Isso era a tiíce do ano, quase pior do que outro dia, ao degustar umas batatas fritas caseirérrimas, em que o meu primeiro pensamento foi "Iguaizinhas às que a empregada fazia quando eu era pequena". É que eu ainda sou do tempo em que não havia batatas pré-fritas e as batatas se fritavam em azeite, tanta era a abundância do que vinha lá das courelas. Então, calcei uma luva de borracha na mão esquerda, que é a minha mão mais meiga, e peguei num passarinho. A luva era para o caso de ele me picar, porque a minha única experiência em pegar em passarinhos era, até hoje, com periquitos, que são arraçados de papagaio, são psitacídeos, sabem? Têm aquele bico em forma de anzol, que magoa que se farta e ainda é capaz de arrancar um bocado de dedo ou uma unha inteirinha. E também tinha medo de largar o passarinho, naquele impulso de me defender, e ele ir contra uma parede e morrer. Também pus a luva porque assim evitei sentir a temperatura do corpo e o coraçãozinho disparado de pânico, e poupei-o à minha própria temperatura. Eu era uma cirurgiã de bicos-de-lacre naquele momento, não podia deixar-me levar pelas emoções. Peguei no primeiro passarinho e ele aninhou-se todo na palma da minha mão luva e deixou-se ficar quieto, à espera que eu lhe cortasse as unhas. Depois passei para a fêmea, que se fartou de lutar até eu conseguir agarrá-la, eu a julgar que, por ser rapariga, me ia facilitar a vida - mais frágil, mais meiga, mais branda - mas nada. Segurei-a com o mesmo cuidado, a ver se não a esmagava ou lhe partia uma asinha, e ela lá se encostou na palma da minha mão luva, até a tirei da gaiola e foi cá fora que fizemos a manicure, ela de cliente, eu de profissional. Portanto, se nenhuma das minhas profissões e habilidades pessoais puder ser fonte de rendimentos, hoje adquiri mais uma competência, que é cortar (com corta-unhas) as unhas a bicos-de-lacre. Já que não posso dar sangue porque estou anémica, sempre posso fazer a diferença de outra maneira.

10 comentários:

  1. E que cor de verniz usaste?

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    1. Vermelho-lacre, claro :)

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    2. Óbvio, foi uma pergunta estúpida! :D

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    3. Nada estúpida. A passarinha (ehh...) podia ser alternativa e não gostar de ver o bico (ehh...) a combinar com as unhas.

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    4. Sim, podias ter optado pelo verde ou lilás :D

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    5. Ou juntos, unha francesa na passarinha :D

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  2. Unha francesa na passarinha, era lindo de ser ver... ou não :D

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    1. Assim desgarrado do contexto, é a imagem do inferno :D
      Se "passarinha" só se referir à minha animala (nada soa bem neste assunto), é só estranho. Coitadinha. Nem se sente o peso na mão. Diz a wikiseca que são entre 7 e 10 gramas.

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    2. Caramba, devia ter revisto o comentário antes de clicar em publicar :D

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    3. Ou eu é que tenho a cabeça suja. Um bom champô (ou, quem sabe, uma tinta gira), resolvem :D

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