deixar de, em poucas semanas, reconhecer alguns cenários como "nossos" e fazer a triagem perfeita entre aquilo que nos faz mesmo falta e o que nunca devia ter feito parte da nossa vida.
Hoje almocei na Baixa.
Sentia uma falta imensa da minha companheira de sala, na mina onde trabalhámos juntas uns bons anos; sentia falta - e nem me tinha apercebido - das paneleiras da Baixa. Aquilo é um guetto, uma curva do roteiro gay; sentia falta do sol e do calor, que a Baixa tem um micro-clima, talvez da proximidade do rio, das árvores da avenida, de tudo junto ou só da posição do sol; sentia falta do Noori, embora haja outros uptown, mas que não são a mesma coisa. Ainda assim, não me soube tão bem como quando ia lá em pausa de almoço. Até o paladar se altera, quando as coisas deixam de ser um bocadinho nossas; sentia falta da Rituals, que também tem outras cá para cima, mas a do Chiado tem as minhas empregadas mais queridas, que me dão chá a provar e me recomendam datas para lá voltar e receber brindinhos que eu adoro.
Não sentia falta nenhuma, e nunca consegui adaptar-me, aos sem-abrigo, mesmo àqueles que me tratavam bem. Há um tipo de miséria, mais ou menos voluntária e auto-inflingida, à qual não me habituo e chamem-me lá cagona, mas não dá; não sentia, nem sinto, falta nenhuma da mina, propriamente dita, e de todo o seu recheio: desde a capataz às mulas, dispenso tudo, passando pelo estagiário dos olhos lânguidos e pelo outro que não tinha pêlos no peito, mas, em compensação, tinha uma cremalheira fora da boca de dar dó; não sentia falta da confusão, dos carros a apitar, as ambulâncias a passar, as mendigas romenas sentadas no chão, os empregados de loja a soprar piropos parvos (ai o crime...), a biodiversidade da Loja do Cidadão, o cheiro a chichi ao longo dos passeios, muito em particular em quase todos os vãos de portas - que são a habitação de alguém, com cartões no chão, todos urinados, que será a casa-de-banho, e agora se calhar calava-me, que já me estão ali a chamar cagona outra vez, ou serão as minhas vozes?
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