22/06/2020

The girl next door # 17

Cá na barraca de betão armado, que alberga trinta e sete casas e não menos que setenta almas despenadas, tudo normal. O de baixo chega a casa e despe-se na varanda, à qual tem acesso, julgo que apenas por dentro da casa dele. Seja o que for que traz agarrado à roupa, vindo da rua, fica ali a arejar e o vento leva, como lá no "E tudo o". O de cima continua a vender saúde, apesar da miudinha que grita dias inteiros, envelhecendo-lhe a mulher dia após dia. Grisalha, despenteada, enrugada, disse-me outro dia, do fundilho dos fundos olhos azuis, que saiu todos os dias, mesmo durante a quarentena, para não ficar louca. Entretanto, parece-me novamente grávida. Sendo assim, desejo-lhe uma criança com uma caixa de velocidades torácica menos potente do que a que esta tem.
No andar de cima mora há pouco tempo um casal de rapazes. Um deles assusta-se com uma facilidade assustadora. Outro dia ouvi miados aos brados fora da minha porta, confirmei que tinha a gata dentro de casa e fui verificar o que se passava. Estava uma gata nas escadas entre o meu andar e o deles, subi os degraus que me distanciavam da bicha, mas ela deu em dar corda às garras e marinhou por ali acima à minha frente. A porta do apartamento deles estava aberta, o assustadiço assomou-se e a gata deu um pulo vertical daqueles mesmo à gato, escarranchou-se-lhe nos ombros, ele gritou "Ai, valha-me Deus", mas não sei se teve sorte, que o animal continuou em voo, desta vez picado, porta dentro. Percebi então a que casa pertencia a gata: à das três doidas - mãe e duas filhas - que moram ao fundo do hall dos elevadores. O sentido de orientação dos gatos permite-lhes saber qual a porta das seis de cada andar é a sua, mas não conseguem raciocinar que subiram ou desceram um lance ou dois.  Lá veio a filha que também arrasta os pés mas ao menos não resfolega buscar o bicho e fim.
Creio que, se Deus chegou a valer ao rapaz naquele momento, não valeu com certeza dias mais tarde, pois, enclausurado no elevador, tomou-se de pânico e destruiu a máquina por completo, de modo que só o arranjo do dito ascensor ascende a cinco mil euros, passe o pleonasmo. E agora andamos os cerca de setenta escadas abaixo e escadas acima, quando perdemos o elevador sobejante e a paciência para esperar por ele. Parece que se discute agora quem paga o arranjo. Cá por mim, pode ficar como está, faz parte do meu novo normal: menos umas aulas de step a que me deslocarei e mais uma poupança para o gordo do condomínio.
A velhota que tem porta em frente do elevador, viúva há vinte anos, substituiu o saco do El Corte Inglès com que andava desde que o marido morreu - e que me sugeria mil e tantas possibilidades quanto ao seu conteúdo, até que um dia a apanhei desprevenida na paragem do autocarro, fui espreitar e eram apenas... jornais -, por vários sacos transparentes com que forra as mãos para sair à rua. Depois deixa sacos caídos nas escadas, nem imagina o patim que aquilo é se alguém lhe põe um pé em cima. Também não a tenho em grande conta mental, pois aqui há uns anos acercou-se da janela e chamou parvo ao meu filho porque ele andava de skate na rua e a filha dela (uma calmeirona, já na altura com trinta e tal anos, e que nem sequer morava aqui) precisava de descansar, em plena tarde.
De resto, tudo normal, já disse?


2 comentários:

  1. Que leitura deliciosa! Gostei! Por aí, monotonia não há de certeza :)
    Tarde boa ;)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada, Esquilinha :)
      Isto deve ser igual em todos os prédios!
      Obrigada, noite feliz :)

      Eliminar