20/05/2020

História sangrenta

Era uma vez eu, que fiz um pequeno golpe na articulação do polegar direito, isto já ontem, ao manusear uma lata de salsichas. (As aberturas fáceis são, para mim, todo um mistério da mecânica que eu não deslindo.) Aquilo sangrou a jorros, como se não houvesse amanhã (hoje). Mas houve, e hoje, sentindo-me já recuperada do golpe, retirei o penso rápido rapidamente e fui para o correio em missão: a de enviar uma missiva. Estou na fila, já com a máscara no respiradouro, quatro almas despenadas à minha frente, dou um toque no envelope e assisto, com horror - mais derivados da inoportunidade da coisa do que da imagem (é que eu sou dessas valentes que não tem fobia a sangue, há mesmo quem não aguente ver a palavra sangue escrita) -, que me desato ali a exanguir, sem um penso à mão, sem um lenço, um guardanapo, nada. Vá que não caguei o envelope. Contudo, aquilo não parava de golfar e estava quase a chegar a minha vez. Lembrei-me então de fazer o que fazia aos meus filhos quando se magoavam na rua: lamber a ferida. Levei o quase coto dedo com dói-dói à boca, esquecida, porém, de que tinha a máscara posta, pelo que a ensanguentei no mesmo momento. Retirei-a, suguei a sanguinária, recoloquei-a e verifiquei que, com os nervos, continuava a deslargar fluido. Achei boa ideia, então, deitar-lhe uma gota de álcool-gel e envolver o braço todo dedo no único papel possível que encontrei na mala: uma conta do Continente já um bocado amachucada, só que em tempo de guerra e toca a andar, até tive o cuidado de pôr as letras para fora, não fora a tinta entrar-me na corrente sanguínea e ainda me finar de uma afecção estranha que nem os médicos atinassem com o meu mal e ainda me mandassem para as estatísticas do vírus. E foi assim que entrei no correio, o papel das compras todo ensopado e eu muito convicta: “É correio normal, e também um penso rápido. Já agora, também uma máscara, que esta já não presta e eu não vou daqui para casa”. A senhora estava tão lívida (se calhar sofre de hematofobia), que, quando saí, já com o penso e dez máscaras novinhas em folha e lhe agradeci, respondeu: “Obrigada eu”. Deve ter desmaiado a seguir, mas isso eu já não vi.


4 comentários:

  1. Ele há coisas do caraças nos momentos mais impróprios. Haja desenrascanço que nos valha, não é?

    Boa tarde :)

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    1. Completamente inesperado, este. E só pode ter sido algum pico nervoso que justificou semelhante sangramento de um golpe tão pequeno!

      Um dia feliz, noname :)

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  2. minha querida Blue, li-te com atenção e dei uma boas gargalhadas. pela "senhora" dos correios e pela "minha" farmacêutica, que também ficou lívida, quando uma vez lá cheguei com um belo talho e perguntei se faziam curativo. pensava eu que aquela gente das farmácias tinha ido à tropa e se aguentava na guerra! ahahahahaah! nem pensar! (também não ajudou o talho ser mesmo grande eu ter de ir para o hospital levar pontos :/

    as tuas melhoras e um abraço forte!

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    1. flor, minha madrinha querida, só nos deparamos com fracos! :D
      (Numa farmácia!? Onde é que já se viu?)
      Já estou bem, nada que se compare ao teu! Obrigada, anyway.
      Beijo grande

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