17/03/2020

Filhos sem Deus

Ainda tudo isto vai no início e já a tristeza a querer tomar conta de mim. 
(Tenho que, urgentemente, começar a fazer ginástica cá no lar. Sair à rua, neste momento, é mais angustiante do que ficar em casa.)
Nunca pensei viver estes dias, nunca imaginei o meu paraíso à beira-mar plantado devassado desta forma. O máximo que equacionei foi, remotamente, um terramoto na minha cidade. Uma guerra impossível. Um ataque terrorista improvável. Esta coisa de não sabermos para onde nos virarmos (se correr, o bicho pega, se ficar, o bicho come - como se diz no Brasil), por não haver um canto seguro e todos parecerem mais tenebrosos, nunca algum dia considerei. 
Ouvir que vamos ser milhares de infectados e não teremos ventiladores para todos; que a selecção se fará dos mais velhos para os mais novos - tenho medo, pessoas, tenho tanto medo. Sem motivos pessoais (porque, infelizmente, já me restam tão poucos velhinhos), mas por prever então uma espécie de eutanásia passiva. Depois dos mais velhos, quais se seguem? Os doentes crónicos? Os deficientes? Os gordos? Os pobres? Qual vai ser o critério, então?
Aqui há uns dias, que agora me parecem longínquos, num supermercado ainda sem contingentes, mas já com mais gente do que o normal para o dia e hora, passava por mim um jovem casal como outro qualquer, não fora o pormenor de serem ambos deficientes: ele empurrava um andarilho, a imperfeição das pernas desenhando um perfeito S, ela empurrava o carrinho das compras, e, a avaliar pela divergência do estrabismo e todo o semblante, muito provavelmente teria uma limitação cerebral. E foi quando ela o chamou para que desse opinião sobre um artigo, 
Oh, amor,
que senti o coração transbordante, agora num aperto doloroso. 
Porque não existe um deus capaz de seleccionar sem cometer injustiças atrozes, estou hoje a perguntar-me pelo destino deste amor, se a mão implacável, o dedo aleatório, tiver o capricho de - através daquela outra mão que dita quem vai e quem fica -, apontar na direcção de um destes dois seres humanos.

6 comentários:

  1. Eu começo a ficar muito ansiosa... e justamente por isso! Eu supostamente não pertenço a nenhum grupo de risco mas... e os outros? E fora de Portugal? Em países em que a mão do Estado e a Segurança Social são invisiveis? E as pequenas e médias empresas do nosso país? E quem não tem salários assegurados para uma quarentena? Tenho andado bem deprimida e hoje, pela primeira vez, passei todo o dia na cama sem motivação para sair e fazer nada.

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    1. Sabes, a questão económica ainda me preocupa menos do que a humana. Tenho a pirâmide dos valores demasiado bem interiorizada (vida bem acima do direito ao trabalho) e um lema actual, que diz: antes falidos que mortos. Enfim, no limite, não haverá empresas se não houverem pessoas.
      O "truque" é manter rotinas. Eu maquilho-me, penteio-me (hoje até pretendo pintar o cabelo), arranjo as unhas, visto-me como se fosse sair. É importante para os meus, é essencial para mim. Vejo mais televisão, muito telelixo (que me distrai melhor que qualquer intelectualidade), leio mais, jogo cartas comigo mesma, e hoje vou, finalmente, exercitar a musculatura. Já fui buscar o colchão e a mini-elíptica à arrecadação. Amanhã começam as limpezas a sério. Uma casa brilhante e cheirosa também é mais agradável de ser vivida.
      Não te deixes consumir, esta é uma fase e, quando terminar, teremos que estar iguais ao que éramos, porque a vida continua. Ter um dia mau faz parte da vida, o truque é não deixar que a tristeza nos afunde.
      Um beijinho :)

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  2. Que tenhamos sorte, linda. Que tenhamos sorte e os contaminados sejam, por sorte, gente mais jovem...

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    1. Isso, Nê. E que o vírus não sofra mutações. Que não nos acorrente mais ainda...

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  3. Só hoje vou começar este período de quarentena. Tenho ido trabalhar todos os dias e enquanto estou no escritório, tirando praticamente o telefone não tocar e os mails estarem reduzidos a metade, não penso muito na nossa nova realidade. Mas quando saio , por exemplo para almoçar, nota- se como que uma angústia que paira sobre tudo . Certamente que quando tudo isto acabar estaremos diferentes, não sei se melhores mas é impossível ficarmos iguais.

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    1. Parece uma realidade alternativa. Um filme de ficção cientifica, em que toda a gente se foi embora e só ficámos nós. Um pesadelo ao vivo e a cores. Nas filas, ninguém sorri, ninguém troca uma palavra com o desconhecido da frente. Assustador.
      Eu tenho a grande fortuna de ter o escritório a 100 metros de casa, mas não vou na mesma. Nem sequer tenho trabalho para estes dias, nem sei para quando terei. Mas essa é agora a última das minhas preocupações :/

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