16/03/2020

A pessoa humana metida na bolha

Estou a fazer um esforço de reclusão. Qualquer dia imponho-me uma farda, um horário rigoroso de alvorada e recolhimento, autoflagelo-me caso prevarique (a mera chegada à porta do elevador, por exemplo) e crio mesmo uma solitária, para me castigar de atitudes mais rebeldes.
No entanto, anteontem fui correr para o Campo Grande (sim, eu era aquela gira dos calções pretos - comprei-os há dias e era urgente estreá-los, ainda que chovessem gatos e cães, como na Inglaterra). Ontem fui caminhar uns poucos quilómetros, dei uma volta ao Estádio Universitário (sim, eu era aquela gira) pelo perímetro mais alargado, tudo em nome do anti-ensandecimento. Não é que eu seja uma pessoa muito arruaceira, mas a ideia da clausura forçada desinquieta-me. Tenho planos para me entreter, alguns deles sem piada nenhuma a partir do dia em que dê carta de alforria à minha empregada (tipo amanhã) (é que acho que ela não pode trabalhar a partir de casa) e passe a ter que cumprir as tarefas domésticas quase todas, qual cigarra. Tenho a casa reduzida a quatro elementos (eu sou um deles), uma porque foi de Erasmus e não quer voltar agora (apesar de estar confinada a uma residência universitária e com a faculdade fechada; outra porque já foi fazer ninho para outras paragens), dois ainda a trabalhar, um a ter aulas online, isto à conclusão: quem é o sortudo do designated shopper, quem é? Ah, pois, então se posso encostar a barriga ao fogão e as ancas à vassoura, também posso ser eu a mula de carga vacuda que vai às compras, caso isto dê para o estado de emergência (que vai dar). 
De resto, tenho mantido as minhas rotinas higiénicas e estéticas, embora verifique que, ao terceiro dia, o povo já está a desmazelar-se, alinhando no fato de treino em alternativa ao pijaminha. Qualquer dia não se barbeiam nem se depilam. E não se lavam. Tipo Robinson Crusoe.
O ginásio fechou, portanto só me resta ir buscar o colchão à arrecadação, os alteres e as caneleiras e ir para a varanda gemer, isto assim que o tempo permita, que só me falta apanhar uma constipação só para chegar ao Verão fit-not-fat. Pronto, e se, por um absurdo que ainda não está fora de questão, este ano não puder pôr os dois pezinhos na areia, hei-de poder pôr na varanda. Nem que vá buscar a caixa de areia da gata, mas isto assim é que não fica. E tudo menos flácida.
Vá, pronto, também vou ler mais e ver mais filmes. Calma.

4 comentários:

  1. Eu já enjoei do Netflix... já não sei que ver...enjoei a tv... tenho zero vontade de ler e é o meu 5º dia de isolamento e noto que estou a engordar a olhos vistos... E sim, estou em Lisboa e somos 3. Os outros 2 vão trabalhar e andaram nos copos no Cais Sodré... Há algo mais degradante que me infectar em casa de quem andou a curtir enquanto eu estou que nem múmia sem vida?

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    1. Isso seria, no mínimo, irónico. Nós protegemo-nos para proteger o outro, agradecemos que ele faça o mesmo, enfim.
      Agora já somos quatro em casa. Ainda não enlouquecemos porque tentamos ajustar rotinas. Mas antes loucos que mortos.
      O Fox Movies não é mau. Netflix só tenho na sala, e tenho os sofás mais desconfortáveis do planeta :) A mim, qualquer coisa me entretém, porque qualquer coisa me adormece, a verdade é essa. Vou começar a fazer limpezas a fundo e também exercício físico. E dança!
      Vamos dar tempo ao tempo, agora mais do que nuca, Raven.

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  2. que isto sirva ao menos para ler textos maravilhosos como este :) obrigado pelo serviço público, vou tomar banho!

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    1. Obrigada, Manel, que gentileza :)
      Olha, não comento no teu há que séculos porque tentava fazer isso através do telemóvel, mas o aviso de cookies tapava tudo, especialmente o botão de publicar. E só hoje percebi que pelo computador é possível.
      E barbeia-te :)

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