29/05/2019

Agora o meu cartão de cidadão é uma folha A4

Então, lá fui ao serviço público da capital de distrito mais próxima da minha residência, suficientemente longínqua para que nem com binóculos visse as bichas que contornam quarteirões com vista à renovação do cartão de cidadão. Cheguei às 9 em ponto da madrugada, hora a que as portas se abriam de par em par. Porém, já entrei atrás de outros sete, julgo que regionais, que devem ter ali aterrado antes do nascer do astro: quase todos senhores de muitíssima idade, naquela faixa em que ainda levam bilhete de identidade (perpétuo) e só vão mudar porque algo na identificação se alterou, tipo o estado civil. Curiosamente, nenhum deles tirou senha prioritária. Mesmo o primeiro, e apesar de o ser, podia. E a terceira, bem mais velha do que a segunda, amorosa, de sapatinhos de fivela, a fazerem lembrar as sandalinhas inglesas das minhas meninas, quando era eu a decidir o que é que elas calçavam. 
Bom. Eu era a 8, portanto. Fiquei ali, cotovelos em cima do balcão, a assumir o semblante de sala de espera, enquanto apreciava o redor: pregado na parede, um calendário de uma funerária com a imagem de um pássaro a alimentar as crias no ninho; um homem de mangas arregaçadas, do casaco incluído, calças de ganga largas com um autocolante colado no rabo, mãos nos bolsos, falando alto, andando para lá e para cá e eu a começar a ficar nervosa; oito secretárias para os funcionários, seis que foram sendo ocupadas aos poucos, cinco mulheres, um homem, só dois a atender, as outras quatro extremamente ocupadas com o computador e papéis, todos da mesma idade, todos iguais: vários quilos acima do peso para o índice, todos de óculos, todos de uma concentração coordenada e pouco simpática. 
Fui atendida por uma das cinco, que não gostou de mim. Eu sei que ia num dia de bad hair, com cara de agarrada a precisar de cafeína, mas, essencialmente, acho que a endémica ficou azeda porque eu era uma forasteira. Pronunciou a bold sublinhado a palavra "Lisboa" e suspirou quando lhe disse que preferia ir ali buscar o cartão de cidadão do que ter que me meter nas filas da capital - e pronunciei a bold sublinhado "capital". Perguntou-me se queria ficar com a mesma fotografia (que tem nada menos que cinco anos) e eu respondi que Isso não me parece muito honesto, daqui a dez anos tenho na minha identificação uma fotografia com uma décalage de quinze anos, e ela, nauseada, mandou-me meter atrás de uma barraca de ferro e olhar lá para um óculo, só faltou gritar Não respire. À primeira chapa fiquei horrível, para além de descentrada, só se via uma parte do meu ombro esquerdo. Ela que isso não interessa, eu ai que era o que faltava, quero tirar outra, e lá reiniciei a sessão fotográfica. Contudo, não havia modo de ficar bem na fotografia, literalmente, pois o óculo ficava uns centímetros acima da minha testa, e, convenhamos, ninguém fica bonito a olhar de baixo para cima, com aquela subserviência, ainda mais se estiver aterrorizado, como era o caso, pela semelhança entre o cubículo e umas máquinas de RX com as quais fui confrontada em pequena, que ainda hoje me assusto só de me lembrar daquilo a espalmar-me contra a parede e não haver chinfrineira da minha parte que cessasse o processo. 
Depois a seca que me saiu na rifa não me quis medir, o que achei mal. É que foi a minha última esperança de entrar na velhice com alguma dignidade. Isto, porque tenho assente nos meus documentos identificativos desde para aí os dezassete anos, que meço 1,68 metros. É o que, efectivamente, acho que meço, mas existe a possibilidade de ter um dia dado a volta à cabeça a um funcionário do Arquivo, ter sido medida de saltos altos e lhe ter dito que não me retirava nem um centímetro por conta das andas. Bom, isto era segredo até hoje. Mas vamos acreditar que são 168 centímetros e que serão até daqui a dez anos. 
Às tantas, a pessoa desapareceu, foi lá dentro fazer não sei o quê, até pode ter sido cocó. Cônjuge entra na sala e pergunta-me qual era a senhora que me tinha atendido, e eu, sincera, que Não sei, hás-de reparar que têm um denominador comum, ainda não percebi se é sempre a mesma que vai mudando de roupa e de secretária. Penso que era uma destas. 
Então, uma lá do fundo da sala, grita na nossa direcção: Os senhores, é para divórcio?
Olha se fosse.
E, mesmo não sendo, não foi chato?
Não. Não me parece, pelo menos... Nos próximos cinco minutos, não de certeza.

2 comentários:

  1. Eu acho que são escolhidas a dedo. Assim domo no caso dos 3B's (Bom,Bonito e Barato, essas senhoras devem ser escolhidas na mesma regra mas numa de Bafientas, Beras e Brutas.

    Noa Tarde, LB

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    1. Naquele caso, quase posso jurar que foram todos colegas de turma no básico.

      Boa tarde, noname

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