24/09/2018

Bola prá frente

Coincidência — ou sei lá se talvez não — é ouvir no mesmo dia, com meia-hora de diferença, em dois locais totalmente distintos da cidade, mas exactamente pelo mesmo motivo, a expressão 'bola prá frente'.
Tratada e assinada a papelada necessária por motivo da morte da minha mãe, estou a levantar-me da cadeira onde me havia sentado, quando o funcionário que acabou de me atender me aconselha: Bola prá frente.
Deixo-o para trás e vou ao cemitério. Preciso de tratar de mais uma questão burocrática, que não é urgente, não fora a urgência de desapertar o coração, indo ver os meus pais.
À saída, cruzo-me com algumas pessoas que ali ficaram a conversar, depois de terem ido deixar alguém, que não sei quem nem porquê, mas imagino. Avalio o tamanho do grupo, as idades, a ausência de lágrimas, o despojamento, e sei, ou ponho-me a adivinhar, que terá sido uma pessoa de muita idade, ou tão doente que a morte lhe sobreveio à vida como um alívio seu e dos seus. Não faço julgamentos, who am I to judge? Não sei para o que estou guardada, e, na verdade, também não quero saber. É quando ouço um dos elementos do grupo dizer para outro, eventualmente mais enlutado, mais próximo do falecido: "Agora é bola prá frente". Há algo que me tranquiliza quando percebo que não me vou cruzar com alguém que esteja a chorar. O meu primeiro impulso é sempre socialmente inaceitável, e, por isso, prefiro seguir caminho para a vidinha, deixando a morte — e uma considerável parte da minha vida — para trás. A bola, essa, é prá frente, dizem eles na sua imensa sabedoria futebolística. Seja qual for o tamanho da perda e a dimensão do desgosto.



4 comentários:

  1. Na perda tendemos mais a olhar para trás que para a frente, a vida dos que ficam continua mas as memórias do que lá atrás ficou, são o aconchego da saudade. Abraço apertado, Bluezinha

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    1. Mesmo, Bezinha. A edificação dessa saudade é o que nos resta da presença deles, daí que a alimentemos para que não percamos o restinho que nos ficou.
      Outro, querida.

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  2. Perdi o meu pai ha 3 anos. Era uma pessoa maior que a vida que tocou muita gente... no funeral chorava o padre, o médico, o coro, chorava tudo. A bola nunca foi para a frente. Foi para o lado, e comecei uma vida nova. Como aprender a viver de novo de um outro jeito. Aprendemos com o passado... foi como ter tirado um curso. O que fazes na vida depois não é mais universidade... é aprender com eles a viver diferente. E admito que depois de muita muita dor, sou muito feliz agora também.

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    1. Sei bem do que falas, AEnima. Se te disser que o meu foi há 24 e ainda me dói... Mas também me reconstruí, me refiz, me reajustei. Entretanto, perdi a minha mãe, e estou agora na fase de refocar. Continuar, não sei bem para que lado, mas permanecer, sobretudo inteira. Mais pobre, mas eu na mesma. Não há alternativa, a não ser essa.

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