29/09/2018

As máquinas dispensadoras e eu

É sempre o mesmo imbróglio, cada vez que quero tirar um café das máquinas, designadamente por causa da quantidade de açúcar, que pretendo nula: esqueço-me de que devo começar por carregar no botão até desaparecerem as barrinhas todas, isto antes de escolher o que quero, antes de meter a moeda, antes de qualquer coisa. O ideal é já ir com o dedo espetado para o botão do açúcar mal cruzo a porta, senão aquilo entrega-me um xarope de café que, mesmo que não mexa com a palhinha plástica, sabe a rebuçado de açúcar com café e mais nada. Tipo aqueles cubos que se dão aos cavalos.
Mas, desta vez, foi diferente: quis uma barra energética com sabor a chocolate, uma dessas criações demoníacas que nos convencem (tits) que estamos a optar pelo bem, e nos farão magras como cadelas sarnentas e leishmaniosas, que é o que todas — mesmo as mesmo magras — queremos ser. Ninguém se iluda, que eu também já as perdi todas. 
Então, acerquei-me da dispensadora e reparei que a ranhura das moedas estava tapada com fita-cola, embora a das notas não. Ainda assim, escolhi a minha barra, digitei o número que lhe correspondia, e a máquina respondeu-me por escrito que devia inserir € 1,20, em quantia certa. Ora, como não conheço notas de um euro, muito menos de vinte cêntimos, considerei a possibilidade de haver ali qualquer confusão que não seria eu a deslindar, pelo que retirei a fita-cola e inseri uma moeda de um euro por ali adentro. Imediatamente, a máquina engoliu-me a moeda, só faltou ouvi-la mastigá-la e eructar no final. Já nem meti a de vinte cêntimos, não fosse engasgar-se e expectorar todas as que tivesse lá dentro. 
Lá tive que ir ao balcão reclamar do meu desaire, mas, desta vez, ao invés de "Nós não somos responsáveis pela máquina", ela disse-me "Eu sou nova aqui, não percebo nada daquelas máquinas, vou reportar". Portanto, acho que, logo a seguir, mal eu virei costas, inconformada e pobre — e também sem a minha barra —, reportou. 

28/09/2018

Dois pesos, duas medidas

Vamos lá a ver se a gente se entende: eu não celebro a morte de ninguém, não tento explicar homicídios, recuso-me a chamar motivos às motivações de quem se move com o intuito de tirar a vida a outrem, etecetera. Só ainda não consegui perceber o motivo - aí sim, um motivo - de espanto e horror pelo facto de a morte do triatleta de Alenquer ter sido perpetrada pela mulher dele, ou a mando dela, com intervenção directa do amante. Amante, atenção. Porque os senhores que assassinam suas mulheres/ namoradas/ companheiras ou ex isso tudo, quando têm outra pessoa na equação, ela é "a namorada".
(Como a do CR, que já tem uma chusma de filhos dele, fora os que lhe aguenta provindos do laboratório, mas continuará a ser, para todo o sempre, "a namorada". Pá, eu sou de outros tempos.) Bom.
A mim, o que verdadeiramente me espanta, é a quantidade de mulheres que morrem às mãos dos seus carrascos maridos, namorados, companheiros ou ex isso tudo (ou ex nada disso, pois a eles basta-lhes querer ter uma mulher que, mesmo que, e por força disso, ela não lhes corresponda nesse querer, já merece a morte). Só no primeiro semestre deste ano, foram mais dezasseis, o que dá uma média de trinta e duas por ano, ou seja, praticamente uma a cada dez dias. Parece que isto não choca ninguém. Também parece que o facto de alguém ser triatleta o distingue e define. Eu não sei se as dezasseis que morreram até ao final de Junho eram tetratletas ou pentatletas, médicas, domésticas, ilusionistas ou apenas mães. Eram pessoas, e morreram às mãos e pela vontade de alguém que as considerou indignas de continuarem vivas, just because. Alguém que, na linguagem jornalística, tinha "os seus motivos". Como agora, a indigna (sem ironias) viúva (isso sim, uma ironia, alguém adquirir este específico estado civil por sua própria iniciativa) do homem estupidamente assassinado, que era triatleta.

27/09/2018

Ela fala tanto # 25

Depois do "bué", veio o "ya", e, desde hoje, o "tchau, beijinhos". 
É certo que se pode dizer que quase coabitamos, pois ela labora no lar que é meu há praticamente vinte e um anos. Se até a própria lei considera esta relação laboral uma relação com especificidades próprias, quem sou eu para querer estabelecer ditames rígidos empregador - trabalhador com uma pessoa que me entra portas adentro diariamente e até "viu nascer" metade dos meus filhos?
Mas é que me questiono se um destes dias não chegaremos ao cumprimento de "Hey", que usava aquela personagem maravilhosa, Nick Moore da série Family Ties ("Quem sai aos seus"), dos idos 80's do século transacto.


E depois, mais adiante um pouco, passaremos para o cumprimento dos punhos fechados, e seremos migas e manas para sempre.

26/09/2018

Eu tenho problemas com tudo # 35

Não sei muito bem como é que hei-de descrever este fenómeno que me ocorreu, para que não pareça 1. Um romance de Agatha Christie; 2. Que eu tenho demasiados momentinhos louros, apesar de; 3. Que existo na blogobola só para vos aborrecer.
Vamos supor que adquiri na farmácia uma garrafa de água. Sim, haveis lido bem, na farmácia. A assistente afirmou-me, convicta, de que ela fora alvo de um prémio, embora não soubesse se atribuído à garrafa, ou à própria água. Esclareceu-me, ainda, que se tratava de uma água enriquecida com sílica, e eu, que até a julgava um químico venenoso, mesmo assim, trouxe comigo a dita garrafa, pois que a amei desde o primeiro olhar, e ela até podia vir inquinada com estricnina, que eu a queria na mesma. 
NMPPI
(é óbvio que trouxe a blue)

Deu-se então que a enfiei no saco do ginásio, para a transportar comigo até lá. 
Quando a retirei do saco, a tampa era totalmente outra. E estava firmemente enroscada no gargalo da minha garrafa linda e blue. De súbito, provinda do saco, saltou-me a tampa — literalmente — original, aquela que eu me lembrava ser a respectiva. Porém, ninguém havia mexido no meu saco, eu sabia não ter trocado as tampas, não existia qualquer explicação para o facto. 
(Mas também, à mesma pessoa a quem nasceu um sutiã na gaveta da lingerie, tudo pode acontecer. Hoje, anos volvidos sobre o "assunto", a única explicação que encontro como possível, é eu ter, inadvertidamente — e, portanto, sem dolo —, gamado o soutien de alguma companheira de balneário. Ou então, ETs.)
Desenrosquei, então, a tampa que não pertencia à garrafa, e procurei enroscar a que lhe pertencia. Porém, esta última nem rosca tinha, pelo que não aconteceu. 
Bom, andei nisto cerca de dias: a tentar perceber como é que as tampas se trocaram dentro do saco sem a intervenção humana, e a tentar perceber como é que a tampa da garrafa tinha deixado de lhe servir. Até que tomei medidas drásticas e entendi que o melhor era arrancar a argola de plástico que jazia no gargalo, convicta de que era isso que não deixava enroscar a tampa certa na minha garrafa. Munida de faca, estou nas primeiras tentativas de fazer saltar a argola, quando me apercebo de um pingo de cola seca no interior da tampa "certa". Eureka, então existe a tampa que enrosca e a tampa que a forra por fora, que mais não é do que uma cápsula. 
À garrafa, nunca saltou a tampa, nem dentro, nem fora do saco. Já a mim, foi por um nico.

25/09/2018

Notícias da minha gata

Depois de ter sido operada na passada quinta-feira, a minha Mia voltou para casa com um vestido cor-de-laranja e um cone abat-jour chapéu sem copa, transparente. A vet achou por bem vestir-lhe o tamanho 1, já que Dona Mia é uma gata light e slim, e qualquer outro ficaria grande aos seus abundantes (em ossos e pêlo) 2,880 Kg. 
(Sim, é extremamente magra; e sim, foi esterilizada; e sim, é ansiosa e vomita com alguma frequência; e não, não tem mais nada, a não ser agora caroços nas maminhas que ainda não tirou, e já basta de sustos e medos.)
Deu-se que na primeira noite pós-operatória, a safadinha conseguiu tirar o vestidinho e arrancar o chapéu, tendo ficado com os pensos à mostra e à mão, meio caminho andado para arrancar tudo até à costura, e, quem sabe, a própria também. Repusemos-lhe tudo como antes, ela não voltou a tentar tirar, mas foi ficando cada vez mais inactiva, mais quieta, mais triste. Esteve exactamente quarenta e oito horas sem comer, sem beber (e Lisboa abafava), sem ir à areia. Até que, no sábado passado, de volta à vet, tirou os pensos, mudou de vestido (para o tamanho 0, que a vet costuma vestir a coelhos) para um cor-de-rosa com debrum cinzentinho (também havia azul, mas achei que a minha menina ficava muito mais fashionerer em rosinha), tirou o chapéu e, autorizada a comer guloseimas (Agora vale tudo, disse a vet, embora não tenha permitido chocolate, à minha pergunta. Então, não é tudo), comeu comida mole das latas, bebeu água e já foi à casa-de-banho dela. E a toma do antibiótico passou a ser uma guerra de nervos e garras entre humanos e felina. 
Tudo muito melhor, em suma. Mas quero, em muito breve, voltar a vê-la como ela é e sempre foi: tímida,  nervosa, soberana, sobranceira. Uma rainha com medo do trono. 


24/09/2018

Bola prá frente

Coincidência — ou sei lá se talvez não — é ouvir no mesmo dia, com meia-hora de diferença, em dois locais totalmente distintos da cidade, mas exactamente pelo mesmo motivo, a expressão 'bola prá frente'.
Tratada e assinada a papelada necessária por motivo da morte da minha mãe, estou a levantar-me da cadeira onde me havia sentado, quando o funcionário que acabou de me atender me aconselha: Bola prá frente.
Deixo-o para trás e vou ao cemitério. Preciso de tratar de mais uma questão burocrática, que não é urgente, não fora a urgência de desapertar o coração, indo ver os meus pais.
À saída, cruzo-me com algumas pessoas que ali ficaram a conversar, depois de terem ido deixar alguém, que não sei quem nem porquê, mas imagino. Avalio o tamanho do grupo, as idades, a ausência de lágrimas, o despojamento, e sei, ou ponho-me a adivinhar, que terá sido uma pessoa de muita idade, ou tão doente que a morte lhe sobreveio à vida como um alívio seu e dos seus. Não faço julgamentos, who am I to judge? Não sei para o que estou guardada, e, na verdade, também não quero saber. É quando ouço um dos elementos do grupo dizer para outro, eventualmente mais enlutado, mais próximo do falecido: "Agora é bola prá frente". Há algo que me tranquiliza quando percebo que não me vou cruzar com alguém que esteja a chorar. O meu primeiro impulso é sempre socialmente inaceitável, e, por isso, prefiro seguir caminho para a vidinha, deixando a morte — e uma considerável parte da minha vida — para trás. A bola, essa, é prá frente, dizem eles na sua imensa sabedoria futebolística. Seja qual for o tamanho da perda e a dimensão do desgosto.



Chafé = chá de café*

Deu-se que fui tirar um mísero café, a troco de cinquenta cêntimos sem troco, da máquina dispensadora, mas, ao invés disso, ela dispensou-me um copo de água quente um bocado suja, tipo um chafé chalado, e eu queria mesmo era uma bica daquela bica.
Então, rarefeita, contrafeita e quase desfeita, dirigi-me a penas apenas ao balcão, copo de mijaroca na mão, já com a resposta que ia receber preparada: "Nós não somos responsáveis pela máquina".
- Nós não somos responsáveis pela máquina. — Disse-me ela assim para mim. 
Foi quando comecei a argumentar que não podia ficar sem café (não podia, efectivamente) e sem dinheiro. Evitei aquele outro chavão, não é pelo dinheiro, é pelo princípio (porque, na verdade, também era pelo dinheiro, porque eu não sou só pelintra, sou também sovina), e tratei os meus cinquenta cêntimos como se fossem cinquenta euros, a ver se dava a entender à pessoa que a grande questão se prendia mais com a necessidade de injectar o líquido no sistema sanguíneo do que pela pobreza franciscana em que me ia deixar tamanha perda. Ela sossegou-me, garantiu-me que o técnico ia lá todos os dias e que, no dia seguinte, me restituiria a moeda. 
(Lá fui pular sem cafeína, e depois admiro-me que não rendo o que gostaria no ginásio.)
Não fui no dia seguinte, mas para aí dois dias depois. Directa ao tal balcão, quis saber da minha moeda. Diz-me ela que ainda não era possível dar-ma de volta, que eu aguardasse mais uns dias, e foi aí que só não perdi a cabeça porque as vértebras não o permitiram. No entanto, apesar da revolta interior que ameaçava libertar a besta que também me habita, questionei, quase em falsete:
- Então quando é que isso é possível? O técnico não vem todos os dias? Era só tirar a moeda da máquina e restituir as indevidas. Ou não?
- Não, porque a situação é reportada e ainda vai à central. De lá é que dão o ok para as restituições. 

(Senti-me morrer um nico, como everytime we say goodbye.)


* não fui eu que inventei, créditos para um grupo com quem trabalhei, num local onde era recorrente fazermos chafé. (Acho que por engano.)

21/09/2018

Mihinha

A Mia, minha gata mais velha, foi operada ontem. No sábado demos com um caroço numa maminha, no domingo fez análises e ficou marcada a cirurgia para quatro dias depois. Tirou as maminhas todas de um lado, daqui a quatro ou cinco meses, já com dez anos, tira as do outro. 
A minha Mia nunca teve bom feitio, nunca foi o gato dócil que era a Mel, uma vez mordeu-me a ponto de me deixar uma cicatriz na perna, sempre odiou estranhos, nunca se enroscou nas visitas. Mas também não pediu para ir para a nossa casa, chegou-nos com três semanas, foi alimentada a biberon, tudo por um imperdoável capricho meu. E pode ter sido isso que fez dela desconfiada, insegura, ansiosa. 
(Adoro-a.)
E quebra-se-me o coração vê-la assim, ainda mais sabendo que vai acontecer de novo daqui a meses. 
Não sei como se mede o tamanho do amor que se tem a um animal, mas não deve haver uma régua, sequer uma balança fiel.




Foi tão blogger da minha parte # 9

Por mais anos que me passem sobre o lombo, nunca vou aceitar a lei das prioridades na sua plenitude de cada vez que sou confrontada com as ciganas [ai, Jesus, que coisa tão racista de se afirmar no blog!] [Olhem, não, quanto muito, etnista] e as gajas da Musgueira/ outro bairro assim desses [vá, agora elitista, ou estilista, ou lá o que é], que já vão para as repartições munidas de criança ruidosa, nem sempre de colo, nem sempre com menos de três anos, elas de auriculares na tola, telemóvel de última geração, o que quer que isso seja, chicla na boca, zero pachorra para a criança, e isto não é uma generalização, foi coisa que estes que o forno há-de cremar viu ainda hoje. Ainda apanhas, cumótro dia, disse uma para o petiz, de modo audível para o resto do povo, ou porque o volume da música (?) não lhe permitia sequer ouvir o que dizia. A sério que me pergunto o que é que estas pessoas vão fazer manhãs inteiras para as Finanças, a não ser fazer-me desacreditar na Humanidade.
Ao cabo de uma pequena tormenta de meia-hora de guinchos de uns e chinfineira de ameaças de outras (crime público, bitches!), fui atendida por um senhor que me tratou por Linda. (Queres ver que este sabe do blog? Estive para lhe sugerir uma parceria e tudo: ele limpava-me os impostos e eu dizia bem das Finanças dia sim dia não.)

20/09/2018

And that awkward moment # 51

em que ela me revelava os inalcançáveis e ocultos segredos do uso de uma água micelar — seja lá o que isso for — enquanto desmaquilhante, me aconselhava a utilizar discos de algodão para o efeito, e teve o cuidado de me recomendar (palavras dela) um disco diferente para os olhos, outro para a boca e outro para a cara.

E que eu, após esclarecer que não uso bâton, até entrei na mesma onda que a surfista do raciocínio, e respondi:
- O que me está a dizer é que não devo tirar a tinta das pestanas e depois passar o mesmo algodão pela cara abaixo?
- Exactamente.
[Exactamente. Lágrimas. Não de sangre. De tinta preta, mesmo.]

19/09/2018

Quando tudo te grita 'Não saias de casa!' # 5

Vá, que eu preciso de desabafar. Vão lá buscar os mochinhos, rodeiem-me e escutem-me, ou deixem-me.
Saí de casa com meia-hora de antecedência relativamente à hora de começo da aula de dança, para percorrer um percurso que não são mais do que dez minutos, mesmo tendo em conta os semáforos, as passadeiras, os xoninhas e etecetera. Subestimei a hora de ponta de Lisboa, subestimei que há uma casta de super-xoninhas que deixa o carro ir abaixo quando abre o verde, subestimei o quão difícil é encontrar lugar para parquear Rosinha, subestimei que preciso de cinco minutos só para me equipar, e até à paisana fui: um vestido que já deve ter sido mais largo, porque dantes me servia e agora está justo quase até ao sufoco, e uma sandalete de salto alto, que eu também não faço por menos. 
Digamos que, quando passei à porta do ginásio, faltavam quinze minutos para a aula, e de lugar para estacionar, nem sombra. Nem ao sol, na verdade. Afastei-me, assim, cerca de duzentos metros, e estacionei num parque daqueles que não só estão munidos de coluna de pagamento da EMEL, como também possuem um chão aos favos de mel em cimento, que consegue ser, simultaneamente, uma m. para os pneus e outra para os pés. Aconteceu, é claro, que a coluna de pagamento do parque ficava a, pelo menos, dez metros de onde eu me encontrava, mas o remédio era só um, como nas Finanças: pagar e não bufar. Perdi, portanto, a conta ao número de vezes que torci os pés nos favos de mel, até alcançar o pagamento do parque, e depois repeti a proeza no regresso, para pôr o raio do selo no carro. Palavra que equacionei usar a aplicação, ou então arriscar a multa, que me ficaria seguramente mais barata do que se tivesse fracturado um osso, que não fracturei. Neste meio tempo, já só faltavam dez minutos para a aula, eu estava a duzentos metros de salto alto da porta do ginásio, e o vestido, encharcado pelos meus nervos, havia-se-me colado à derme de tal modo que ponderei seriamente levá-lo para a aula, calçando apenas os ténis. Apressei o passo e cheguei quatro minutos antes do início da aula. O arrancar do vestido de mim foi algo doloroso, já que exigiu um momento em que, em asfixia, e em claustrofobia, tive que me contorcer toda lá dentro, arriscando a luxação dos dois ombros e dos dois cotovelos, para além da cervical e de todas as vértebras. Fui acabar de me vestir dentro da aula, já que foi lá que me calcei. (E sim, atravessei o ginásio a correr, descalça, como a outra.) (Não tem importância, eles estão habituados.)
É óbvio que não dancei nada de jeito. 


18/09/2018

Crocheiras?

Lagartando ao sol qual centopeia de apenas dois pés, apercebo-me, nas minhas estreitas proximidades, de um grupo de senhoras de já longa existência, maillots a condizer com as idades — grossos, padrões indiferentes e indefiníveis, um número ou dois acima do que lhes corresponde (para não ficarem justos ao corpo, ele próprio forrado a uma pele maior, bem maior do que os ossos que a sustentam) (naquela etapa da vida em que parecem trazer vestido um macacão de pele humana muito maior do que o corpo) —, sentadas em cadeiras desdobráveis que os igualmente descaídos e rugosos — porém, muito menos viçosos — maridos carregaram e carregarão, todas conversando animadamente, ou melhor, três escutando o discurso da quarta, que, sem trégua ou tomada de fôlego, prossegue, intrépida, enfática.
Então, penso,
Onde é que andam as senhoras do croché?
Dantes, as senhoras daquela geração, invadiam, ornamentando, as praias, os transportes públicos, as salas de espera, tic-tic-tic, com seus tricôs no Inverno, seus crochés no Verão. No horizonte oposto ao da linha que traça o mar, eram uma componente fundamental na paisagem do areal, ao longo de toda a costa, irmanando em importância com a bola Nivea, o banheiro, a senhora dos bolos (toda vestida de branco, mala de madeira branca à cabeça) e a rapaziada de chapéu de palha e baldes coloridos onde eu me confundia.
O que é que lhes fizeram? Deixaram-nas envelhecer mais e substituíram-nas por estas? São as mesmas, mas desistiram do croché? Estas estão só a fingir que não fazem croché, mas fazem-no às escondidas? Ou estão, efectivamente, a "fazer renda", e eu é que não estou a perceber? Ou estão ali, elas e a sua "falha", para me lembrar que não falta muito para ser eu própria a pegar nas linhas e na agulha de barba e, à frente de toda a gente, por insondáveis artes mágicas, articulando umas na outra, fazer aparecer uma toalha de chá?
Pode ser que já ninguém tome chá, quando esse dia chegar.



15/09/2018

Segundo treino para Sempre Mulher

Aconteceu hoje. 
Não me esqueci de contar os metros, através da aplicação: foram 5110, dos quais andei 200. Até ao dia da corrida, espero conseguir correr os 5000. Se não, não serei menos mulher, combinado?
Saí com tempo nublado, ar fresco, mas apanhei com o sol pela frente mal iniciei a corrida. Ao fim de quarenta minutos, tinha tirado algumas ilações, a saber:
1. Deus e Zeus e Alá e os chakras e todos os cristais que se alinhem para que chova naquele dia (28 de Outubro). O sol é inimigo de qualquer actividade de esforço ao ar livre, a menos que se queira falecer/ bronzear/ cansar a máquina mais depressa/ desidratar/ suar rios;
2. Caso não chova, esquecer a existência de roupa escura. As t-shirts da prova costumam ser rosa-shock, é rezar e prometer qualquer coisa a um dos anteriores para que este ano não saiam desse tom. Ou até podem resvalar para o rosinha-bebé (como já aconteceu), que também serve;
3. Água, só mesmo a oferecida no decurso da corrida, e sem exageros. Uma bexiga cheia é inimiga de uma boa prestação;
4. Rabo-de-cavalo ao alto, cabelo protegido por qualquer pano claro. Os bonés da prova são quentíssimos, o ideal são os bandanas (tenho de todas as cores, e pelo menos dois fazem um matchi perfeito com a t-shirt);
5. Sutiã de sustentação alta, idealmente um que espalme o peito até o achatar. Quanto mais merdas a abanar, menos hipóteses de endurance;
6. Meias quase inexistentes, ou então pelo joelho [que são horríveis e me deixaram um trauma de infância, pelo pandã com os kilts, mas que fazem uma boa compressão dos gémeos];
7. Rezar para que não nos aconteça uma cãibra, uma cólica, uma dor de burro, um tropeção, um atropelo daquelas atletas que já levam as medalhas todas no bolso, um cisco no olho, um míssil;
8. Não ir para os copos na noite anterior;
9. Dormir alguma coisa na noite anterior e tomar um bom café minutos antes. Uma espécie de dopping, mas em ponto muito pequenino;
10. Enfim, rezar todo o tempo da prova, que acho que ajuda. Sobretudo por todas as mulheres que passaram e passam pela infelicidade do cancro.


Não queria deixar passar esta data

sem dar conta ao mundo que hoje é o dia em que mais pessoas em Portugal fazem anos. Parabéns, pessoas portuguesas. (Acho que tem a ver com o Natal.)
Isto é assunto que já debati aqui sobejamente, mas parece que nunca basta. 
(Eu fui mamã pela primeira vez a 16. Pontaria, ou falta dela?)
(Já agora, o segundo dia mais aniversariado do ano é, precisamente, o dia 16 de Setembro.)

14/09/2018

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 59



Isto assim, vindo de um iogurte, não sei se encare como uma promessa ou como uma ameaça (sobretudo derivados ao calor que se faz sentir por estes dias que correm velozmente uns atrás dos outros, em filinha indiana).

13/09/2018

Vergonha é roubar e não poder carregar

Andava eu já cheia de vergonha de entrar em Rosinha, minha canoa: a chuva da semana passada pô-la de um tom terra sobre azul, como se fora ouro sobre ela. Cheguei mesmo a dar uma volta ao largo da barca e só depois me meter dentro, à socapa, quando presumi que não estava ninguém a ver. Pelas ruas da cidade, conduzi-a sempre munida de meus óculos escuros, quase tão bem disfarçada de mim mesma como Greta Garbo de si própria. 
As diversas tentativas para que me lavassem o objecto andante resultaram em nada, "Ai, sióra, teim deiz carro na frentchi da sióra"; "Lá pelo meio djia e meio [dez da madrugada] istá pronto"; "Nóis não funcionamo com marcação, é na hora", pelo que mantive minha Rosinha aquele torrão até agora. Ou melhor, até há uma hora.
Ponderei vergonhas e concluí que maior era a de andar num carro tão sujo do que ser vista pelos vizinhos todos a limpá-lo. (Mesmo aqueles que me odeiam.) Então, equipei-me de luvas, borrifador de água, líquido para os vidros e trapos e fui-me a ela. Mas quais chinelos, quais mola na cabeça, que eu tenho uma imagem a defender: sandalinha de salto e cabelo ao vento que não havia. Fui dar com ela ao sol, esparramada e indiferente à sua própria sujidade. (Lazy.) Isto estavam cerca de 33 graus na cidade e ela abrasava dos metais. Mas nada me demoveu de, apesar da canícula, da figura de obsessive compulsive, louca ou pelintra e do esforço que me esperava, limpar a bicha de alto [tejadilho e tudo, pois] a baixo [bom, rodas não, vá lá] e de a ter deixado a luzir das purpurinas. 
Ou por estar demasiado calor e não haver uma alma viva na rua, ou por ter adquirido o dom da visão-turva-anti-quem-não-quero-ver (dá muito jeito!), a verdade é que não vi vizinho nenhum, nos entrementes.
Quando terminei, o sol mudara de posto e Rosinha estava linda, blue e à sombra.
E eu toda suja.


12/09/2018

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 58

Atravancado que está o espaço dos supermercados com as vendas para o regresso às aulas, naquela que é a época pré-Natal destas superfícies, deparo-me com coisas assim:


Isto é giro, especialmente tendo em conta que a média nacional, ao nível do Português dos portugueses, ao fim e ao cabo de doze anos de escolaridade (doze dos dezassete que têm de vida, mais de 70% dela!), está em 11 valores na escala de 20. É certo que se uns obtiveram 12 (oh, extravagância!), outros obtiveram 9. É assim que funciona a estatística. Ou seja, para uns terem 18, outros tantos tiveram que ter 3. 
E depois, vem o pessoal da venda de material escolar — onde se incluem livros, manuais, enfim, papéis cheios de letras — incentivar à compra, e, quem sabe se também (na loucura), ao estudo, através desta linguagem periférica, na convicção de que só esta os nossos miúdos são capazes de perceber, e, naquela psicologia de pacotilha lá dos marketings, "só assim conseguimos chegar-lhes".

[Vá lá, eu sei que "bué" já entrou no nosso dicionário há muitos anos, embora devesse considerar-se um estrangeirismo — origem Angola ou São Tomé —, mas e quanto ao resto? Mano, cena, brutal, fixe...?]
[Ó pá, fónix!]

11/09/2018

I ran

Voltei às corridas. Já não me bastava o Jump, a dança e o caraças, agora corro. Quer dizer, corri uma vez, no domingo. Estou em treinos para a minha primeira maratona na modalidade de corrida, a Sempre Mulher. Já andei menos e corri mais. Em duas voltas ao Estádio, que tem quarenta hectares — o perímetro não sei, mas é fazerem a matemática, que eu ando demasiado cansada (a aplicação disse seis quilómetros, mas é quase uma evidência que devo ter deixado cair Ai-fostes no vinho tinto) —, apenas caminhei quatro vezes (nas duas rampas), por cinquenta metros cada uma. Assim por alto. Corri muito e corri bem, sobretudo risco de vida, pois que, às oito da noite, a fazerem-se nove, atravessando pequenos bosques e locais igualmente ermos, era viver na América e ainda me tornava protagonista de um Crime Investigation, aquele programa. Ainda bem (para mim) que não.

No fundo, este post é uma desculpa esfarrapada para colocar aqui esta melodia, que me apraz assaz. 

Nada a declarar

a não ser que dava um braço para ter um camiseiro branco sem mangas que eu cá idealizei, e o outro braço dava-o para ter um vestido preto e outro branco, também sem mangas, que comprei nos idos de 2013, exactamente na mesma loja, com o mesmo feitio e do mesmo número, mas o preto deixou de me servir (encolheu!), e o branco está estafado. 
Colecção Primavera/Verão de 2013, Benetton*, tamanho M, alguém?
Já corri o mundo virtual e o real à procura e não encontro. Apenas me encontro num sumptuoso estado de nervos. É de cortar os pulsos. Pelos ombros. 

* é óbvio que NMPPI, chiça penico.


10/09/2018

Curtas (ou nem tanto) e grossas

Fui chamada para o "palco" numa aula de dança, para acompanhar a instrutora numa coreografia. Ora, eu sofro de professorite, um síndrome que eu própria inventei, e que se explica pelo exponencial enervamento quando na presença de um mestre. Assim como existe o síndrome da bata branca, deveria existir o síndrome do quadro de giz (ou da caneta de feltro, ou interactivo, o que é que isso interessa?)/ dos óculos na ponta do nariz/ da autoridade não parental/ sei lá do que mais. Deve ser pela dificuldade na sua definição que o síndrome não tem nome. Logo, não existe.
Se eu sou de uma timidez caricata nos momentos em que me sinto avaliada, que são todos os da minha vida, imagine-se o que será (foi!) diante de uma plateia inteira. Não correu mal, mas porra. 
[Perdendo uma seguidora em 4, 3, 2, 1...]

Nem de propósito, deparei-me com este aviso
num determinado Museu desta cidade
(sou tão blogger, vou a museus)
(acho chato contar que a que nos recebeu estava com os copos)

~

À saída de uma aula de Jump, encontrei o enfermeiro que me tira sangue quando o vou dar. Não me lembro do nome dele, mas sei que o sei. Paulo, Pedro, João, um apóstolo. Também pode ser Sanguessuga, hei-de sugerir-lhe. Ele ia fazer Step, e eu devia ter ficado a assistir, porque se é aquela animação a sugar sangue às pessoas, que direi de uma aula de Step com ele ao lado. Mas eu fujo delas como o diabo da cruz, demasiada coordenação para a minha lateralidade excessivamente bem definida.
Depois da primeira surpresa que se sofre quando se encontra alguém fora do seu cenário, Olá!; Olá, enfermeiro!; Eu conheço-a!; Eu também o conheço, do IPS!; Eu sou o enfermeiro!; Eu sou a que dá sangue,
seguiu-se um diálogo muito digno e muito técnico, especialmente tendo em conta a pequena multidão que ali se encontrava a escutá-lo:
- Fez lá aferese?
- Não, porque não posso, tenho quatro filhos. Só sangue. Olhe, vou lá para a semana.
- Boa. Adeus!
- Adeus, bom treino.
(Sou tão simpática.)
(E blogger.)

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Como passar dados de Ai-fostes para o computa: esquece. Dava pano para um post daqueles que ninguém lê. Noutro dia.

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Voltei a pintar o cabelo em casa. Cansei-me da seca de ir ao salão do bairro. E a qualquer outro. Levei horas, mas ficou tão bem pintado que ninguém diz que eu não nasci já assim, morena e gira, e não aquela loura de olhos azuis, enorme e tronchuda, que fez o terror no berçário. (Not, calma. Já nasci assim, mesmo, esta delicadeza de dar dores.) Até estou a ponderar abrir o meu próprio estabelecimento, comprar baldes desta tinta e pintar as minhas freguesas todas da mesma cor, vulgarizando (ainda mais) esta que a Natureza naturalmente me forneceu.



(Isto já está demasiado blogger. Acabou.)

09/09/2018

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Talvez ao longo de uma longa vida, todas as pessoas se desdobrem em várias; talvez só assim entenda e aceite que perdi todas as minhas mães — e foram tantas — de uma vez, numa orfandade multiplicada por inúmeras, que nem sei por qual hei-de começar a chorar primeiro. Eu própria fui todas elas enquanto filha, primeiro acabada de chegar, depois criança, mais tarde adolescente, a seguir eu própria mãe, fazendo da minha mãe, mãe, mulher, a senhora que foi sempre, e depois avó. Faltam-me todas, mas, paradoxal e egoistamente, falta-me mais do que todas a última, falta-me precisamente a que já não estava, dependente — ou mais independente do que nunca — e ausente, entregue, e tão mais minha. Do que nos sobrou nos últimos anos, daquele ténue vestiginho de mãe, é o que me faz verdadeiramente uma falta esmagadora. Se pudesse fazê-la regressar, quem sabe não optaria por recuperar — paradoxal e egoistamente — a minha última mãe.

06/09/2018

Outra vez os excrementos

Esta noite tive pesadelos — o que me acontece com uma frequência assustadora [buuuuu!], embora sofra da felicidade de praticamente nunca me lembrar do que sonho, daí que não viva assustada, e que o meu coração vá aguentando, melhor ou pior —, por isso posso falar sobre o que me apetecer, designadamente acerca de moncos. Ou melhor, a bela história de um monco meu.
(Sonhei que me morria a gata que é doida. A que é mais doida das duas. Morria bebé, esmagada como um pombo que vi ontem no asfalto, parecia que pertencia ao alcatrão. Depois toquei-lhe com as pontas dos dedos no coração e ela insuflou e mexeu-se. Mas eu tinha um passarinho ao colo, embrulhado num lenço de pano para não ter frio, e ele morreu asfixiado.)
(Freud talvez não soubesse, os manuais de interpretação ainda menos, mas eu sei muito bem o que quer dizer cada troço do meu pesadelo.)
Eu sou uma pessoa que nunca se assoa e raramente se constipa. Quando sim, só me constipo de uma narina, sofro de constipações unilaterais, ou assimétricas. Pode ser por isso que fabrico moncos em quantidades subaproveitadas, mais valia montar uma fábrica de isqueiros, que pedra não faltaria.
Ou então, podia montar um atelier de bijutaria alternativa. Colares com três voltas ao pescoço, e cenas.
Ontem, ao deitar, extraí um deles. Já me enroscava no sono, não me apeteceu levantar-me, pousei-o na mesa de cabeceira e a minha cabeça na almofada. (Vá que não troquei.)
Hoje de manhã, a que fala tanto pegou no pequeno rochedo, pousou-o delicadamente na palma da mão e perguntou: "O que é isto?".
E eu, qual criança mentirosa, estremunhada com a recente confusão com os meus bichos mortos, vou de responder: "É uma pedra. Tinha-a no sapato, não quis metê-la na louça do pequeno-almoço porque depois ia para os canos, e então pu-la aí, para me desfazer dela quando fosse para a rua."
Adorei a cara dela, hoje.


05/09/2018

O elefante no meio da sala

Estava eu muito descansada, à-roda-à-roda-à-roda como uma ratazana, girando e rodopiando na aula de dança, quando, derivados ao aparelho e sua consequente maior salivação,
(porquê, não se pode falar sobre cuspo na blogobola? Quer dizer, as outras falam de piolhos, cacos de monco e puns de traque, e eu não posso falar de cuspigongos?)
que, meninos, aumenta exponencialmente quando se coloca o objecto estranho na boca, me salta um perdigoto tamanho xxl para o soalho da sala de bailarico, mas uma coisa gigantesca, daqueles que até fazem um arco no ar, se elevam acima da nossa cabeça, e aterram, estatelados e grandiosos, nem bem aos nossos pés, mas a uma distância suficiente para que, embora não possamos esborrachá-los, eles não nos saiam do campo de visão nem do Mundo, o que nos permite pressupor que todos aqueles que nos rodeiam o vêem, porém fazem a fineza de o ignorar, o que é, convenhamos, muito mais constrangedor do que se, efectivamente, não o avistassem. Um pouco a cena do elefante no meio da sala, que toda a gente vê, mas todos fingem que não. 
A própria coreografia que a humana tentava seguir no momento também não deu uma ajuda, pois não surgiu nenhum passo, por mais que me adiantasse, cruzasse ou saltasse, que calhasse pisar o perdigoto. É certo que poderia ter saído do esquema, saltado a pés juntos em cima da poça, mas sei lá se aquilo não dava em rebentar e lá ia eu pelos ares, cheia de saliva por mim acima. Além disso, tal atitude daria ainda mais nas vistas. Quem é que pula em cima do elefante? Pois. E ele ali, brilhante, exuberante, rechonchudo, só faltava içar um flyer a dizer "Mamã, estou aqui".
É claro que, até se evaporar completamente, se transformou numa pequena lagoa, depois num riacho, logo a seguir num oceano em modo tsunami. Só depois encolheu, e, quando fui para o pisar, com todos os cuidados para não escorregar - a ver se alguém lá meteu um daqueles avisos de piso molhado, é o metes! -, ele já se evaporara para não sei onde, quiçá para a atmosfera, ou para a minha pele, onde terá sido reabsorvido e reentrado no meu sistema linfático-nervoso e de hoje para amanhã se transformará na maior pérola de canto de boca que a História ilustrada da minha rua já viu.


04/09/2018

You can call me Mrs. Murphy

Era uma vez eu, freguesa da Worten, loja que emite todas as facturas/ recibos/ talões/ demais papeis com a designação de "electrodoméstico". Tanto posso lá comprar uma coisa para aparar as patilhas e as suíças, como pode ser um drone, que é tudo electrodoméstico e não se fala mais nisso. Está bem.
Deu-se que, na mesma época, mas seguramente há menos de dois anos, sou pessoa para ter adquirido uma torradeira, uma varinha mágica e um ferro de engomar, tudo ali no espaço de sei lá, mas pouco tempo. É que as coisas avariam muito na minha casa, não há OGE que aguente, quanto mais o doméstico.
Entretanto, a varinha avariou, procurei nas minhas papeladas a prova da compra, para activar a garantia, encontrei os três papeis e levei-os todos à loja, para que me decifrassem qual era do quê. Assim, para que não houvesse mais confusões, escrevi em cada papel a que correspondia o electrodoméstico. Se há coisa da qual me lembro nesta vida, é de ter escrito "torradeira" ao alto daquele que pertencia à dita. E vim feliz para casa, esclarecida, e com mais uma varinha debaixo do braço, qual fada, pois que não aguentava esperar pelo arranjo da outra sem operar as minhas magias.
Atalhando: agora avariou a torradeira. Não é que não torre, que é para isso que uma pessoa lhe paga. Mas a mola não prende o pão lá dentro, portanto, dá-se que é necessário ficar a segurar a alavanca até mais não.
Mas e o papel, hã? Pois, não está em lado nenhum, ou melhor, encontra-se naquele local para onde vão todas as coisas de que precisamos para ontem e hoje não aparecem, por voltas e reviravoltas que dêmos aos inóspitos onde não só poderiam, como também exerceriam um dever em estar, que é o parte incerta.
Passo seguinte: vou à loja com este irresolúvel, com sorte acho um prestável que procura "no sistema" [suspiros e bocejos], e, na loucura, ele até encontra, a torradeira fica lá para ser arranjada, e eu volto feliz para casa, esclarecida, e com mais uma torradeira debaixo do braço, qual padeira, pois que não aguento esperar pelo arranjo da outra sem torrefazer mais uma fornada de pão.

03/09/2018

Entre as 10:00 e as 11:00

Todos os bairros e recantos do Mundo têm uma figura assim: no meu, é o Zé Maria, homem para os seus sessenta anos, idade mental de talvez uns seis. 
O Zé Maria tem o sorriso infantil sempre à mão na cara redonda, mas os olhos, azuis, são escuros como o céu brilhante das noites de Verão, enrugados e tristes, e é essa desproporção que o torna encantador, por parecer simultaneamente uma criança infeliz e um adulto sorridente. 
- Estás tão bonita! — Disse-me ele hoje, na minha hora feliz do dia, que é quando irradio, e que vai das dez às onze da manhã. 
Estaquei a marcha e desfiz-me num sorriso certamente mais pobre do que o dele, estremunhada de surpresa boa, encantada não tanto pelo conteúdo do comentário, mas pela espontaneidade que só os seis anos dele permitem. E agradeci a simpatia.
- Olha, tens linhas para me dar?
(O Zé Maria passa os dias no centro de dia, e faz pequenas peças de croché.)
- Aqui, não tenho, Zé Maria, mas trago-te de casa, queres?
E ele feliz.
- Olha, és solteira?
- Não, não sou.
- Ah, é que, se fosses, casava-me contigo.
E todo ele lógica feliz.
[Acho que não casavas, Zé Maria. Eu só tenho a tua idade entre as dez e as onze da manhã. Depois dessa hora, a vida leva-me para a idade adulta, e nessa clausura não havias tu de querer viver.]

01/09/2018

Barreira linguística # 3

Estou na loja dos cafés que se autodenomina boutique, numa daquelas esperas que hão-de contar como tempos mortos (oh, ironia) para me darem créditos de santidade aquando do juízo final, quando entra a família típica e claramente portuguesa, falando uns tons acima do necessário para se ouvirem uns aos outros — a menos que todos sofressem de surdez —, em Francês,
(há um denominador comum, ou não há? Pai, mãe, três filhos, todos hipernutridos, cabelos escuros, chinelos, calções, varizes, queijo de Nisa nos calcanhares, óculos de sol na cabeça, t-shirts do Ronaldo 100% fibra, e por aí afora)
obrigando o funcionário — que claramente não pescava uma palavra de Francês — a falar com eles em Inglês, um Inglês de escola, minimamente capaz de vender cafés.
E eram uns a falar um Inglês de improviso, contra outro a responder no tal Inglês — que há-de ter sido condição aquando da admissão ao balcão —, todos construindo a custo uma pequena e ainda mais inútil Torre de Babel, qual muro, quando podiam permanecer pacificamente na base, falando a língua comum (em) que todos (se) entenderiam. 
(São estes os mesmos que carregam a mala de bacalhau e vertem uma gota de cada vez que lhes soa o faduncho ao tímpano, pois são?)


Avenida de Roma, meu amor # 5

Foi um dia uterino, aquele. Fazia anos — dezoito — que tinha nascido o meu último filho, último da cadeia cadenciada de quatro, último (amor) da minha vida, o mais pequenino, a deixar assim de o ser, feito maior. Sem aviso prévio, sem autorização, sem recurso de apelo nem de agravo, diante da minha incredulidade derretida. 
Quis o destino que fosse à Avenida de Roma buscar o bolo de anos dele, quis o acaso que ainda não estivesse pronto, havia querido na véspera a sorte que tivesse ficado a saber em que casa, concretamente em que número, fui concebida, naquela avenida que calcorreei vezes que não contei durante toda a minha adolescência. Diante da possibilidade de esperar um bocadinho, preferi meter-me ao caminho, percorrê-la mais uma vez, e ir .
E lá estava ela, sólida, intacta, a porta da minha fundação como gente, eterna enquanto eu também o for, indestrutível como este meu amor.