31/08/2017

17, meu amor

Estavas a contar-me uma anedota, ou uma história com graça, porque me fazes rir e sabes que eu me rio sempre e tão facilmente de te ver rir, os olhos tão lindos marejados e a voz a enrouquecer de gozo, depois desmancho-me toda e marejo eu os meus na rouquidão das gargalhadas, e disseste
Agora esqueci-me da parte mais engraçada da história.
Tão eu, meu filho. Tão eu. Tão meu filho.
Isso acontece-me recorrentemente. É tão boa a piada, como se nos fizesse cócegas enquanto a contamos, mas depois deixa de importar por que nos rimos, é indiferente o remate que lhe dá sentido, precisamente aquele que nos escapa da memória, os outros especados, à espera de uma conclusão lógica ou cómica, e nós naquela perdição, 
Espera lá, como é que era?
Pode ser por isso que me rio tanto das tuas histórias com graça, por as ouvir exactamente como se fosse eu a contá-las, ou por gostar tanto de ti.
Já rimos juntos há dezassete anos. Mais nove meses.
Juntos.


30/08/2017

And that awkward moment # 39

em que vais ali a passar acompanhada, e surge uma ela, que tu não conheces de lado algum, nem nunca viste mais gorda, quanto mais mais magra, que se vos dirige enfatica e entusiasticamente, vinda lá dos confins de um restaurante, ainda de tabuleiro na mão e avental no regaço, espeta dois beijos nele, dois beijos em ti [vá, perdoas, porque o conhece a ele e essa ordem de factores permite-lhe ganhar tempo para serem apresentadas uma à outra], toda ela arfante, luminosa de calor, cheiro a óleo de fritar num belo cabelo louro de ondas cerradas preso num rabo de cavalo selvagem, moldura de olhos âmbar, aquela cor que ninguém tem, e o brilho deles, a pele tisnada de tanto sol e ralações de Inverno, a boca crispada num desabafo profundo, a desbobinar o filme da parte mais ou menos bonita da sua vida num imprevisto relâmpago, que o Paulo — que ambos conhecemos — é o homem da sua vida, que gosta dele desde a faculdade, depois casou, depois enviuvou, depois reencontrou-o e percebeu que ele é que é para sempre, que deixou de lhe atender o telefone, que não lhe responde às mensagens, que viveu com ele três anos e agora é como se não a conhecesse,
— e faz pausa diante da nossa incredulidade e balbucios, e depois larga a bomba —,
Mas o que é que ele quer? Eu até pensei em suicidar-me!
Nós não passamos do monossílabo, de escancarar bocas e olhos e que sim com as cabeças, mais dois beijinhos a cada um e até sempre.

Vamos lá a ver, qualquer um de nós tem dias em que acha que a vida é uma merda. Uma visita ao Alcoitão e passava-nos muita cena.
Mas a sério, tolerância zero para o povo que ameaça e publicita e alardeia. Se querem fazê-la, façam-na, mas calem-se. Ou, em alternativa, ide voluntariar-vos para o IPO, que isso vos passa tudo. 


28/08/2017

Completamente a perder a paciência para isto

penso dedicar-me, nos próximos minutos horas dias semanas meses anos tempos, à elaboração de um header.
Sem inspiração.
Com expiração. 

27/08/2017

Vocês não sei

mas eu vejo polícias por todo o lado. Polícia Municipal, P.S.P., e ontem também Polícia de Intervenção. Lisboa menina e moça, armada até aos dentes. Era suposto sentir-me segura.

26/08/2017

Odioga

[Odiei o ioga]
(Vá lá, não me obriguem a ir pesquisar considerações de género, O ioga ou A ioga, nem de variações em ré menor, Ioga ou Yoga, que eu sou uma ignorante assumida e feliz com isso, e não tarda começo a fazer associações de ideias com iogurtes e aquela marca que, se não aproveitou o nome, então é porque, afinal, ele há coincidências, e sorry ó MRP.)



Porque mantenho alguma verticalidade nisto tudo, quis ir a uma — nem que fosse a última —, aula de dança com o professor do ginásio que estou em vias de abandonar. Experimentei uma aula no novo, e, se decidisse puramente pela aula em si, ficava no antigo. É tudo uma questão de swing: ele tem, ela (instrutora no novo) não tem. Um destes dias explico isto.
Pela segunda vez consecutiva desde que foi de férias, o bom do mestre fez-se substituir por uma "colega", e eu, temendo outra experiência nefanda, enfiei pela sala ao lado, onde se instruía ioga. 
Achava eu que ioga era só a pessoa descalçar-se, sentar-se no chão de pernas entrelaçadas, abrir os braços com os deditos polegar e indicador unidos em arco, e vai de meditar de olhos fechados. (Não que me apetecesse muito, sobretudo em alternativa a dançar, mas estava mesmo a precisar de relaxar de ser eu, pelo que me pareceu giro experimentar.) E até foi assim, nos primeiros dez minutos. 
Depois desse (não!) aquecimento, começaram os exercícios de equilíbrio, aqueles que parecem fáceis à vista do sofá: pé no chão com o outro no ar, de olhos fechados (ainda gemi que tenho o pé chato, só para justificar a aparente cadela com que não me encontrava); pé no chão, faz o avião, de olhos fechados (esta, vá lá que ainda foi possível, embora tenha ali havido uma altura em que me pareceu que ia aterrar de cockpit no soalho); acocora, joelhos afastados, sem usar as mãos no chão, de olhos fechados (hahaha, sem usar as mãos no chão...); as duas mãos no chão, cotovelo no abdómen, levanta as duas pernas no ar (nem perguntei se era de olhos fechados, pois não ergui um único pé do solo, quanto mais as duas pernas); pino de cabeça ou arado, de olhos fechados (fiz o arado, já não faço o pino de cabeça há demasiadas semanas meses anos décadas para arriscar finar-me ali do pescoço e não conseguir explicar em casa por que é que tinham que passar a mudar-me as fraldas e a dar-me as papinhas à boca todos os dias para o resto dos meus). Isto, só para exemplo. 
Ou seja, ioga é meditar + prática de exercícios de extrema violência sem qualquer espécie de aquecimento. 
Disse "até amanhã" à professora, mas, na verdade, mentalmente foi um "até nunca". O-di-ei.



23/08/2017

Borboletas na barriga

Era um corpo nu e abandonado, aquele que se encontrava de costas voltadas para mim. Pálido, flácido, grumoso, há muito perdidas as formas femininas: anca quadrada, nádegas achatadas, ausência de cintura, pregas de pele em excesso na linha do soutien, pernas de contorno desalinhado. Avaliei-a para sessenta anos. Entrevia-lhe o peito descaído, a curvatura dos ombros desolada. Um ligeiro virar de cabeça permitiu-me vislumbrar-lhe parte do rosto, que desmentia o conjunto e revelava talvez quarenta anos. Na maior das várias barrigas dependuradas, surgiu então a tatuagem lisa, leve, linda, de uma borboleta. Havia qualquer coisa de muito belo num corpo descuidado, mas não desistente, numa barriga triste, apesar de resistente, onde ainda paira — e quem sabe que voos fará —, pelo menos, uma borboleta.

22/08/2017

Eu tenho problemas com tudo # 27

Ponham-se outra vez no meu lugar.
De vez em quando, a vida coloca-me nestas encruzilhadas, a mim, que nunca topei lá muito bem com o Y. 
Neste momento, gimnasticamente falando, estou como aquelas pessoas que chegam à fronteira entre dois países, colocam um pé num e o outro noutro, e tiram um retrato não sei para quê: estou inscrita em dois ginásios, não interessa como, embora possa adiantar que um dia acordei assim: biginásia. 
O que me prende, actualmente, ao mais antigo, é a dança. Neste momento, há uma única aula por semana, o que é pouco (especialmente quando, como na semana passada, o professor se faz substituir por uma chavaleca que julga que está no Farwest e passa cinquenta minutos, que afinal foram sessenta, a dar gritos de cowboy, aos pulos, e a sugerir "Improvisem!", ou "Quero que dêem murros no ar, como se fosse a alguém que detestam, que isto agora é uma dança combat" — tudo isto em vez de dançar. E eu já não tenho idade para aturar pitas tontas).
Ora, o novo tem sete — sete! — aulas semanais. 
Não querendo ser a Judas Iscariotes dos ginásios, das manicures e dos cabeleireiros, mas também não tendo rigorosamente apetite nenhum para andar a pagar a dobrar, tão pouco ter que fazer uma elástica ginástica mental e automobilística para conseguir frequentar os dois, põe-se-me agora o problema, gizado nos seguintes moldes: vou experimentar as aulas de dança deste outro e depois tomo uma decisão.
[Estarei a empurrar  o problema com a barriga, aquela mesma que uma pessoa humana vai ali abater (se pudesse, a tiros) a abdominais? Sim, estou.]
Se gostar mais do novo, logo se vêem as capacidades que o primeiro tem para me segurar ali, pasito a pasito. Se não, é que é o caraças.

21/08/2017

Ela fala tanto # 18

e faz tão pouco. É o que parece.
Agora encontra-se de férias, quem sabe a banhos. 
Eu entretenho as minhas horas não vagas a fazer máquinas de roupa diárias várias, um tambor com capacidade para sete quilos, vinte e um metros de corda sempre cheios, dezenas de molas, mais de metade para dobrar directamente, a restante para passar a ferro. Entre o lava-estende-recolhe-separa-dobra, esvaem-se-me as forças para passar, sobretudo camisas e lençóis de (cinco) cama(s). [Por sorte, dois de nós dormimos na mesma; se não, seriam seis.] Socorro(!)-me da mesma empresa de engomadoria que me vale nestas horas difíceis, e que me vende um pacote de sessenta peças por um balúrdio, mas eu estou capaz de dar um rim para me livrar daquele cesto, quanto mais uns míseros milhares de cêntimos. Arrebanho o mais urgente (quase tudo), rapidamente somo cinquenta peças e sigo para a empresa salvadora, a uns metros de casa. Pouso o pesadíssimo em cima do balcão e toda eu sou água desmicelar, vulgo sudação. E desabafo o que, efectivamente, me vai na alma:
- A roupa é o maior stress de qualquer dona de casa. Entre o lava, estende, recolhe, separa, dobra e passa, há um processo que nos desgasta e derrota. Estou tão cansada que, agora que aqui cheguei, a única coisa que era capaz de me dar alguma paz, era passar essa roupa toda a ferro. — Porque, não sei se já aqui disse alguma vez, para mim, passar a ferro é uma terapia ocupacional, um rage turn off, uma entrada em zen. Porém, não posso ter mais nada para fazer, e isso é coisa que quase nunca acontece.
Ainda me parece que ela faz tão pouco?
Olhem, eu não lhe dou o seu devido valor.
E ninguém me dá a mim o meu. 

20/08/2017

Ai-fostes também não me tem em grande conta # 3

Corrige-me constantemente a conjunção e para o verbo ser, no presente do indicativo, terceira pessoa do singular. As minhas frases passam a ter outro sabor, outra cor, outra luz, outro som. Por exemplo, se escrever "O amarelo e o azul", ele corrige para "O amarelo é o azul". É bonito, em termos gráficos, para além de me fazer passar por analfabeta.

[Ontem ainda ma fez mais graciosa: em resposta a um comentário cá do buraco, substituiu cada vez menos por cada vês menos. É isso, não vejo nada antes de enviar/publicar.]

(Lágrimas de sangre.)

19/08/2017

Na senda de "Sou só eu?" # 7

a quem foi pedido, como "recordação das tuas férias, que é sempre o que eu peço a toda a gente: um íman para o meu frigorífico", que fui até criteriosa e escolhi, de entre dezenas, um alusivo, alegórico, e o menos parolo possível, mas que respeitasse a vieille tendance da pessoa em questão, que lho entreguei num minúsculo embrulhinho, pode-se dizer que feliz da vida (o pacote e eu própria), que já estranhei o facto de ela não se lembrar do pedido e também de não se surpreender com a efectiva resposta a ele [serei assim tão (agradavelmente) previsível?], que estive com ela por bem uma hora e meia, e, durante esse tempo, sequer mencionou a oferta, quanto mais desembrulhá-la, e isso me entristeceu um nico?

E agora, que passaram três dias sobre o "assunto", que ela podia ter mandado mensagem e não o fez, cada vez que penso nisso, fico mais um nico chateada, contrariada, surpreendida?
E que, qual agraciada-laureada, já preparei o discurso de não-agradecimento? "Chegaste a abrir a lembrança que te trouxe de férias? É que, como não disseste nada, pensei que nem tinhas desembrulhado".
Antes lacónica e cabra do que a parva de serviço, lá diz o povo. Ai, não diz? Digo eu, então. E eu sou O povo, como o outro era l'État. Pelo menos, cá no meu perímetro (cefálico). C'est moi.


18/08/2017

Foi tão blogger da parte dela

A loja apertadinha, eu no expositor de biquínis e fatos-de-banho, a fazer tempo, aquele conceito de espera que marca o compasso, enquanto aguardava por quem esperei, efectivamente, nove meses.
Trazia com ela um gigantesco trólei rosa-shock, chocando com a vista, onde berravam letras brancas e maiúsculas, "KEEP CALM AND GO SHOPPING", toda ela nervos e impaciência ao balcão, enquanto pagava. O carro de compras shopping chocante chocou com as minhas pernas quando pretendeu ir-se dali, e nem um sussurrado pedido de desculpas, antes um estalido com a saliva, pois que contratempo encontrar um obstáculo, ainda por cima humano, a tão prática e ligeira viatura sem motor. Fiquei a vê-la afastar-se, calças alapadas a alguns quilinhos a mais, cabelo lisíssimo a prancha, fita de cor matchi com o carro, laço no topo, e imaginei que iria, com certeza, a correr para o portátil, abrir o blog fashionerer e debitar conselhos de beleza e savoir faire a quem pudesse estar do outro lado. Pele branca sem sol, podia ter deixado uma nuvem negra sobre mim, mas ainda é preciso muito mais do que uma estranha sem noção para que o fenómeno se dê.
Um piso abaixo, minutos depois, dada a informação que me solicitou, o dedo negro de outra desconhecida, reconhecida - e só talvez por isso - percorria-me na vertical de alto a baixo, e da boca de ébano saía "Lucky you". Podia ter deixado uma nuvem branca sobre mim, mas foi um sol que derreteu a outra, sem deixar marcas do choque.


17/08/2017

Agora sim, o Mundo está dividido em duas metades

A dos que — como, obviamente, eu — sentiram o abalo, e a dos que não. 
Sugiro que nos tatuemos, ou — para aqueles que temem a dor, o sangue, a agulha, o definitivo —, mandemos imprimir t-shirts com a frase que nos distingue de todo o resto.


16/08/2017

And that awkward moment # 38

em que te cai o queixo aos pés e já não o consegues içar por forma a que se reúna com o maxilar superior?

Sais do mar ao teu melhor estilo, cabelos escorrendo sal e água gelada purificadora, um céu azul de doer, a praia com areal a perder de vista, ainda por cima pouco populosa para o dia que era, um feriado a meio de Agosto, numa qualquer praia dos arrabaldes desta capital europeia, calor do bom que não queima mas dá cor (assim uma entaladelazinha em termos culinários, vá), e te aparece no campo de visão a visão de uma mulher que conheces, mas não localizas logo. Ela vem de mamaçal à vela, aquilo do topless, e está com um dos braços a rodear o ombro de outra mulher, ambas íntimas assim uma da outra. 
E então, faz-se-te luz e não só reconheces a das mamas de fora, como também a localizas no espaço e no tempo.


E elas abraçam-se e beijam-se mutuamente os respectivos pescoços.


Então, tu passas a uma distância razoável, a suficiente para não interromperes o enlevo sexo-amoroso que as enrola, mas bastante para que consigas confirmar que ela é ela.

E é então quando reconheces a outra. 


[E, antes que me caiam aqui os homofriends todos (vinde, vinde, que tem até chicotinho), faço já o disclaimer que acredito no amor, que considero que cada um leva onde mais lhe dá gozo, que todos temos direito a ser felizes, que ninguém tem nada a ver com isso, and beca.]

Chocada? Não.
Não com isso que estais a pensar.
Mas minha incredulidade, se é que me é permitido explaná-la, advém de alguns factos a latere.
1. O facto de uma ser patroa da outra, logo a outra ser empregada de uma;
2. O facto de uma alardear a sua heterossexualidade como quem hasteia uma bandeira;
3. Uma ser a pessoa mais alpinista social, mais aspirante a thia, mais preocupada com a aparência, mais focada no bom gosto, na distinção, num certo apuramento artístico (apesar de le resvalar o pronome lhe constantemente e de errar intermitentemente na terminação de alguns verbos), e a outra ser a antítese física de tudo o que uma pessoa assim quer num homem, quanto mais noutra mulher. (E — oh, desculpem! — eu sou uma anormal animal, que entende que as relações amorosas passam por qualquer coisa de muito físico: no pica, no affair.);
4. As carradas de celulite, como bem observou minha sis;
5. Tudo nelas, aquilo da bota com a perdigota.

Vim-me embora no momento em que a uma tirou o top do biquíni dela e desatou a correr pela praia atrás do homem das bolas, um tal de Zuca, que apregoa as suas bolas em rima. Mulher bonita não vai pagar, mas também não vai levar. 

Se a minha vida não dava um filme de David Lynch, então também não sei para o que é que dava.


15/08/2017

Beijinho bom

para a pessoa que me desejou bom feriado às 10 da noite.
[Mete mais tabaco nisso.]

14/08/2017

The girl next door # 11

Isto também podia chamar-se And that awkward moment, mas foi tão micro que nem merece o título. Ou então, Eu tenho problemas com doidos, por tudo. Ou, em alternativa, As lágrimas amargas de Petra Von Kant, sei lá porquê.

Tenho-lhes aturado tudo, só porque moramos sob o mesmo tecto. Mais valia morarmos sobre.
No meu andar, porém atrás de outra porta, moram mãe (viúva) e duas filhas adultas. Sempre todas vestidas de negro, não falam, não respondem, sequer dialogam umas com as outras na rua, marcham, lentas e pastelonas, em fila indiana, não acendem as luzes do prédio, movem-se pela sombra, que não fazem, pois serão, elas próprias, sombras de si mesmas. Mas eu não desisto de entabular.
Coincidimos no hall dos elevadores, ela tinha a porta aberta e assomava-se de lá um gato. E disse eu assim:
- Ohhh, que bonita. É uma gata?
- Não, é um menino.


Ora, vamos lá a ver: não foi isso que eu perguntei. Não é que eu tenha alguma coisa contra chamar menino ou menina aos animais. Mas, quando perguntei se era uma gata, queria saber se era uma fêmea de gato. Mal comparando, esta numenclatura está para mim como a esposa está para a mulher. Quando ouço alguém falar-me da sua esposa [alerta parolo], também não lhe respondo a sua mulher, sob pena de ofender superiormente os pergaminhos do esposo. No fundo, albardo o burro à vontade do dono. Se eu perguntei É uma gata?, e ela me respondeu Não, é um menino, com a mesma legitimidade e razão de lógica poderia ter respondido Não, é uma vaca. Ou então, Não, é um boi.
Compreendem?
Eu também não. Principalmente porque depois faço associações mais ou menos (in)felizes.

José Eduardo Agualusa
[Eu sei que já postei esta história. Tende lá paciência, que eu também tenho que ter.]

13/08/2017

amigos

Sentámo-nos à mesma mesa, e ali fiquei a vê-lo, demasiado gordo, os olhos a saltarem para fora das órbitas, a dar a refeição à boca do amigo, preso a uma cadeira de rodas há mais de vinte anos. Garfada atrás de garfada de uma pizza cheia de cebola, Agora vais beber cerveja, e o Gonçalo — assim se chama o amigo dele —, já incapaz de emitir qualquer som, de sorriso fácil e quase constante em vez de palavras, que sim, que sim com a cabeça, devia ser Dá cá a cerveja
Estamos todos na fase em que se instalam as mazelas da passagem do tempo: rugas, papos, e também maleitas chatas, umas piores, outras assim-assim. É agora que uma má genética, conjugada com não melhores hábitos, dá mostras das suas irreversíveis capacidades destrutivas. Assim lhe calhou na má sorte uma afecção da tiróide, que, de entre outras "coisas", faz com que os globos oculares se tornem proeminentes e ameacem sair do encaixe da caveira a todo o momento. E só não literalmente porque se submeteu há pouco a uma cirurgia, que, segundo lhe profeciou o médico, há-de reverter o processo. Para já, não estão à vista alterações. Continua a comer desalmadamente, ele que nunca foi magro, mas seria o mesmo homem com menos quarenta e cinco quilos. Também nunca foi bonito, mas fazia sucesso entre as raparigas, atencioso e pinga-amores que era. Namorou duas mãos cheias delas, casou com uma das mais bonitas que algum dia vi.
Falamos de Verão, levamos a conversa até à praia, enterramos as palavras, como pés, na areia. Lembro-me de dizer que, ao pino do calor, a areia não está a menos de cinquenta graus, o que faz com que seja insuportável andar sobre ela sem calçado. É então que ele, que apenas responde ao "assunto" areia quente, diz esta coisa extraordinária: 
- Quando o Gonçalo ainda estava de muletas, eu levava-o às costas, preso pelos braços nos meus ombros, até à praia. Deve ser verdade o que tu dizes, porque houve um dia em que, naquele percurso, ia a sentir os pés mais quentes do que o costume, e, quando o pousei na toalha, é que vi que tinha ficado sem pele nas duas plantas dos pés. 
Ficaram então tão bonitos, os olhos dele, iluminados com as cores da amizade feita amor — mesmo assim, saídos das órbitas, mesmo naquela cara de corpo gordíssimo. 

11/08/2017

Ai-fostes também não me tem em grande conta # 2

Quis publicar uma imagem ilustrativa [alerta redundância] do meu post anterior. Porém, Ai-fostes, acometido de uma má net, derivados de estar demasiado próximo do mar [se esse conceito existisse], não mo permitiu. O quartel-general onde estava instalado o router do pólo onde me acampei era demasiado longe [e cem metros pode ser um conceito interpretável como demasiado longe] para que me deslocasse, metesse pic condicente e voltasse para a boa barraca, pelo que só hoje, regressada e ressabiada, com cara de fim de férias, aqui a publico.
Sem filtros, como tudo em mim.
Já não se trata de uma tentativa de meter nojo, pois que até a mim mesma, ao contemplá-la, agora, a esta distância [duzentos e oitenta e cinco quilómetros, vírgula — após vírgula simbólica — três, pode considerar-se demasiado longe] e sob este prisma (pesadíssimo), a imagem mete nojo, e inveja, e drama, e já saudades, e só coisas feias — não fora ela tão linda.


Diz que Não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe. O povo é quem mais ordenha. 
E amanhã é outro dia, lá dizia a outra dos ventos. 
Adeus, que agora vou ali pôr-me em posição fetal e encher-me de baba até me passar a fase da raiva.
[A ver se agora alguém aqui vem desejar-me "Boas não-férias".]


09/08/2017

Queria fartar-me disto

Do bebé que chora ao meio-dia, e depois à uma, e também às quatro, gritando a plenos pulmões, escancarando alvéolos ao vento, denunciando a superior ignorância dos pais;
Da mulher que descobre ao léu e à vela o busto feio e comido pelas horas dos dias e mastigado pela vida;
Da filha da mesma mulher, que, quando ambas decidiram meter-se numa praia sossegada, de gentes silenciosas que só pedem para ouvir o estrondoso silêncio do mar, e até mesmo do vento, resolve fazer uma chamada de telemóvel e regressa à origem da qual nunca (deveria ter) saí(do)u, e brama termos cheios de asteriscos na linguagem das pessoas que a rodeiam;
Da família que veio de muito longe, na furgoneta, alugou três colmos que se ladeiam, eles de barba, óculos de sol, tatuagens e depilações hipster suburbano, alguns com panças incriminadoras, elas de excessivamente reduzidos biquínis e nuances sobre cabelo amarelo sobre raíz preta, as crianças obesas a responder por Enzo. E William;
Dos guarda-sóis publicitários, oferecidos pelo dono do café central lá da vila, em não sendo, eles próprios, o dono do café central lá da vila;
Do senhor encarregado da cobrança dos colmos, que entendeu dirigir-se a mim como se eu fosse uma catraia que lhe acha um piadão.
Queria fartar-me disto. Mas tenho escassas quarenta e oito horas para gozar o acordar com o mar azul e verde a vinte metros do olhar, mas, egoistamente, estou pronta para dar a vida para que se transformem em quarenta e oito anos.


08/08/2017

And that awkward moment # 37

[sim, ultimamente, a minha vida está pejada destes momentos, quiçá porque a awkward sou eu.]

Estávamos distribuídos por três quartos, dois lado a lado, o terceiro frente ao nosso. Deu-se que fui à recepção do hotel sozinha, e definitivamente ou, pelo menos, provavelmente, serei pessoa que deve evitar andar desacompanhada em determinadas circunstâncias. [Eu vivo sempre no mundo da lua, tenho alma de artista, sou um génio sonhador e romântica.]
Subi pelo elevador, dirigi-me para o quarto, bati à porta (se tudo não seria muito mais simples nesta minha existência terrena se tivesse levado o cartão? Seria, mas, por outro lado, a esta hora, não estaria aqui a desabafar cenas), e ele não abriu. Foi então que vi um homem a bater à porta do quarto das minhas filhas. Isto, eram umas 11 da madrugada. Entre o revoltada e o surpresa, entabulei, solícita, porém:
- Este es l'habitación de mis hijas.
- Estás equivocada, no es.
- Ustede  está equivocado. San mis hijas que están aí dentro.
- No, es una signora con una criança, y están me esperando.
- Mis hijas, lo garanto.
- Entonces, abre tu la puerta.
- Mas no tengo la tarjeta...
E nisto, bato à porta daquele quarto e, como ninguém me respondesse, esclareci o cidadão espanhol:
- Se fueran a tomar el desayuno.
Ele olhava-me com aquela incredulidade com que se olha um louco que, todavia, não tem cara de louco. Acho.
Entretanto, impaciente, mas não desesperada, convicta, mas não baralhada, resolvi angariar reforços, batendo à porta do meu quarto com mais força, clamando por cônjuge. Foi quando ouvi a água do duche a correr. Mas nem assim desarmei:
- Tu não me digas que te puseste a tomar banho a esta hora!?
Responde-me então uma voz feminina lá de dentro, do meu quarto.
E não é que nem me ocorreu que o homem podia ter arranjado outra, que até já estivesse a tomar duche, enquanto o diabo esfrega um olho (haha, esta expressão neste contexto!), ou enquanto eu ia e voltava da recepção, três pisos abaixo dali?
Caiu-me a ficha, como diz o povo. Acabou o jogo, desliguei da corrente. Algo de muito errado estava a acontecer. Ou o espanhol ou eu, encontrávamo-nos, desencontrados, numa realidade paralela.
Encostada à parede do corredor, olhei o número do quarto, que devia ser 315.
"215".
Num longo e disfarçadíssimo suspiro, baixei a cabeça, agora sim, confusa, surpresa, envergonhada, fechei os olhos um brevíssimo segundo, e, confirmando as suspeitas do homem, soltei uma sonora gargalhada, exclamando:
- Hah, enganei-me no andar!
E saí a correr, corredor afora.


07/08/2017

And that awkward moment # 36

em que acordas bem disposta, diz que esta vida são dois dias, o Carnaval são três, e as férias duram a soma dos dois, vezes dois, e mais um nico, e há que aproveitar tudo como se, efectivamente, não houvesse amanhã, até porque pode mesmo não haver. Arrastas a varina havaiana pela passadeira de estacas, toda tu és sol e vida e boa onda, maior e melhor do que as que os teus olhos têm diante. Tagarelas como uma criança excitada, como se carregasses baldes e pás que te construirão sonhos reais e tão efémeros como quaisquer outros. À tua frente segue, molengo, um grupo de três indiferenciados, enquanto tu, em terra de gentes que castanhola e matraca inigualavelmente, papagueias como um nativo. É o momento em que os três, sincronizados, estacam e abrem alas, um verdadeiro caminho livre, para que passes, os ultrapasses, e, enfim, se livrem de ti, incapazes, impotentes para te mandarem calar.
Chatos.

06/08/2017

Estou em vias de deixar de ser amiga dos animais

Sou atacada por piolhos do calor, quando estou na praia. Penso que é do meu protector solar, factor 50 - que eu sou morena, mas não sou parva e o tempo corre contra mim, e não quero esbarrar-me de frente com ele, e os UVA e os UVB também existem, independentemente do tom da pele, e era haver UVC e UVD, ou todo o alfabeto até UVZ, e eu também levava com eles -, mas estou acompanhada por quem usa o mesmo creme, e os bichos estão nem aí para outra que não eu; penso que é da cor do fato de banho, mas não estou de amarelo, nem de branco - que, conforme cientificamente comprovado por tentativa-erro, são as cores que mais atraem bicharada -, e, mesmo quando estou de vermelho - cor que os repele, facto que comprovei pelo mesmo método que concluiu aquele do branco e do amarelo -, não me largam o pé (nem a perna, nem a outra perna, nem milímetro de pele meu), mas os outros podem enrolar-se num lençol de cama, que os piolhos nem os vêem; penso que é por estar molhada e os animais gostarem de exponenciar o seu colesterol através da ingestão de sal, mas, lá está, só me dão dentadas a mim?; penso que sou uma comichosa e só eu sinto as mordeduras, hipótese mais plausível das apresentadas até ao momento, pois está tudo na santa paz, a ler ou a conversar, enquanto eu me açoito e assassino carinhosamente micro-pontos negros; penso, finalmente, no meu sangue raro, sem rhesus, e ah!, faz-se-me luz: sou o único elemento, desta enorme família que construí, que tem RH negativo, e parece que a piolhada gosta é desse. Isso, ou então sou maluca, e aqueles pontinhos pretos que me trincam as peles de dez em dez segundos são só fruto da minha imaginação torturada pelo sol. 

05/08/2017

And that awkward moment # 35

em que la camarera bate à porta do teu quarto, 3 e picos da tarde, e, não obtendo resposta e ou abertura de porta em cerca de cinco segundos, mete o cartão na ranhura e entra, apanhando-te em cheio en bañador, e profere a seguinte castelhana: "Ai, perdon. Quieres algo para el minibar?". E só te ocorrem alarvidades em portuñol, todas elas começadas por "Já que interrompeste"?
Mas, como faço um esforço épico para ser uma senhora, respondi "Nadia, gracias", em vez de:
1. Um preservativo xxl, cariño. Me los gustan frescos, que hacer?
2. Un Calippo, mas no de fresa. Trame de cola, en tu homenage;
3. Un rollito de papel higiénico, que me sabe bien el frescor despues de la defecación;
4. Uns pañuelos para la higiene nasal, que mis monos san muy duros;
5. Una botellita de semancol, por favor.
Tantas ideias boas, para uma única resposta socio-politicamente correcta. Ser uma senhora, seja lá o que isso for, não está ao alcance de todas.


04/08/2017

Eu, que tenho a mania que sou original, e diferente, e única

chego ao pequeno-almoço comunitário, onde a oferta é tão variada que se pode começar o dia a beber ou comer quase tudo (champanhe, a sério?) (entremeada frita, mesmo?), escolho no primeiro dia um sumo de tomate, um iogurte de côco, um pão com sementes de papoila (antevendo verdejantes e rubros campos delas, florescendo, selvagens, no meu intestino), e, como se não bastasse a estrambólica escolha, que a mais ninguém vi em toda a sala, no dia seguinte há todos os sumos (cinco variedades), menos o de tomate, há todos os iogurtes (seis sabores), menos o de côco, há todos os pães (sete diferentes), menos o das minhas florinhas carmim. Tudo esgotado.
Serei uma líder, uma opinion maker, e desconheço-o?
Tenho que experimentar meter no tabuleiro um salpicão, com uma flute cheia até cá acima e uma taça de gojis com ovos mexidos.

03/08/2017

Laser para melhor lazer

Um altar a quem inventou a depilação a laser. Sinto necessidade de beijar pés, só por conta desta liberdade proporcionada não sei por quem. (Vá, e se eu não vou googlar, façam-me a fineza de também não o fazerem por mim.)
Nunca como agora me senti um homem, e está a ser bom: é vestir os trajes de banho e ala que se faz tarde para o charco, livre de preocupações menores (ou nem tanto) com pilosidades indesejadas. Longe vão os tempos de cavernícula, em que, à porta de casa ou já no areal, se me atravessava um pêlo no olhar - qual cisco, quase me fazendo chorar -, e isso era assunto bastante para dobrar as tormentas por horas, enquanto durasse a permanência, já que um único pêlo, esquecido/ignorado pela lâmina/máquina/pinça/cera, tresmalhado do grupo a que pertencia, escapado à morte a que condenara os irmãozinhos, era coisa para me arrasar os nervos e o dia de veraneio. Quanto mais vários pêlos. Um tufo. So-cor-ro, nem me quero lembrar. E depois, aquela sombra do pelinho nascituro, a saga do pêlo encravado, a frequência com que era preciso dedicar-me à transformação de mãe Eva em Gisele Bündchen, toda essa contratempice acabou, graças ao Senhor Laser.
No entanto, e por acaso, isto sem qualquer base científica - como tudo o que profiro para aqui -, acho que a depilação a laser só foi inventada no momento em que os homens começaram a arrancar os pêlos deles. Foi certamente em homenagem (não mulheragem, vêem?) a eles que surgiu o ditado 'A necessidade faz o engenho'. Isto que disse agora e o que vou dizer a seguir, enquadra-se no meu sector machista, ou sei lá se apenas controverso: nós, mulheres, somos dotadas de um espírito de sacrifício e abnegação, que nos levaria a suportar mais não sei quantos séculos de tortura depilatória, até, na melhor das hipóteses libertárias, criarmos um no shave qualquer e regressarmos à peluda origem. Aliás, não fora os homens terem começado a viver sozinhos e a sentir necessidade de preparar as suas refeições, e o micro-ondas estaria por inventar, e nós estaríamos de barrigas coladas a um fogão (a carvão.) (A pedras friccionadas.) Ou agarradas a um tanque de roupa. Ou a bater claras em castelo com um garfo. Tudo por causa do tal espírito.


02/08/2017

É preciso tão pouco para me fazer feliz # 9

Estar longe dela e, vá, no estrangeiro, e, mesmo assim, encontrar uma pequena referência que nem na própria algum dia vi à venda.


Apesar de, logo no dia seguinte, ir dar com isto, no exacto lugar onde pus os pés. (Que grande lata.)
Ainda diz a outra que "Não há coincidências".
Que las hay.
[Quando chegar a Lisboa, vou procurar uma lata de Lepe. Mas já me contento com uma de Huelva.]


01/08/2017

Estou nas miras

Há muitos anos, éramos nós duas petizas, e estávamos hospedadas num hotel com os nossos pais. Ali se encontrava também uma família, com uma constituição em tudo semelhante à nossa: pais e duas filhas. No entanto, eram espanhóis.
Não sei se é verdade que as crianças têm uma linguagem universal através da qual se entendem, mas sei que travámos amizade com as duas hermanas d'el pays hermano, mesmo sem pescarmos nada do que elas diziam, sequer um jaquinzinho. E elas devolviam-nos exactamente na mesma moeda, apesar de, na altura, usarem pesetas e nós escudos. E apesar de termos fronteiras.
Não sabendo sequer os nomes delas, mas tendo percebido que, ao mínimo chamamento de "Mira!", elas olhavam, assumimos então que Mira era o nome próprio das nossas amigas de Verão, ainda que fossem irmãs. Tão-pouco estranhámos o facto de elas se chamarem Mira uma à outra. E era "Mira!" para trás e "Mira!" para a frente, com sucesso garantido.
Até que um dia, ao avisarmos o nosso pai de que íamos brincar com "as miras", e questionadas por ele sobre qual era o nome das meninas, foi diante das nossas respostas - "Mira"; "E Mira" -, que ficámos a saber que apenas tínhamos aprendido, e estado todos aqueles dias a usar e abusar do imperativo do verbo olhar.
Pergunto-me se as espanholitas não disseram aos pais que nós nos chamávamos "Olha e Olha". Mas nunca mais deixei de referir-me às mulheres espanholas como "as miras".