31/01/2017

la la sleep

Hoje venho, na senda da vertente pura e extraordinariamente intelectual deste modesto espaço de alta elevação cultural, falar-vos de um filme que, efectivamente, não vi. E, como tal, não vou spoilar, ou, pelo menos quase nada.
(A quem já tomou o tamanho ao texto com um breve olhar medidor, é isso mesmo: não me vou alongar por aí afora, já que — repito — não vi o filme. Ou melhor, muito melhor, não o vi todo.)
La la la, la, la, la...
Não haverá mais doida, mais fã, mais incondicional do que eu quando se trata de menino Ryan Gosling. Gosto dele, que quereis? Lá se é bom actor, acho que sim, mas isso é secundário, tendo em conta que ele é sempre o principal. É o sorriso, é a voz, são aqueles olhinhos desiguais, é ele de camisa, é ele de calças de fato, é ele...
Desta vez, aparece ao piano.
(... é ele ao piano.)
E aparece outra vez (a sério, povo de Holly, o que pretendeis com a insistência em juntar estes dois?) com a Ema Stone, que é tão gira e está tão estranha — enormemente magra, vítima de recente botox-disaster. Parvas de Hollywood, vá lá, parem de estragar essa maravilha que a Natureza vos deu.
Talvez ainda não tivessem decorrido trinta minutos da fita e já eu dormia a sono solto, embalada pela trama — cuja sinopse não cheguei a conhecer —, incapaz de resistir a Morfeu, um pouco desiludida, senão de morte, pelo menos de sono quase eterno, após ter constatado que meu Ryanzinho, apesar das quatro horas diárias de ensaios, por não sei quantos dias seguidos, não aprendeu a dançar, e também não canta nada de por aí além. É a tal história que conto (e canto) a mim mesma, cada vez que cometo uma pequena falha na minha vida: Não se pode ser bom em tudo.
(Talvez reveja a película um destes dias, Ryan merece uma segunda oportunidade. Já vi tanta porcaria com ele, esta pode ser apenas mais uma. Lindo de sua Linda.)

30/01/2017

Try again. But harder

Cenário: zona de apoio ao cliente de uma qualquer Worten deste planeta.
Personagens: a pessoa e um assistente técnico.
Sit: a pessoa foi trocar um item.

Processada a troca, após perguntas várias que imagino façam parte de um qualquer pró-forma lá da casa, e que, por isso, são as mesmas para toda a gente, independentemente do estado em que o artigo chega ao balcão [uma caixa fechada com agrafos de fábrica e dezenas de metros de fita-cola larga, ainda mereceu a pergunta 'Chegou a utilizar o artigo?'], apresenta-me o técnico dois papelinhos iguais entre si, chamando original a um e duplicado ao outro, dizendo que eu fico com um e ele fica com o outro, pedindo-me que assine um e assine o outro, e eu vá que sou preguiçosa para dar à caneta (e à perna) (havia de ser assim para dar à língua e à tecla, mas não), e questiono:
- Mas, se um deles é o meu, não preciso de o assinar, não é?
Só que ele explica-me o caso:
- Não, a senhora tem que assinar os dois. Nós aqui costumamos fazer assim: são dois talões iguais e o cliente assina os dois. Fica com um e nós ficamos com o outro. 


29/01/2017

passeio público

Tropecei na minha própria velhice, sob a forma de declive no passeio, desses que, quando se é velho, ou melhor, se está momentaneamente muito velho, não se vêem, e foi o caso. Caí dos saltos altos abaixo, o pedestal da vaidade desmoronou-se sob os meus pés, a capa do anonimato despiu-se de mim sem despedida, quedei-me nua e sem defesas, com a calçada portuguesa logo abaixo do nariz. Desafiei gravemente a lei da gravidade, vi claramente vista a minha vista a ver o chão, e saí dessa vencedora, pois, torcido um pé e reencontrado o eixo, reergui-me mais tonta, mais velha, mais criança, assustada e abandonada, ai que dor, qual pé, não me dói o pé, a menos que a alma seja no pé, ninguém me socorreu, sequer deu o braço, a palavra do alento, onde está a minha mãe, que me daria um beijinho no pé e diria "Já não dói", e deixava mesmo de doer, ainda que não doesse nada? Nem pude marejar em agradecimento, como aquela senhora aqui há tempos, só do susto e da comoção, não tive o que nem a quem agradecer. Ninguém viu, que grande achincalho público — que é ser-se velho à vista de todos e nenhum ser capaz de ver; que é ser-se velho e isso nos adentrar os olhos, velhos e cansados, dia após dia. 
As árvores morrem de pé.



28/01/2017

Eu quero perceber as bombas da BP*

1. Que têm um Pingo Doce acoplado;
2. Que, às 11 da noite, como é de lei, derivados a questões de segurança, fecham as portas ao público, que somos a gente, ficando um funcionário — de seis — a atender num guichet cheio de gavetas acrílicas por onde passam os nossos cartões ou dinheiro, a maquineta do multibanco, a nossa factura e, caso seja caso, o troco. Para comunicarmos com o dito senhor, temos que falar para um interfone logo ali ao lado do tal guichet, que não sei quanto à nossa, mas que a ele lhe filtra a voz, de maneira que nos chega qualquer coisa como a voz do Alvin, aquele esquilo que é tão fofis, a perguntar coisas como: "Deseja contribuinte na sua factura, sinhóra?", ou então é o homem que tem aquela voz e, no meio dos nervos, eu é que achei que o problema era no aparelho de comunicação;
(Parece mesmo que estamos a comunicar com um preso numa prisão de alta segurança daqueles estados da América, como se vê nos filmes, só falta mesmo o telefonezinho, ou será que o preso somos nós e a visita é o da voz de pífaro? Também pode ser.)
3. Que, com a desculpa da segurança das pessoas que trabalham na bomba, deixam ao frio, à chuva e ao assalto uma boa dezena de pessoas humanas, que aguardam mais ou menos impacientemente a sua vez junto ao tal guichet. Pronto, está bem, é do lado deles que está o dinheiro e, por isso, precisam de maior protecção. Oi?
4. Que têm um Pingo Doce acoplado, já disse?
5. Que, às 11 da noite, quando fecham as portas à entrada de consumidores e agarrados à gasolina, não fecham também o Pingo Doce;
6. E depois calha na rifa a chatas da porra como eu, ficar atrás de um grupo de chavalos que levou dez minutos — eu disse dez minutos — a ser atendido, porque queria cervejas e não havia cervejas, depois queria minis e não havia minis, depois queria uma litrosa e não havia litrosa (estava mesmo a ver que saíam da bomba com uma alface debaixo do braço), logo seguidos de duas meninas que levaram dez minutos — eu disse dez minutos — a ser atendidas, porque foram comprar uma garrafa de vinho cada uma, "o mais barato que tiver", e foi todo um desassossego para encontrar moedas suficientes para o chichi engarrafado, e ainda foram buscar algumas ao carro que as esperava ali ao lado, com um senhor de meia idade muito bem posto lá dentro, e eu prefiro pensar que era um motorista UBER, mas também não ouvi o da voz de pífaro a perguntar a ninguém se já tinha os dezoito anos feitos, so help you God.

Acho que já me perdi, mas, no fundo, a minha revolta tem origem no facto de eu ir a uma bomba de gasolina passava das 11:30 da noite (que também tenho as minhas idiossincrasias e as minhas cenas), e fiquei — eu, e outros dez incrédulos — feita parva, numa fila escura, fria e crua, à espera de pagar o combustível, enquanto outros tantos faziam compras de supermercado lá para casa, ou lá o que era aquilo. 

* ninguém me paga para me calar.

27/01/2017

morri-me tantas vezes por ti

Tinham sido tantas as vezes que já me tinha morrido de morte boa e contente, quando me morri de mais uma por te ter visto pela primeira vez. Tinha acabado de me morrer de desgosto pela perda irremediável de alguém que já imaginava seres tu. Lembro-me do dia e hora exactos da minha morte morrida de tanta alegria e felicidade, que tenho a certeza que, mesmo que tivesse morrido mesmo de morte a sério naquele momento, ia mesmo cheia da bem-aventurança de te ter visto por uma vez na vida. 
Depois morri-me inteira, de medo e pânico de te perder, quando o médico disse o palavrão tumor e nem tapei os ouvidos nem o mandei calar porque estava tão morta que já não fazia diferença que me dissessem ofensas, só queria salvar-te com as últimas forças que me sobrassem em vida da pouca que tinha e ainda era para ti. 
Morri-me outra vez quando o médico disse outro palavrão — coma —, e depois prognosticou mil terrores e eu não tapei os ouvidos outra vez, porque tinha que salvar-te com outras últimas das nenhumas forças que ainda me sobravam, e dei comigo a pedir-te em rogos de choro "Acorda, Maria...". Quando acordaste, sei que me morri outra vez, mais uma vez, das muitas em que ainda me vou morrer até morrer-me desta vida de vez.
A primeira vez foi no dia 27 de Janeiro de 1999. Eram 15:20 horas. Vês como eu sei?
(As mães sabem tudo, mas isso eu percebi muito mais tarde do que a idade que tens tu hoje.)


26/01/2017

... apertar o pescoço não é violência doméstica...

Proclamam os senhores juízes conselheiros do Tribunal da Relação de Évora que apertar o pescoço não é violência doméstica. Quer dizer que os senhores conselheiros, que têm a penúltima — e, em alguns casos, a última — palavra a dizer quanto às sentenças dos tribunais comuns, consideram que, se uma pessoa humana apertar o pescoço a outra, com quem vive uma relação familiar ou afectiva, e a arrastar pelo pescoço — como aconteceu no caso que apreciaram — não está a cometer o crime de violência doméstica. E que é necessário que exista um grau superior de consequências que afete a dignidade pessoal da vítima, não bastando uma série de crimes cometidos durante uma relação afetiva para que maus-tratos passem ao crime de violência doméstica. Ou seja, a vítima tem que ficar maluca ou matar-se. É só isto que os senhores juízes conselheiros pedem. 
[Estou um bocadinho nauseada, mas pode ser por outro motivo.]
(A ver se faço disto mantra para hoje; também a ver se consigo, senão concordar, pelo menos perceber o raciocínio.)
(Sou incapaz. Sou uma incapaz.)
A mim, que não percebo nada disto e só ando cá a apanhar bonés, tudo me leva a crer que os dois senhores que presidiram o colectivo (sendo um deles uma mulher), foram duas crianças muito amadas e protegidas, a quem nunca, na escola, um outro petiz apertou o pescoço, só assim porque lhe apeteceu. Não conhecem a sensação de falta de ar e desespero, nunca sentiram a cara a inchar de carótida e jugular comprimidas debaixo de uns dedos.
(Foi pena. A violência nas escolas ajuda-nos a melhor colocar no lugar do outro, em circunstâncias destas e doutras. É quase didáctica.)
Talvez por esse motivo, também me parece que os juízes do Tribunal da Relação de Évora que emitiram este acórdão foram, ao longo de toda a sua vida, pessoas muito amadas e protegidas, conservadas numa bolha de irrealidade e, por isso, de irracionalidade. De todo o modo, desconheço de todo que cartilha leram pessoas como estas, capazes de tirar conclusões deste calibre. Mas fica mais do que claro, da leitura do acórdão, que a tal irrealidade somada a irracionalidade, percorrem juntas e a eito o caminho da desumanização e, por consequência, da desumanidade.



25/01/2017

Diálogos à sombra # 27

Falávamos de mãe para mãe de adolescentes. Ela é negra não africana, ou, pelo menos, não por via das gerações menos remotas. Confessava-lhe que, às vezes, pergunto às minhas: "O que é que fizeste à minha bebé? Para onde é que ma levaste, tão gordinha, tão dependente de mim, tão cor-de-rosinha?". Fiz uma pequena pausa para respirar e perguntei-lhe: "Não diz o mesmo à sua?".
Olhámos uma para a outra, três segundos, caladas, logo nós, que mantemos um ritmo olímpico nas nossas conversas. Quebrei eu primeiro, a deixa não era minha, mas tinha sido eu a falar em cores.
- Pronto, OK. Eu digo "cor-de-rosinha", a Patrícia diz "castanhinha". Mas é igual.
E depois rimo-nos, iguais.

24/01/2017

Numa escala de zero a dez, quão estranho é o teu gato? # 13

Gravura da criação (inspiração) de uma das minhas crias,
em parceria com outra menina igualmente habilidosa (elaboração), e Gráfica

Deitada junto ao retrato das três gatas da casa, tapando com o corpo a imagem das outras duas. 

23/01/2017

And that awkward moment # 18

Não é o Papa que calça Prada? E o Diabo que a veste? Então, a menina também pode.

Um pequeno exemplo ilustrativo: Lanidor*. Outro, no mesmo estilo: Stefanel*, e uns sapatinhos lindos chuac-chuac-chuac, que vi ontem na montra das Amoreiras, e passavam de 199 pacas para 99,50, na loucura dos 50%. 
(Vou ser sempre uma pelintra chique.)


* Ninguém me paga para me calar.

pânico

Chega uma dor fininha, anunciando mansamente aquela outra que já conhece tão bem, pesada, insustentável, asfixiante, a comprimir o esterno e a amassar o coração. Toma-lhe o corpo, bloqueando-lhe a cabeça, congelando o pensamento a menos dez. É uma estátua à chuva, uma árvore vergada sobre a sua própria sombra, que se faz imensa, alguém despido na praça pública, no temor de ser descoberto, denunciado como ladrão da harmonia da paisagem e da sincronia lógica das gentes. Um labirinto mental, cuja única libertação parece ser a fuga em frente, em auto-defesa, saindo do local onde começou o auto-ataque. Sair — sair dali, ordem incontestável, proferida e obedecida cegamente, como a um bombeiro em pleno incêndio; respirar pela barriga; beber qualquer coisa com gás, obrigando o corpo a expelir pela boca todo o ar de que precisa, mas que o esmaga sem dó.
~
Lembro-me muitas vezes do ratinho de laboratório, fechado num frasco de vidro, que vi uma vez na aula de Ciências, no liceu, e pelo qual pedi — eu, e muitas meninas (não posso afiançar se algum rapaz o fez) — misericórdia, sob a forma de abertura da tampa. Que lhe foi concedida, por uma professora igualmente condoída da angústia do animal. Talvez se tratasse da demonstração prática de que não vivemos sem ar, ou que o ar se esgota, ou que o ar ocupa espaço e é consumível. Não me lembro da finalidade da experiência, com a qual não aprendi nada do que era proposto. Só mesmo a conclusão que dela me ficou: o pânico é aquilo.


22/01/2017

Diálogos à sombra # 26

Nós, a vermos lojas. Aproveitamos a época de saldos para ver, mexer, experimentar, apreçar, apreciar, concluir que não cabemos em tamanho nenhum. Tudo gigantesco. Parece que só se vendem tendas militares e para-quedas e barracas da praia, o pano é um nunca acabar, dá para mangas e punhos, e colarinhos, e bainhas, e ainda sobra para um alongue da tenda. 
Vejo um casaco bonito, abotoado à frente, estreito, e que termina acima do joelho. Não consigo definir-lhe a cor, provavelmente porque é azul, e é de azul que eu gosto, mas confundo com várias outras. Então, peço-lhe:
- Diz-me, por favor, de que cor é este casaco.
- Azul. O que é que tu vês? Vais dizer amarelo, ou roxo, como já disseste de outras vezes?
- Roxo, sim. — Quase minto, pois também vejo qualquer coisa acinzentada. — Mas diz-me, não pode ser preto?
- Não, preto é o que tens vestido. Compara lá.
Comparo, sim. Vejo o contraste.
- Vais levá-lo?
- Não, não gosto muito da cor. 

Nem oito nem oitenta

Ando há meses — daqui a pouco, anos, pois acho que já passa de um ano esta sitcom — com, ora oitenta, ora oitenta e um seguidores no blog. Entra um, fico com oitenta e um, passado pouco tempo sai um, fico com oitenta por mais umas semanas, até que apareça mais um. O record bati-o comigo mesma — autêntica sova em modo auto-flagelação — no dia em que se foi embora um e chegou outro, em menos de vinte e quatro horas. 
Ora, que importância tem isto? 
Ora, zero. (Ou oitenta, depende do lado em que as pessoas se coloquem em relação ao sol.)
[Se tivesse alguma, já teria comprado um daqueles pacotes — chiu, não há frase nenhuma onde a palavra pacote assente (errr...) bem — de seguidores, que se compram nos sites brasileiros e se fica logo com milhares de pessoas, mais ou menos humanas, aparentemente, a seguir o nosso blog.]
(Ai não era para dizer? E agora? Apago? Está bem,

)

Agora fora de brincadeiras, que eu hoje acordei séria: decidam lá isso, que esta do 80-81-80-81-80 já baralha as sinapses bloguerianas de uma pessoa. Estou a ponderar a hipótese de retirar de lá a Linda Porca em Alter Ego, a ver se fico com setenta e nove. Sempre é um número mais redondo. E ai do primeiro que chegue de novo só para ser o octogésimo e me calcinar a pipoca. 
Ora, grata pela atenção prestada a mais um destes meus (não) assuntos.


21/01/2017

Ela fala tanto # 12

[Ia vivendo # 2]


Diz-me, à chegada, entabulando um dos nossos mono-diálogos, em que ela fala e a minha cabeça responde, antes de pousar os sacos e a mala e o casaco e os mil dling-dling que anunciam a sua chegada ainda nem a porta do elevador se abriu:
- Ontem dei uma pancada com este dedo, que ficou todo negro...
- ...

- ... está aqui todo negro. É este.
[Não consigo ver o dedo negro. Vejo o dedo, mas não vejo o negro. Continuo a acreditar que não tenho dioptrias; continuo a acreditar que não sou sugestionável; continuo a acreditar que sou positivista científica em relação a quase tudo; continuo a crer nessa filosofia e também na de São Tomé.]
- ...
- ... aqui. 
[E eu, nada.]
- Foi cá uma coquinada.
- ...
[Um destes dias responde-me "ya", a uma pergunta que lhe faça cuja resposta seja positiva.]
- Ia partindo o dedo.
Ia vivendo. Por pouco não viveu. Por um triz não teve um acidente. Por uma unha negra, literalmente. 
- Hum.
Neste murmúrio, contive todas as questões que me assaltavam no momento:
1. Colaboro e digo: "Negríssimo, coitada!"?
2. Devia meter baixa;
3. Quer que accione o seguro?
4. Vá para casa, sinto que devo dar-lhe o dia;
5. Talvez redução de tarefas? Afinal hoje é sexta-feira.
6. Ou casual friday?
7. O que não puder fazer, faço eu.
8. Quer miminhos?
9. Não sou enfermeira, mas posso improvisar um curativo.
10. Massagem com anti-inflamatório?

Sei que sou má. Sei que o Hades me aguarda. Já mandei para lá uma garrafa de whisky e está tudo combinado. Não tenho paciência para chamadas de atenção. Tenho quatro filhos. Quatro. Tenho muita pena de não ter mais, mas não me apetece adoptar uma mulher de 42 anos. Um assim pequenino é que era.



20/01/2017

Não sei vestir-me para enfrentar o frio

Tirei esta conclusão ao cabo de três dias de lutas e brigas corpo-a-corpo com o meu roupeiro — era eu dizer "closet" e ficava tão blogger da minha parte... mas é que não: trata-se de um armário de portas de correr, a transbordar de trapos, os quais uso para aí metade, e a outra metade está a tratar de compactar/dar cabo do que ainda uso — e com as minhas convicções mais ou menos íntimas. 
Quarta-feira passada, que há-de ter sido e há-de ser o dia mais frio do ano, vesti umas calças jeggings com camiseiro branco e casaco de malha. Antes de vestir o casaco sobretudo, entendi que, mesmo de luvas e gola de lã, ia rapar um frio de ananases, e então vai de mudar de ideias e vestir a que considero a minha camisola mais quente: uma coisa de decote redondo, em malha de lã fininha, com corte estilo sei lá quê (Império? É que não pareço muito a Josefina, mais pareço grávida com aquilo.) (Talvez seja "à mamã".) (Sei que fico obesa), mas desisti ainda antes de cruzar a porta. Foi tão enervante não acertar à segunda, que fui espalhando roupas em cima da cama. Deu-se que estava determinada a vestir umas calças, convicta de que as calças aquecem mais do que as saias. Nada mais errado, se optarmos por um par de fazenda, como optei eu estupidamente, em detrimento dos meus ricos collants opacos e dos meus vestidos de malha. Portanto, e em resumo, quarta-feira passei as passinhas de Bragança, num regelo de dar gosto aos pinguins. Era o frio a entrar-me pelos fundilhos das calças, pois optei candidamente por meias baixinhas (uma senhora não usa soquetes, chiu), já que tenho um preconceito contra as meias até ao joelho que anda ao nível dos peitos fartos. (E não me venham cá com o argumento de que as meias estão tapadas pelas calças, que uma pessoa despe-se à noite, encara com a dita meia e já dorme deprimida). Acresce que ainda acrescentei à calça bonita uma blusinha fina mais camisola grossa, tendo tido como resultado que depois me vi grega e desejei ardentemente para conseguir abotoar o raio do sobretudo, que é estreitíssimo (não fui eu que engordei, tá? Estava enchouriçada como um chouriço, mais nada), mas consegui sobreviver inspirando todo o ar para os pulmões, e conduzindo com recurso apenas a mãos no volante/mudanças, pés nos pedais e olhos nos retrovisores. Sem mexer mais do que as pálpebras, e, e.
Quinta, ontem, já não caí na treta, vesti um vestido de lã, de gola alta, casaco, gola, luvas, collants opacos. E tive um vislumbre de calor em todos os bocadinhos do dia em que me pus ao sol como o caracol. 
Hoje já deve ter aumentado um nico a temperatura da atmosfera, pois de vestido de malha sem gola, sem luvas, e com o casaco aberto, já consegui ter calor só com os nervos que está a ser este meu dia. 
Devia era ir para as compras, é que não tarda estamos no Verão e eu sem nada para o enfrentar com mais calma. 



19/01/2017

Decidam lá isso: como é que se papa a papa?


Imagem assumidamente palmada da netty
Foi há muitos anos, agora não interessa quantos, e também não vou ver, porque isto não é nenhuma tese de doutoramento, é apenas um post e, e...
Facto é que não conheço ninguém que não tenha passado pelo crivo e, por conseguinte, não ame de paixão carnal a papa Cérélac*. É certo que não conheço muitas pessoas, mas, da amostra que retiro deste assunto, cerca de cem por cento é fã. Não disse era fã, conjuguei mesmo no presente do indicativo, já que a boa da papa é, literalmente, Once you go Cérélac, you'll never go back.
Ora, a Cérelac, desde os seus primórdios e já nos meus tempos de petiza (às tantas, coincidentes), era papa para ser preparada com leite. E designava-se como "farinha láctea".
Talvez porque esse método encarecesse a confecção da papa, seguiu-se uma era em que passou a ser preparada apenas com água. Porém, continuava a chamar-se "farinha láctea". Nessa altura, no entanto, algumas mamãs — eventualmente ainda dos tempos em que era feita com leite —, acrescentavam leite à papa que já trazia leite, "para reforçar", mal sabendo que, com isso, reforçavam, sim, as hipóteses de afectarem os rins e engordarem desnecessariamente os seus rebentos. 

Imagem assumidamente palmada da netty

Pode ter sido por esse motivo que a Nestlé* criou agora a Cérélac sem leite na sua composição: para que as acérrimas do leite possam encharcar a papa com ele. Apesar de ter a mesma composição e método de confecção da primeira Cérélac, chama-se "farinha não láctea", vá-se lá perceber porquê. 


Evolução? Nenhuma, quanto ao sabor: a papa continua tão saborosa como sempre foi, levando a que alguns adultos (oi?) continuem a consumi-la sem culpas. Alguma, quanto à embalagem: desistiram da figura da mamã lactante e alimentadora, em detrimento da imagem da família nuclear papa, maman et ses petits enfants. 


Oh, wait!, por aí também não acertaram o passo com as novas — daqui a pouco nem isso — famílias. 
Hum? Para quando a caixa de Cérélac com famílias não "tradicionais"? Fica a dica, ou então esperemos sentados (a comer papa, sem culpas).

* NMPPI, mas não me importava, desde que em géneros.


17/01/2017

passos

Veio a auxiliar chamar-nos à recepção, pois o exame era feito uns pisos abaixo, uns corredores afora, após curvas e contra-curvas pelo hospital, através das quais, sem croquis ou GPS, provavelmente, muitos se perderiam. Ou porque já tenho a estrela do perdido invisivelmente colada na testa, alguém há-de ter tido o bom-senso de solicitar os préstimos a outro alguém que me conduzisse ao RX, antes que houvesse uma emergência no hospital, que ironia. 
Ao contrário, ela não precisava de condução, pois estava acompanhada pelo filho, que, pesadamente, pesarosamente, empurrava a cadeira de rodas onde ia sentada, touca de lã na cabeça a não deixar adivinhar vestígio de cabelo, rosto encerado pela doença sem réstia de pêlo. 
Segui pelos corredores até ao elevador, e de lá por mais corredores, a passo moderado pela culpa no meu contraste saudável, refreando firmeza, fintando o pisar tonificado, evitando denunciar pressa ou enfado. Acompanhei, assim, os dois, procurando quase desesperadamente acertar o meu ritmo com o deles. À medida que a caminhada avançava, apercebi-me que os meus passos se tornavam mais sentidos, cada vez mais dolorosos, e, quando chegámos à sala de exames, profundamente incapazes de continuar. 
Ela fez o exame primeiro, naturalmente, e, quando acabou o meu, encontrámo-nos na porta de saída dos gabinetes lado a lado que havíamos ocupado, esperando por outro funcionário que nos levasse de regresso à luz do dia. À pergunta para onde é que queríamos ir, respondi,
Para o parque de estacionamento, para casa,
e o filho dela respondeu por ela,
Para a oncologia.
Nesse momento, o técnico veio ao corredor e perguntou-me — apenas a mim,
Fuma?
Na mesma medida em que poderia ter perguntado Droga-se? Bebe? Ama? Diverte-se? Vive?
E eram ainda mais pesados, mais arrastados e mais doridos os meus passos, no alto do salto alto, quando atravessei o caminho que me levou até ao carro, e, dali, para a luz. 

16/01/2017

Ela fala tanto # 11

O namoro começou há menos de duas semanas e já se deu o casamento. Ou o divórcio, conforme a posição em que as pessoas se queiram colocar, pois que, no fundo, vai dar ao mesmo. 
Disse-me, num belo dia de sol deste Inverno azul, que "A minha secadora morreu para a vida" (sic). Não liguei a importância que o tema de conversa poderia vir a ter nas nossas vidas, já que ela encadeia os assuntos uns nos outros, e pula, como de nenúfar em nenúfar, até atingir a margem, que é quando eu, exausta, viro costas e sigo (calada, que é para não dar azo). Chega mesmo a começar um assunto novo com a frase "Por falar nisso". (Antes essa que o conclusivo "portanto", que tanto de bengala serve a tantos.) (Mas continuando.) (Ela é faladora, eu sou prolixa.) (Também sói dizer-se pró-lixa, em vos aprouvendo.) 
No dia seguinte, mal assim encarou comigo, repetiu "A minha secadora morreu para a vida". Respondi-lhe, candida e funestamente, que já me anunciara a morte da máquina no dia anterior, porque eu sou parva, mas nem tanto, e percebi à primeira que era de olho na minha secadora que ela andava. Digamos que se deu conta que eu não a uso vai para dois anos, por detestar o cheiro com que a roupa de lá sai, tão-só. Mas eu sou ou não sou livre de ter a minha cozinha atravancada com um mono inútil, se for essa a minha vontade? (Até podia querer fazer daquilo armário de sapatos ou casota para as gatas, ou não?) Pelos vistos, não. 
Acontece que na minha casa se comem iogurtes a um ritmo que nem um bebé ao biberon, e, por esse motivo, nós fabricamo-los cá no lar. Sentimos, por isso, a necessidade de uma segunda iogurteira, já que aquela que temos não estava a dar vazão ao consumo dos ditos. 
(Estão a acompanhar, ou já se perderam? É que eu já.)
Bom.
Também acontece que ela frequenta um hipermercado que eu não frequento, por motivos geográficos, ou lá o que é, que tinha a iogurteira que as pessoas queriam. Então, pedi-lhe que me comprasse por lá uma e, por acasíssimo no mesmo dia, disse-lhe que lhe dava a máquina secadora de roupa. 
Veio buscá-la ontem, e trouxe hoje a iogurteira. Fiz-lhe a pergunta retórica (pensei eu), "Quanto é que custou a iogurteira?".
...
...
...
E ouvi a resposta intrincada...
...
...
...
"Tenho ali o papelinho, já lhe digo".


15/01/2017

Sai-me cada uma na rifa

Os anúncios com que Mr. Google me brinda actualmente, via mail

Nunca percebi muito bem a fronteira entre a hospitalidade e a subserviência

E parece que também não foi desta.
Era a última aula daquela coreografia, o momento em que a pessoa já sabe aquilo tudo de trás para a frente e para a esquerda e para a direita, ideal para se sentir aquaisi num musical da Broadway. Entra um gigante que anuncia I don´t speak or understand any word of portuguese [ainda hei-de experimentar dizer coisa semelhante, mutatis mutandis, lá para a América, ou em qualquer anglófono, quando lá for um dia], a professora riu-se e basicamente não proferiu uma palavra de inglês durante toda a aula, e ele teve mesmo que se amanhar com o que entendia, agora passo-toca, agora pisa, agora esquerda — quais left —, agora direita — querias turn on the right, mas olha, não deu. 
O grandalhão ficou right by my side, porque também não podia ser de outra maneira. Dá-se que a pessoa só é alta ao pé de pessoas portuguesas, e montada nos saltos, pois que perto de um estrangeiro e de ténis calçados lá se vai o pedestal, um contratempo do genital. Para além de grande, o homem era espaçoso, e veio a revelar-se um bailarino aplicado. No passo de mergulho já só via a cabeça lisa na direcção da minha, a minha a fugir de cabecear uma bola de ferro, enquanto as pernas enormes levavam os pés, num único passo (de mágica), para o local onde se encontravam os meus, que ó pernas-para-que-ui, coitadinhos, deram em dar à sola muito mais do que à anca, isto se não queriam ficar esmagados e ou enterrados no soalho. 
Só me pergunto por que é que tenho tantos momentos na minha vida que davam na perfeição para cenas do Aeroplano. Ou do Aeroplano II. 



A pessoa saiu da aula bem contorcionada, após várias fintas ao nível das extremidades, mas, ao que tudo indica, com a cabeça e os pés inteiros. 
Foi um consolo ouvir a querida professora, no final da aula, proferir naquele inglês perfeito dela, Espero que tenham gostado, até sábado. 
Eu não desgostei. O altão adaptou-se à língua nativa. E eu adaptei-me às várias invasões do meu espaço vital que, lá está, só era aquele porque resolvi não desarredar pé dali.
Nem me falem em pés.

14/01/2017

Agora a sério, importam-se de nos deixar ser mulheres em paz?

Deixem-nos maquilhar. Deixem-nos ter dias em que achamos que nos sentimos smokey e carregamos no risco. E também o pisamos. Deixem-nos encher as pestanas de tinta preta, em camadas sobre camadas, até não conseguirmos pestanejar sem esforço nem dor, e nos convencermos que temos o olhar mais fatal da nossa rua. Deixem que nos apresentemos com uma maquilhagem insuportável, que os vossos cérebros gritem my eyes, my eyes no momento em que nos olham a nós nos olhos. Deixem que optemos por uma cor de cabelo inacreditável, aquela mesma em que nem nós acreditamos, pois a opção, lá está, pode não ter sido nossa. Considerem sempre poder ter-se tratado da conjugação entre a mood das mãos da maga que nos transmutou num dia e hora específicos, somada a uma série de factores químicos e outros mais ou menos aleatórios, tipo Como Água para Chocolate, aplicado aos cabelos. Ainda que tenha sido um critério nosso, puro e duro, atendei à possibilidade de nós gostarmos daquele tom com que, obviamente, não nascemos, mas com o qual, naturalmente, decidimos morrer, no caso altamente improvável de morrermos hoje. Também não nascemos com a cor de olhos que consideramos justa, e é por isso que algumas de nós a alteram, pois tem mais a ver comigo, o que não significa que bata com o tom de pele, com o tipo físico, com o tal cabelo quimicamente organizado, que também não nos nasce ondulado, liso, encaracolado ou brilhante como seria lógico que nascesse. Deixem-nos pintar as unhas de uma cor macaca que ninguém entende — e nós também não —, mesmo que seja uma de cada cor, em paleta estonteante e não degradée. Elas são vinte, e vinte pressupostos, na cabeça de uma mulher, podem significar, na realidade, quatrocentos cenários possíveis.
Já agora, não nos julguem pela embalagem e, se possível, não nos condenem sem a terem descartado.
A sério, deixem-nos.

13/01/2017

Já tinha comido flores

Da primeira vez, souberam-me bem. Mesmo a flores. 
Da segunda vez, comi um amor-perfeito, sozinho numa pratada de massa com salmão, mas quase não conta porque me salgaram o salmão até ao escorbuto e ainda consegui estragar melhor o paladar da coisa com a quantidade de queijo que lhe amandei para cima. (Portanto, fiquei sem saber a que sabe um amor-perfeito. Nota mental: comprar um vasinho de amores-perfeitos.) 


Também comi margaridas numa sobremesa deliciosa do Darwin's Café*. Não me lembro concretamente qual delas foi, embora tenha sido há muito pouco tempo (Dory!), mas sei que ia deixar as florzinhas de lado, quando perguntei ao empregado de mesa se as podia comer e ele disse que sim. (Nunca contraries um doido.) (A menina quer comer as flores que enfeitam o prato, a menina come as flores que enfeitam o prato.) (Para a próxima pomos-lhe um cacto espinhoso no meio da pavlowa, do muffin, ou lá do que ela escolha nesse dia.)
Agora descobri couscous aux fleurs, 


e confirmei um nico aquilo que já sabia: que em circunstância alguma morrerei de fome. Se o Mundo acabar e só ficar eu e uma pradaria, as gerberas que se cuidem. Se me calhar uma ilha deserta, que se cuidem as anémonas.

* Infelizmente, NMPPI.

12/01/2017

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 56

Encontro-me num sítio cuja sinalética de Dermatologia tem um boneco cheio de eczema. Estou a banir mentalmente o impulso de ir verificar os das outras especialidades médicas.



11/01/2017

aromamor

Calhou-lhe entrar num local que lhe trouxe aos sentidos, à lembrança, ao coração, o aroma da casa da avó que a vida lhe levou tinha ela onze anos. Simultaneamente, por uma daquelas coincidências que acontecem quase nunca, sentiu no ar, exalando talvez de outra senhora, o mesmíssimo perfume usado pela avó.
Acerco-me dele, inalando-lhe o perfil, sentado à secretária, decalcado da imagem do meu pai diante do estirador, e sussurro, penso alto, ou calo quase sempre, Henriquinho, até no cheiro és o meu pai.
No cheiro dos que nos são nossos, há um denominador comum, que se nos entranha sentidos afora, olfacto adentro, respiração feita na memória íntima do odor amado. Pode ser o que nos faz reconhecer como pertença, assim como acontece com os outros animais. É também o que nos acirra as saudades, e o que as mata. O olfacto e as memórias que lhe são inerentes, tanto aguçam como suavizam a falta que as pessoas, as coisas e os lugares nos fazem.
Pergunto-me quantas vezes não percorro as minhas léguas apenas em busca do cheiro da minha mãe. Há uns dias, como naquele último, em que não o encontro logo, nem ela mo reconhece a mim. Depois, à despedida, porque é sempre à despedida, consigo sentir e cheira-me, de forma absoluta, intrínseca, definida e definitiva, a mãe.

10/01/2017

Dúvidas que me assaltam à mão armada logo assim pela fresca

Verbo polir, conjuntivo, presente.
Por mais que se pula?
Por mais que se pola?
Por mais que se pule?
Por mais que se pole?

Depois passa-me. Vou ver à nettinha e ela explica: http://www.conjuga-me.net/verbo-polir.
Que giro, polir e pular são homófonos e homógrafos, gémeos num determinado tempo das suas vidas.
E até conjugáveis na mesma frase: Por mais que ele se pula, nunca será um cavalheiro. O melhor é pulares fora. 


09/01/2017

08/01/2017

Aulas de substituição

Faltou-me a dança ontem, por ter achado que havia uma aula em novo horário, faltou-me a dança hoje, por ter faltado a professora. Em substituição, apareceu um rapaz todo saltitão, género Mike!, postura de pensamento positivo e good vibes. 
Ora, a pessoa desalavanca-se do leito a um domingo, arrasta-se a duras penas até ao recinto, vai para dançar, já não tem propriamente estofo para 1. Mudar de ideias assim repentinamente; 2. Aturar xitexes juvenis, mais do que aqueles que já atura at home. Mas vá, prossigamos, que também prossegui ali, a ver em que é que paravam as modas. 
O petiz questionou as presentes — julgo não ter visto nenhum elemento da macha — quem é que já tinha feito Step, e foi uma plateia de cem por cento que lhe disse que jamé, excepção à pessoa, que respondeu que não sabia. De facto, não sei. Já fiz tanta m. nesta vida, que também devo ter feito aquela, nalgum dia de sei lá. 
Então, ele, abstraindo-se totalmente do facto de ninguém ali presente ter algum dia stepado, deu início a uma aula de Step Coreografado, misturando os passos 1, 2, 3, 4 e 5 logo na primeira coreografia, sem sequer os ensinar. Digamos, então, sem cair em qualquer espécie de exagero, que Step Coreografado é o terror dos pesadelos para qualquer pessoa minimamente descoordenada. É como dar uma aula de Matemáticas Aplicadas a um aluno de Letras. É claro que ele conhece o x, o y e o z, conforme indica a designação do seu curso. Assim como conhece o 𝜋'. Mas, numa escala de zero a cem, vai perceber cerca de 3 da aula toda.
Fez-me aquilo lembrar as aulas de substituição implementadas pelo Ministério da Educação, aqui há uma meia dúzia de anos, aquela forma subreptícia de obrigar os professores a não faltarem, que resultou basicamente em nada: cada vez que um falta, vai um colega substituí-lo, por estar, naquele horário, "de escala à substituição". E assim se consegue que, em faltando o professor de Matemática, a substituição seja dada pelo de Educação Física — que foi o que me aconteceu hoje, só que ao contrário.
Está bem de ver que, um quarto de hora volvido de maus passos que ali dei na minha vida, arrumei o step, descoreografando-o, e acenei adeusinho ao saltitão. E até acho que aguentei muito.

Convertendo-me


Já somos muitas: flor, Cuca e Palmier (ordem cronológica). Isto, no mínimo (que já é um máximo!). Estupendaças.

07/01/2017

vidas

A boneca estava sempre pronta, quieta, calada e sorridente, como qualquer boneca que se preze. Ele pegava nela, sem jeito nem cuidado, brincava um pouco, até se fartar — quase imediatamente —, e depois atirava-a para um canto da casa onde ambos habitavam. Às vezes também a punha numa prateleira alta da estante lá dele, de forma a que ficasse sentada, ainda mais quieta, cada vez mais calada para, assim, não ter que a ouvir — parecia-lhe que só gemia e se queixava —, e quase não a ver. Ela suportou, como qualquer boneca que se preze, a sua condição de coisa, quieta, calada e sorridente. Aguentou o desamor, o desprezo fininho, o abandono, o menosprezo. 
Um dia, após muitos seguidos de prateleira, caiu da estante, ou terá saltado, desinquietou-se, começou a falar, perdeu o sorriso postiço, ganhou vida. 
Foi essa parca vida que ele quis tirar, nesse dia, porque ela mais não era do que uma coisa, e as coisas não têm (direito à) vida.

(A propósito disto. E disto.)
(E porque toda a violência tem contornos demasiado finos.)


06/01/2017

Eu tenho problemas com doidos # 12

Sinto-me um pouco doida cada vez que atravesso os portões do Júlio de Matos, agora (há que anos) Parque de Saúde de Lisboa. Não há uma única vez que não pense — não é uma memória, pois não me lembro — que a minha mãe me transportou para ali ainda na alcofa, e que aquele há-de ter sido dos primeiros ares que respirei, no silêncio dos inocentes e no sono dos justos. Acredito que nunca mais dormi como dormi ali. 
A impressão que tenho é a de que, mesmo quem não é doido, passa a parecer ser quando ali entra. Ninguém se distingue de ninguém. 
Procuro o Instituto Português de Sangue, e sei que, de todas as vezes que já lá fui, em nenhuma fui capaz de aprender o caminho. Sinto-me outra vez um pouco doida por isso. E por saber que me vou perder e ir parar a outro pavilhão qualquer. Os sinais direccionais acabam a meio do percurso, e há uma altura, fatal, em que entro em contramão. Sei que o fiz, porque avistei o sinal de proibição, mas, ainda assim, estou sem alternativa, uma vez que para a direita também é proibido. Só fazendo marcha-atrás, e isso não quero fazer, por me parecer que o edifício do sangue está mesmo ali à esquerda. Percorro duas ruelas em sentido contrário e aparece-me a casa cor-de-rosa (que seria azul-bebé, no caso de termos sangue azul, penso eu assim, e sinto-me outra vez doida) em todo o seu esplendor. 
Respondo ao questionário dos dadores com a mesma monotonia de sempre, nada mudou na minha vida desde há anos para cá. Estou só mais velha e talvez mais doida. 
Pergunto ao funcionário da recepção se não há brindes. A minha caneta do IPS secou, os porta-chaves que ofereceram em tempos nunca tinham o meu grupo sanguíneo. Ele responde que "foi tudo em Dezembro" e remato com "Eu só cá venho pelos brindes". O homem olha-me como se eu fosse doida. 
Volto a responder ao questionário da entrada, agora verbalmente, perante a enfermeira da triagem. Pergunta-me se eu tenho o peso mínimo para dar sangue, asseguro-lhe que sim, mas, mesmo assim, aldrabo no número de quilos, pois se nem eu acredito, ela também não acreditaria: uma coisa de doidos. 
Sou obrigada a tomar uma refeição maioritariamente líquida antes da dádiva. Bebo um pacote de sumo, que me salta pelos ares e aterra em cima da mesa. Parece que bebi vinho, e fico com ar de doida quando me rio da circunstância. 
No momento em que entro na sala de recolha, o enfermeiro olha-me, esbugalhado, esgazeado, olhar de doido, e grita:
- [Linda Blue], lembra-se de mim? — Respondo a verdade:
- Lembro, perfeitamente!
- Não lembra nada...
- Lembro, porque uma vez filmei a minha dádiva e é a sua voz que aparece no filme.
- Oh... disso não me lembro eu...
Pergunta-me em qual braço quero a agulha, digo que tanto faz e pergunto se também pode ser numa perna. Ele responde que "É onde houver veias", revejo mentalmente o sistema venoso profundo e endoideço um pouco.
Sento-me na marquesa onde me vou deitar e desmancho-lhe um braço. Caem as almofadas, caem os sacos de recolha.
- Agora sim, estou pronta para outra.
À saída, perco-me de novo, no caminho de regresso à normalidade.


05/01/2017

Coisas tão óbvias...


A ver se consigo situar-me.
Recebi este sms na passada segunda-feira, dia 2 de Janeiro.
(Já não tinha percebido o teor do de 7 de Junho, mas admiti-o como genérico.)
A Mel nasceu no dia 29 de Abril de 2011.
Morreu no dia 5 de Dezembro de 2015.
Nunca foi ao veterinário no Vasco da Gama, a não ser naquele dia, sábado, em que apareceu morta, pelas 8:30 da manhã. Quando saímos de casa ainda não eram 9 horas, e o veterinário dela só abria às 10. Procurámos por um que estivesse aberto àquela hora de um sábado e que pudesse recebê-la. É aqui que aparece o Vasco da Gama. Foi onde fomos confirmar o óbito (dúvidas houvesse...) e depositá-la para necrópsia. (Outra gata em casa, umas flores de proveniência desconhecida, a idade dela, demasiado jovem, vários foram os motivos para querermos o exame.) Não esteve lá mais do que dois dias, pois foi recolhida pela Faculdade de Veterinária na segunda-feira seguinte.
Obviamente, tratou-se de um engano. Apareceu no computador um(a) Mel, que também pode ser um cão ou um papagaio, e vai de mandar para o telemóvel que estava mais próximo.
Obviamente, há pessoas pouco cuidadosas.
Obviamente, é parvo mandar um sms de parabéns a um gato/cão/papagaio/ouriço-cacheiro.
Obviamente, é parvo saber estas datas todas tão bem.
Obviamente, é parvo escrever este post.
Obviamente, isto foi tudo uma tristeza.



04/01/2017

Todos diferentes?

Aquele amor já é um amor muito antigo, e é também um amor incompreensível aos olhos de quem não o vê: o diagnóstico de esclerose múltipla estava traçado pouco tempo antes do casamento, mas nenhum dos dois recuou. Ambos sabiam o que os esperava, que foi o que os esperou ao cabo de três anos e duas filhas: a cadeira de rodas onde ele se senta há vinte. 
Quando chegou, acerquei-me dele e da cadeira, envolvi-lhe a cabeça com um braço e beijei-lhe a face do lado oposto. Ele olhou-me, surpreso — surpreendido e agradado —, e disse qualquer coisa como "Bom ano", a que respondi com um sorriso engasgado e incapaz.
Passámos o ano todos juntos, um enorme grupo de gente boa, boa comida, boa bebida, boa música, boa festa, dança e risos e gargalhadas pelo ar, envoltas em fumo de cigarros e charutos de comemoração.
Todas as festas têm um momento em que já acabavam, e aquela não foi excepção. Uma vez ouvi alguém chamar a isso "o momento em que já desapertava o cinto", que deve ser semelhante àquilo que as senhoras sentem no "momento em que já me descalçava". É quando já dançámos, a bebida já desceu da cabeça para a bexiga e dali para as águas, a roupa começa a desconfortar-nos e os ouvidos deixam de suportar decibéis.
Sentei-me a uma das mesas, a conversar de circunstância com quem ali estava também, e devo ter imprimido no rosto aquela expressão de fim de festa que, no meu caso, é a de um sorriso plástico, arregalado e inamovível — mas que, para quem me conhece bem, não engana em nada. E, pelos vistos, para quem não me conhece também.
Do lado de cá, a minha cara de "tirem-me daqui". Do lado de lá, a cara dele de "tirem-me daqui". A meio-caminho, um sorriso cúmplice de quem diz "Três, dois, um, partida!", simultâneo de tiro de misericórdia no nosso enfado.


03/01/2017

Por falar em carros

Conduzi, pela primeira vez na minha vida — e pode também ter sido a última, daí que a aproveitei ao máximo —, um carro com caixa automática. O rapaz do stand insistiu tanto, que eu, tímida de início, resistente de seguida, encurralada resignada corajosa por fim, sentei-me ao volante e vai de acelerar aquilo. Nem parece que uma pessoa está a guiar um carro. Botãozinho de start and stop, manete que só vai para a frente (pára tudo) e para trás (anda lá com isso), é só acelerar, que o bicho sabe quando meter as velocidades, e nunca, nunca se vai abaixo. A maior confusão é a falta do pedal de embraiagem, que, a bem dizer da verdade nua e crua, não devia existir em carro nenhum. Era eu a pessoa que professava até hoje a teoria de que os carros trazem demasiados extras, e que esse pedal era um deles.
O homem disse-me "Esqueça que tem pé esquerdo" — o que não foi fácil, tendo em conta que o meu pé esquerdo é mais bonito do que o direito —, pelo que eu, já lá dentro, concluí que a posição, se não recomendada, pelo menos ideal, é a de meter o pé debaixo do rabo, ou a perna presa ao retrovisor esquerdo (ou assumir que as possibilidades são infinitas),


porque as tentações de carregar na embraiagem, as vezes que o pezinho delicado andou para ali a tactear à procura, foram demasiadas para quem fez um tão pequeno percurso de autoestrada. Também amandei a mão direita à manete, à chegada a uma rotunda, mas foi só para verificar que ela ali estava.
Se fiquei fã? Fiquei, mas preciso de meter mudanças, conduzir eu o carro, saber que comando. Além disso, veio-me à memória um velho trauma de infância, relacionado com uns carrinhos a bateria que existiam numa pista de mini-karts no Jardim Zoológico, em que eu...
* À uma, não consegui vez e fiquei a ver os outros, sis incluída, a acelerar à doida;
* À duas, consegui vez e o encarregado entendeu que eu era demasiado pequena (tipo em tamanho, altura, volume, essas coisas) e expulsou-me antes de me atribuir o veículo;
* À três, consegui vez num automóvel que avariou passado um minuto e não houve gritos nem braços no ar que fizessem o brutamontes reparar em mim. (A transformação em cisne deu-se mais tarde);
* À quatro, foi-me dado um carro que fiz colidir contra outro, que se safou e continuou o percurso como se nada fosse, enquanto o meu ficou incapaz de prosseguir.
Portanto, e em resumo: saí satisfeita, porém aliviada, da minha experiência caixa automática, e venha de lá essa manete, que a minha mão direita e o meu pé esquerdo cá se entendem com a embraiagem.
Weeeeee.


02/01/2017

Ano novo, boi novo

Ando em vias de ter boi novo.
Queria um Audi A1 (cor indiferente, mas podia ser branco, à manicure, ou à futebolista), ou um Mini Cooper encarnado (é claro que só podia ser encarnado, Benfica, sangue Rh -, a discrição, tudo a ver comigo), mas isto é coisa que não escolho sozinha, quase um cavalo dado, daqueles a que não se olha o dente, e este há-de trazer muitos cavalos, logo, muitos dentes, para os quais não pretendo olhar, e, portanto, recebo-o de braços abertos e as duas manitas no volante. E há-de ser azul, porque o mar é azul e é de azul que eu gosto.
Meu boi pede-me a reforma de há um ano para cá. Não pára de me arranjar motivos para o meter no estaleiro. Ora são as portas, quando as tranco por dentro, que já só abrem pelo comando da chave; ora é o depósito da gasolina que já não abre, a não ser que abra a mala e use das minhas parcas forças para, carregando na alavanca, abrir a tampa; ora é o forro do tejadilho que se descola; ora foi outro dia ter-me parecido que chovia lá dentro. Convenhamos: eu aguento tudo, as manchas de tinta que o cigano lhe tatuou e tudo, agora ficar com o cabelo à Choné só por causa da falta de isolamento de um automóvel, é que me parece demais. E aquilo não é um cabrio (embora pareça, sobretudo no ponto de embraiagem, méééééé).
No entanto, meu boi é-me tão caro, literal e metaforicamente falando. Está velho, mas, quem sabe se devido a uma característica genuinamente feminina, afeiçoei-me a ele, já não digo que como a um filho, porque a anormalidade tão vai lá tão longe, nem como a um animal, porque idem. Mas anda a custar-me a ideia de o abandonar como se ele fosse uma lata velha (errr). Por isso, já lhe arranjei melhor destino do que o do ferro velho (até porque ele é todo em alumínio, quanto muito iria parar ao alumínio velho): vai passar a ser o carro da malta, o que significa que, daqui a máximo dois anos, terá não uma, mas sim quatro condutores a puxar por ele — aos seus dezoito anos de vida, ou seja, quando atingir a idade maior. E, nos entrementes, terei para sempre comigo a miniatura do meu boi querido que, derivados do seu tamanho, cabe inteirinho no meu infinito, por elástico, coração.