31/10/2015

The girl next door # 6

A minha vizinha do 1.º C está a exagerar, ou sou eu que ainda sou muito infantil (brlé-brlé-brlé), e tenho medo?


Liberdade de expressão — corporal e facial também, Charlie

Que giro. 
Os bombeiros fizeram um calendário supostamente sexy (o meu supostamente deve-se a critérios pessoais de beleza masculina que não se prendem com os atributos que os senhores exibiram mês após mês, ou não fosse aquilo um calendário).


As gordinhas foram fotografadas para a campanha Dove, como passagem da mensagem Ei, nós é que somos mulheres normais!

A Benetton anda há anos a fotografar raças e credos, fazendo campanhas de intervenção humanitária e política, onde inclui estropiados de guerra.


Desde sempre que me lembro de Heather Mills, ex senhora Mc Cartney, modelo, ser amputada de uma perna. 


Este mês, a revista Máxima publicou uma reportagem, onde dá a conhecer modelos de beleza menos convencional, mas que, ainda assim, são modelos (de profissão) — Madeleine Stuart, com trissomia 21; modelos plus size (outra vez); Lea T., transexual; Winnie Harlow, que sofre de vitíligo; Elliot Sailors, modelo feminino de sucesso, que preferiu trabalhar enquanto modelo masculino; e, já agora, Carmen Dell'Orefice, modelo e actriz de 84 anos. 

Madeleine Stuart
Lea T.
Winnie Harlow
Elliot Sailors
Carmen Dell'Orefice

But wait. 
São portuguesas. E são mulheres. E velhas.
Também já ouvi idosas. Idosos somos todos, como os trapos. Todos temos uma idade qualquer.
São velhas.
Não são bombeiros chunga, gordas, amputados ou doentes, transexuais ou andrógenos. 
Fim à liberdade de expressão.
Fim à liberdade que aquelas mesmas senhoras ajudaram a conquistar.
— Fim —

Caro Senhor Blogger,

Espero encontrá-lo de saudinha, depois daquela pequena loucura que foi querer aniquilar todos os blogues que contivessem cenas. Graças ao senhor (doutor dos nervos?) que isso lhe passou e fez aquele volte face bastante circunstancial, ao perceber que a debandada seria geral (e ninguém gosta de ficar com a gaiola vazia, verdade?).
A minha pergunta é: quando acontece algum dos nossos bloggers favoritos fechar as cancelinhas de sua casa e determinar que as entradas só se fazem com convite, onde é que, exactamente, se clica para requisitá-lo?

Pronto, grata, como diria a minha vizinha do 1.º C.
Cá abraço não muito apertado, que é xi sem coração.

Lindíssima Blue

Oh tu, Imprópria, Imp, Impy do meu coração, queres mandar-me um convite e ignorarmos ambas a existência do Sr. Blogger?
Grata na mesma.
E cá abraço apertado, que é xi 
LB

30/10/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 18

Sou tão grave.
Tinha um almoço profissional, em que o interesse era meu. Percebem?
Era eu quem ia vender a imagem. Não literalmente, que já nem idade para essas coisas tenho, mas acho que me fiz entender.
Eu sou mas é aquela pessoa que vai pedir um autógrafo ao seu ídolo, tropeça aos pés dele, cai, parte os dentes da frente e ainda enche a criatura de sangue e baba e ranho e, com alguma pontaria, alguns bocadinhos de dente.
Também não posso dizer que passei a manhã toda a arranjar-me. Mania que sou naturalmente bela, depois dá neste desconchavo.
Nem posso dizer que a pessoa em questão seja de reparar em minudências, embora o problema não fosse ao nível do dedo mindinho.
E devo confortar-me com a ideia de que não rasguei os collants de alto a baixo, que é, talvez, a imagem perfeita da decadência da sociedade ocidental.
A minha única preocupação, nestas coisas e nas outras, é que não haja nada em mim que desvie a atenção do meu interlocutor para o que não interessa: um vestido de cor berrante, uma maquilhagem histérica, um dia de bad hair, um caco a querer saltar de um nariz impuro que, isso sim, seria o fim da macacada (e o meu), passe o pleonasmo. Assim, fui discreta, fui limpinha, coloquei o meu sorriso número três — sou-simpática-competente-esperta-e-inteligente-ó-ai-ó-linda — e fui. Fui e, no caminho, dei dois puxões no vestido cinzento e amarfanhei o casaco preto, a suspeitar que me sentia demasiado too much, sem saber se para menos ou para mais. Pinto os olhos e esqueço-me sempre da boca. Quero que me olhem nos olhos. Mas também pode significar que nunca serei uma senhora das a sério. Os cabelos colam-se-me ao bâton mal sopra um ventinho e isso incompatibiliza-me com tudo o que seja lip.
À entrada para o restaurante, caem-me os meus cherry tomatoes ao chão: apercebo-me que tenho uma unha por pintar. De vermelho. Ao menos que fosse de bege. De transparente. Não. De vermelho.


Pânico. 
E soluções possíveis:
1. Tenho um verniz na mala? — Não.
2. Volto a casa e dou uma pincelada no raio da unha? — Não tenho tempo.
3. Arranco a unha? — Isso dói.
4. Amputo o dedo? — Logo o polegar oponível, que me distingue dos macacos? E depois, o que é que me distingue, se nem os amendoins sou capaz de parar de comer?
5. Passo o almoço todo de dedo na boca e digo que estou cada vez mais femme enfant terrible? — Boa ideia, para afugentar a pesca (estou a tentar deixar as carnes).
6. Adopto um comportamento hipster e digo a palavra hipster de três em três minutos, em auto-referências? — Tão boa como a anterior.
7. Se ela me perguntar se esta é a minha unha enteada, digo-lhe que sim, e faço um mini-teatro com as outras nove a maltratá-la e a mandá-la varrer as cinzas da lareira — Não sendo muito original, sempre é divertido, e pode ser que resulte, designadamente para angariar fundos para mim, no final da actuação.
8. Cago nisso (não literalmente) e armo-me em mainstream o tempo todo que durar o almoço, evitando evidenciar a unha sem cor. E também que me caia um naco de peixe das beiças despintadas, ou me saia uma inconveniência das minhas — Foi o que fiz.
O facto de o dedo polegar ser oponível permite-nos uma série de posições à mesa que evitam que se veja a unha. Aprendi isto hoje.
Isso, e a usar a mão esquerda para quase tudo, desde besuntar o pãozinho com manteiga de alho até puxar o cabelo para trás. Em não tentando as duas em simultâneo, corre tudo bem.
Correu tudo bem. Digo eu.




Primeiras a falar do calendário!

Só para dizer que folgo em saber que o "meu mês" é o da freira.

 
Pumba, fui primeiras!

Sabes que tens um verdadeiro transtorno obsessivo compulsivo com erros ortográficos quando

estás placidamente a ler um texto de um blog, lês num comentário a abreviatura de etecetera escrita com C de cedilha, assim

etç


e julgas tão genuinamente que se trata de um caco, uma remela, um naco de comida, ou outro excremento do mesmo género, que desatas a sacudir a cedilha. E raspas com a unha no ecrã. E chutas com o dedo médio.
E depois perdes a fé na Humanidade.

[Agora tomei-lhe o gosto]

29/10/2015

50 anos de mãe

Esgotei os adjectivos e os diminutivos para a descrever, assim tão pouca. Toda sentada, definitivamente instalada, os olhos perdidos, as mãos no abandono das minhas. Perdi a capacidade para a chorar, esgotadas todas as razões e encontrados outros motivos. Toda abandonada, sorri-me assim, de vez em quando e, de vez em quando, tolhe-me o terror de um dia olhar para mim e, pior do que não me querer ver, o de já não me saber ver. Prefiro pôr-me a pensar em coisas tolas, da ciência, que sempre são mais alegres, e até parecem matemática. Diz a Genética que os ovócitos primários são produzidos no terceiro mês do desenvolvimento fetal — em se tratando de uma menina, acrescento eu, a tentar acompanhar o meu próprio raciocínio. É estranho pensar que andei dentro do corpo da minha avó materna. E, de alguma maneira muitíssimo mais ínfima, dentro da minha bisavó materna. E também que a minha mãe carregou todos os meus filhos com ela — os que nasceram e o que não. (Foi muita gente, grande mãe.) E que eles me estavam dentro, ainda eu dentro da minha mãe. E que nada disto seria verdade se eu fosse um rapaz. E que tudo isto deixa de ser verdade a partir do momento em que nasce um rapaz. Como matrioskas, andámos todas dentro umas das outras, sempre em linha de linhagem feminina. Toda abandonada, os olhos perdidos, as mãos abandonadas nas dela, sorrio-lhe assim, de ainda a saber ver, e sossego o terror que deixa de me tolher, por me lembrar que a data não é assim tão importante — como nenhuma é —, e não são cinquenta anos de mãe: podem ser noventa, cento e cinquenta, duzentos e muitos, quinhentos, quem sabe mais. Por este raciocínio, que me apazigua, eu também já sou mãe há muitos, muitos anos — desde antes de ser eu.


Fui ao Gregório (mas não greguei, calma)

A minha vida podia ser tão mais simples, se eu não fosse assim. 
Ontem fomos três, ver o espectáculo do Gregório Duvivier. Ficámos de passar em casa da comadre para a apanhar e seguíamos todos juntos, para parecermos mais. À porta da comadre, lembrei-me que não tinha imprimido os bilhetes, subi a jacto, com o coração a avisar-me que um dia me manda à merda, e entrei, também a jacto. Entre beijos à minha afilhada querida e sua irmã também querida, deslarguei: Vocês desculpem, mas eu sou a pessoa mais esquisita que conheço. (Elas não me levam a mal, porque sabem que eu sou atípica.) Imprimimos os bilhetes e ala, que tardámos cinco minutos com isto. À chegada, havia uma promoção de uma bebida chamada Super Bock Green, ela não quis o copo dela, eu naquela contingência que Ai, não tenho onde pôr isto, bebi os dois, e vá que não me vi obrigada a beber o terceiro. Isto tudo enquanto subíamos as escadas até ao primeiro balcão, levava eu meus high heels mais recentes nos pés e, portanto, os dois copos de cerveja, também recentes, na cabeça (mas já por dentro). Sentámo-nos nas cadeiras que nos calharam, que, por sua vez, formam filas estreitas entre si, ao ponto de os meus joelhos terem ficado a encostar na cadeira da frente. Parecia mesmo que estava metida num avião low cost e low room. As minhas pernas começaram logo a dar-me vontade de as desatarrachar e de as atirar, uma a uma (vá que são só duas), para o palco, pois tive um ataque de pernas inquietas que durou, hossana, todo o espectáculo. Fiquei sentada entre eles os dois, que entabularam um diálogo animadíssimo sobre política nacional actual. Mal ouvi falar em segundo resgate, disparei para o tecto do Tivoli, que é tão bonito, e já só me despreguei de lá quando o Gregório surgiu no palco, ou quando eles se calaram, o que ocorreu em simultâneo.
Por acaso, fui apanhada de surpresa. Esperava um espectáculo tipo Fábio Porchat, uma representação a solo do Porta dos Fundos, e não foi isso que aconteceu. Só não vou dizer o que aconteceu porque ele ainda vai dar espectáculos em Leiria, Figueira da Foz e Porto e eu sei que sou lida internacionalmente, e cá agora figuras de spoiler é que nááá. E também porque o texto já vai longo.
Mas ó: confirmei que o Gregório é o meu Porta favorito. Ele é grande, e vai ser maior. Fodão, mesmo, se é que me entendem.


The girl next door # 5

Na minha caixa do correio aparecem coisas. Por exemplo, aparecem folhas de plátano, daquelas secas, de Outono, todo o ano. Excluindo a minha casa, posso concluir que existe um, dos restantes 36 fogos (sem chama), onde mora alguém que precisa de me dar um recado qualquer, o qual eu sou completamente incapaz de interpretar — Folhas. Plátano. Secas. — Baralha-me a parte do plátano. Quanto ao resto, até posso tentar perceber. Folha-se para ti também, vizinho.
A última novidade, em termos de mail físico, foi este recadinho da vizinha do 1.º C, cognome com o qual, aliás, se assina. E que começa por Bom dia a todos. Que querido.


Diz-me o instinto, e este faro que raramente me engana e jamais tem dúvidas, que se trata:
1. De uma mamã extremosa — a persistência nos diminutivos denuncia-a: amiguinhos; saquinho; docinho;
2. De alguém que desconhece a anedota do barbeiro e do docinho;
3. De uma pessoa que não adoptou o Acordo — não pode ser tudo mau. Cá cinco, vizinha;
4. No entanto, de alguém que, não tendo adoptado o Acordo, adoptou uma tradição, e fez uma adopção plena — trick or treat? (A ver se não se enganam. Treta ou traque); 
5. De alguém que não sabe que os vizinhos não possuem portas de entrada em casa, no plural, e sim uma única porta cada um;
6. De alguém que pretende promover sorrisos. Digo-lhe que já me promoveu a mim, na criança que me habita a espaços?

Então fui investigar. Eu sou daquelas que crê que las brujas, pero que... e não as quero perto da minha porta, nem que ela esteja cravejadinha de sal grosso e bem varrida. Pela calada da noite, evitando o elevador, desci as escadas e acerquei-me da porta da vizinha do 1.º C. 
E foi isto:


E é isto, o que ela tem, pregado na porta.
Digam-me: posso dormir descansada por mais duas noites, ou devo mudar de prédio?
Bato-lhe à porta e tento o diálogo?
Deixo um caixote de tricks, seja lá o que isso for, do lado de fora da (minha) porta já hoje?
O que a experiência me dita, e que aconteceu nos últimos anos, é que eu compro os doces e não me aparecem diabinhos. Se não compro, tenho a porta num desassossego toda a noite. Foi assim nos últimos oito anos, ano sim, ano não. Nos anos em que não apareceu nenhum miúdo embruxado, fiquei com os doces, e, só para não se estragarem, que até é pecado, foram anos de engorda. 
Prefiro que venham. 
Venham a nós as bruxinhas. 
(Eu dou-lhes os tricks.)

28/10/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 33

(É eu ter uma crise de falta de assunto, que, lá, ela passa-me.)


Porque, ó pá, pronto, fizeram-me a vontade e mandaram fabricar uns saquinhos mais pequeninos do que a barca do inferno de outro dia. 
Mas depois eu olho, olho, e só vejo pornografias associadas (tanto outro tema por explorar; tanto outro legume por fotografar...).

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 32

Até por uma vaca — mas mesmo bovina — passei hoje.
(Fora as outras, claro.)

Post não patrocinado, para variar.
Ei, Milka, eu estou disponível. Em géneros.

Eu já não precisava de desculpas para lá ir

(Post não patrocinado. Minha gente, no dia em que me patrocinarem um post, eu prometo que faço um alarido tal, que todos ficarão a saber que me estão a pagar para escrever — oh, sonho quase erótico! — e quanto me estão a pagar, bale?)

Smöoy das Amoreiras. Eu tenho uma ligação uterino-umbilical-visceral com as Amoreiras, por tê-las visto nascer, pedra sobre pedra. Sinto-me quase parteira das Amô. Obstetra.
Quem se lembra, sabe que, no Verão passado, fiz uma espécie de Rota dos Iogurtes Gelados de Lisboa. E que provei todos os que conhecia. 
O Smöoy não é o melhor (nem eu cheguei a decidir qual deles era), mas é, de longe, o que mais me seduziu, com suas curvas geladas, para continuar a consumir desalmada, descarnada e descaradamente. É, portanto, o meu dealer, o que me drogou, o que me viciou irremediavelmente. Sinto-me sempre capaz de atravessar a cidade toda para ir até lá, só para comer um iogurte gelado. Estoiro em gasolina e parque e recebo em troca mais uns graminhas no lombo, regalada e inculpadamente. 
Barato, não é, nem o Smöoy, nem nenhum. Um copo médio custa 3 euros e leva 2 toppings, mas eu preciso de mais. Às vezes tenho sorte. Já lá apanhei o gerente de loja, que engraçou comigo e com esta velha mania de contar a história da minha vida quando chego à caixa para pagar, e me ofereceu o terceiro topping, já apanhei um funcionário catita que me ofereceu um vale para topping extra, enfim, oferecem-me coisas. Isto, de duas, uma: ou estou muito gorda e eles vêem que eu sou de muito alimento, ou estou de uma magreza ostensiva (haha, magreza ostensiva é tão bom), e eles querem alimentar-me. Também pode dar-se o caso de ser contagiosamente simpática, ou eles apenas bons vendedores. O importante é que me dão sempre mais do que eu peço, à força de leves bateres de pestanas, ou, como diriam os americanos, eyelash power.
Desta vez, calhou-me um empregado que me desviou do bom caminho que eu estava a trilhar, na direcção do copo dos 2 toppings, e me convenceu a consumir o novíssimo combinado explosivo (adjectivação minha), que leva 2 iogurtes e 4 toppings, por apenas mais cinquenta centiminhos (que é o preço de apenas um topping extra). Vai a parola, fascinada, e pede o impensável: base de iogurte natural, romã, amendoins e conguitos, camada de iogurte de melão e molho de leite condensado (a que eles chamam chocolate branco).


Foi horrível. A passagem melão + chocolate branco foi qualquer coisa digna de só ser suportável por um fígado muito calejado. Mas eu aguentei firme até ao fim, apesar de dois ou três brain freezes que tive entretanto. (Acontece-me muito, quando estou a comer comida gelada, não só ficar com a fala comprometida por me gelar a língua e paredes adjacentes, como também por se me regelar o crânio.) O rapaz, por sua vez, estava tão fascinado com a minha teoria de que "Isto é tudo para misturar no estômago, tanto faz se combina cá fora ou não", que nos disse, a mim e às brasas que me acompanhavam, "Quero vê-las cá para a semana!", oferecendo-nos outro selinho de topping extra. E eu "Ai pode ter a certeza!", já a imaginar o novíssimo combinado explosivo, mas com 5 toppings, todo a derreter-se para mim. Ainda mando deitar-lhe marshmallows, ou outra coisa igual e insuportavelmente enjoativa. Há que testar os nossos limites.
Fiquei encantada com o que dizia nas costas da t-shirt do rapaz, e, por isso, pedi-lhe que me deixasse tirar-lhe uma fotinha, para vocês verem. Na verdade, esta é a única parte que interessa, neste post todo.



Não basta ser, é preciso parecer

A questão das prioridades também não é fácil de explicar às pessoas, quando nos calha a nós termos que ensinar.
Num mundo que se quer de seres iguais e sem discriminações, respeitando as diferenças de cada um, é difícil fazer entender por que é que se há-de dar passagem às senhoras nas portas, ou por que é que as senhoras sobem as escadas atrás dos homens. Na verdade, pode não ser privilégio nenhum uma ou outra delicadezas: para lá da porta pode estar um ladrão, um balde de tinta ou uma bomba. Ou, ao subir as escadas à frente, o homem pode tropeçar e resvalar escadas abaixo para cima da desgraçada, arrastando-a consigo para o fundo. 
Num mundo civilizado, assim como deveria ser o nosso, as senhoras teriam prioridade nas portas; prioridade para sentar na única cadeira vaga; prioridade para serem salvas; prioridade para serem despedidas; prioridade para serem maltratadas. Ai, não, estas duas últimas não eram deste texto. Credo, não me funciona o delete, que grande contratempo.
Talvez as senhoras sejam, efectivamente, mais frágeis do que os homens, mas eu não percebo por que é que a assunção desta coisa tão gritante faz comichão a tanta gente. As senhoras têm os filhos, têm o período, pesam menos e têm menos força física. Têm mais indisposições limitadoras e incapacitantes. Têm mais vezes vontade de chorar. Choram mais vezes e tudo. Assim determinam as hormonas, que são umas substâncias químicas que mandam em tudo o que uma pessoa feminina pensa, sente, diz ou como age. Uma maravilha, se virmos isto na perspectiva da isenção de responsabilidades para quase tudo o que nos acontece na vida, incluindo as coisas boas. Por exemplo, um filho tem uma boa nota na escola: parece que ficamos contentes porque, nesse dia, a (nossa) lua ditou que era para estarmos contentes, não é porque o rapaz até se saiu bem a matemática que ficamos contentes, porque, se fosse dia de ficarmos tristes, o rapaz podia ter 20 a matemática que nós íamos chorar baba e ranho e outros excrementos semelhantes só por a vida ser tão injusta que a p. da escala havia de acabar no 20 e nós achamos que ele merecia 21.
É claro que há excepções, que me estragam as teorias todas: há senhoras que têm muita força. Outras que usam a tal fragilidade para adquirirem vantagens. Outras que nunca têm filhos (há mesmo umas que detestam crianças, como quem detesta cães). Outras ainda que correm tudo ao grito, ao estalo e ao coice (essas detestam crianças, cães e tudo o que mexe e não mexe). E não me venham cá fazer crer que essas choram sozinhas e a fragilidade delas é privada e íntima e secreta, mas existe, que eu não acredito.
Senhora que é senhora, é frágil, sim senhora.

26/10/2015

Pensamentos que me germinam na caixa, porém nunca me chegam à boca # 10

Sob o dilúvio, transpondo as trevas, faróis vermelhos pela frente (ok, são luzes traseiras, mas carambas, isto é linguagem poética, são eufemismos, genitais!), e atravessando os mares recentemente desabados do firmamento, surge, desiluminado e frágil, o boi de Linda e, lá dentro, sua esbelta figura, cujos negros olhos penetram a negritude da noite, e, tétrica, melancólica e soturna, cogita:

Mas porra, isto não é já desperdício de energias e reservas naturais? Anda uma pessoa a fechar as torneiras o mais que pode, arriscando-se a abrir os pulsos e a encher os dedos de deformidades, e vocês aí em cima nessa farra mijadeira? Haja decência!

(Eu sabia que chegaria o dia em que escreveria um post a falar de minha pessoa na terceira.)


Preciso de ajuda

Estive a ver as minhas valências, não por uma questão de autoestima — embora essa não seja de menosprezar —, mas por necessidade absoluta, e até concluí que sou razoavelmente boa em muitas áreas, tudo isto do alto dos meus saltos altos, que quase estreei hoje um par deles. E só não digo que estreei mesmo a sério, porque outro dia andei a patarinhar a casa com eles calçados, não para me habituar a eles, e sim para os habituar a mim — ou terá antes sido por vontade de andar em cima deles e sentir-me mais alta?, nem sei —, mas certo-certo é que foi hoje o dia que os levei à rua pela primeira vez, e sei que eles estão felizes, que é o que interessa. Digamos que fiz tábua rasa da possibilidade de ocorrência de aguaceiros, que é o que deveríamos fazer com tudo o que nos atormenta, designadamente quando temos diante de nós uma intransponível montanha, zás, tábua rasa. (Grande John Lock, cá beijinho.) Assim, através dos intervalos do sol, porque já lá vai o tempo que não volta pra trás em que passava nos intervalos da chuva, atingi a rua como um petardo e, investida de capa de executiva, que não sou (tomara eu que não me executem a mim), sob a forma de gabardine amarelo-histerico-histriónico, lá fui exibir as minhas valências para quem as quis testemunhar e, muito em particular, para quem não estava nem aí, como a outra do tô nem aí. Saí com a mesma cara com que entrei, mas um bocado mais velha.
Não apertam nada, é ilusão de óptica. Chiu.
E vinha a pensar, no regresso, que a felicidade se faz de pequenos merdinhos e eu vinha tão contente com os meus sapatos novos — poucas haverá que aturem uns saltos destes sem um ai um dia inteiro (mal sabem elas que eu me descalço em todo o lado onde me sento, o que já me trouxe férteis constrangimentos, designadamente quando não consigo encontrar um sapato — ou os dois — debaixo da mesa diante da qual estive sentada, por mais que tacteie com os dedos plantares) — e também com a iminência de ir ver o espectáculo do Gregório Duvivier, que é o meu Porta dos Fundos favorito (eu gosto do ar enjoado, safado e borrado dele, que fazer?), velha mania, como todas as minhas, manias de velhos, de gostar sempre daquele que não é o principal, já nos Gatos gosto é do Tiago (aqueles olhos sempre a rirem, quase me convencem de que a vida é bela).

E, no meio disto tudo, pensei assim: Realmente, ele há coisas [isto sou eu a pensar de mim para comigo]... tão valências nuns campos, férteis e verdejantes, tão invalências noutros. Então não é que eu não consigo adicionar fotos no blog se for através do telemóvel?

Alguém?
Bom, aquela fase de abrir o blogger | criar mensagem | juntar fotografia (no ícon da fotografia) | seleccionar do álbum do chico-smart | carregar imagem, isso já sei que não dá. Fica horas a carregar uma mera fotinha, e nunca a carrega. Estou farta de gastar dados com essas tentativas.

Dizei-me: o problema é ele, ou sou eu?

É o sonho de uma vida, poder fazer posts do género O que vês tu do teu postigo, Linda?, através do smartphone, e poder escrever algo enigmático, do género Cebolas. E lágrimas. Através das grades. (Ontem, por exemplo, tinha ficado giro.) Ou então, Onde estás tu agora, sua grandessíssima Linda? E pumba, uma foto do Duvivier a pedir-me um autógrafo, e o texto anexo, A ser feliz, o que mais, pá?

Estão a ver? 
Preciso de ajuda.

25/10/2015

Plaza Suite — não sei se isto é spoiler ou não.

Teatro com a bicomadre, supostamente ver a última sessão do Plaza Suite. Digo supostamente, porque a minha comadre leva-me ao teatro e diz sempre que é a última sessão, e depois aquilo fica em cartaz mais não sei quantos anos. Para ela, estamos sempre a ter a última oportunidade que a vida nos dá, pelo que temos que a aproveitar muito bem. 
Eu já tinha visto a Alexandra Lencastre em palco, n' Um eléctrico chamado desejo.
Ela é uma monstra. Cada vez que a vejo — e a televisão e suas novelas de pastilha elástica não lhe fazem qualquer justiça —, fico na dúvida sobre quem é que considero, verdadeiramente, a nossa melhor actriz: a Alexandra Lencastre, a Fernanda Serrano ou a Maria Rueff (esta última num registo completamente diferente das outras duas). 
É muito amor, o que eu sinto pela Fernanda Serrano, aviso já. Ela é linda, mas linda de morrer quedo e mudo, tem quatro filhos e continua linda, e é de uma simpatia ao vivo que só apetece dar beijinhos. Ainda por cima, é excelente actriz. No 40 e então?, interpretou vários papeis, e ficou claro que era a melhor em palco (com a Maria Henrique e a Ana Brito e Cunha).
A Maria Rueff faz-me rir e isso é motivo suficiente para que eu goste dela para sempre.
Posto isto: Diogo Infante.
O Diogo Infante foi o meu primeiro desgosto de amor showbizzicamente falando. Eu amava-o quando, um dia, sem qualquer preparação, me foi dito que ele nunca seria meu.
É mentira, mas eu gostava muito dele. E achava-o giro de estalo. Continuo a gostar muito dele, e a achá-lo giro de estalo, mas não lhe perdoo. Quer dizer, até o compreendo. E percebo perfeitamente os rapazes que o rodeiam. Ainda por cima, também é um actor ímpar. 
Adorei a peça. 
~
A sala estava cheia de cabelos brancos. Talvez se explique isso através do abatimento ao preço dos bilhetes para a terceira idade.
Atrás de nós ficaram duas senhoras, que seremos nós daqui a uns anos.
Dois actos, duas situações diferentes, de dois casais diferentes, casados há vinte anos. E elas a teimar que eram os mesmos. Nem o facto de terem nomes diferentes lhes acendeu uma luz. Nós, daqui a uns anos, seremos assim: desatentas e divertidas.
~
Muita falta fazem as pancadas de Molière. Nas tolas dos atrasados. Agora a sério, o segundo acto a decorrer há dois minutos e ainda gente a entrar na sala? Mas ninguém dá uma paulada no povo do cigarro, do café, dos mil sms, do telefonema para a sogra e da mijinha, num mísero intervalo de 15 minutos? Era fecharem-lhes as portas, como acontecia antigamente, e acabava-se o desrespeito pelo trabalho dos outros. Esta é uma medida que, embora pareça ultrapassada, era bastante eficaz.
(Hoje pareço o JAS a falar. Por falar nisso, há que tempos que ele não me irrita. Será que me imbuiu?)


A hora nova

Uns, viveram-na, outros dormiram-na, outros comeram-na, outros correram-na, outros aproveitaram-na, outros ignoraram-na, outros deram cabo dela, outros simplesmente deixaram-na passar, e nem a viram.
Eu sei que estive entre eles.


24/10/2015

Pelos teus 19 anos

Tinha que ser um momento único e, por isso, se calhar, calhou no dia 29 de Fevereiro, que peguei na caneta do teste e li as riscas azuis na janelinha que diziam grávida lá na língua dos cientistas. Tinha que ser numa hora única e, por isso, se calhar, calhou ser de madrugada, e tive que voltar para a cama, portadora efectiva de um enorme alvoroço e de ti. Avisei o teu pai da circunstância única que era a proximidade concreta de virmos a ser quatro em casa, não haveria de tardar muito. Mais do que nele, enrosquei-me em mim, em ti, assim tão juntas, como se já não soubesse antes e tivesse acabado de saber que vinhas aí, e adormeci, para sonhar um sonho encantado, que dura até hoje e que eu quero meu para sempre. Davas pulos e saltos numa altura em que não existe, lá na língua dos cientistas, possibilidade de serem sentidos, Impossível, são 3 centímetros de gente, são 4 gramas de pessoa. Mas eu sinto, sei perfeitamente quando ela se está a mexerela, foste sempre ela, porque eu já te sabia muito antes de te saber a caminho — e toda a gente se ria da minha certeza, menos eu — e tu, às cambalhotas. Então, chegaste, gordinha e viçosa, de pulmão largo e perna decidida, a gritar vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, meses a fio, até estarmos todos doidos, menos eu (que já era, também por ti) — e tu, aos gritos. Aos nove, puseste-te em pé e andaste, ainda nem os dentes haviam chegado. E eu, desta vez eu, Impossível, são 70 centímetros de gente, são 9 quilos de pessoa. Mas fizeste-a, mesmo bem feita, e assim prosseguiste o teu percurso, tantas vezes de joelhos esfolados e ranho no nariz, caracóis à solta, e todos os dias ao portão da escola, Mãe, hoje caí.
Hoje olho para ti, e já dou comigo a pensar Parece impossível, são 154 centímetros de gente, são 45 quilos de pessoa — uma mulher enorme, de corpo pequenino.
Que bonito que é o teu grande cabelo pequenino, minha Mimi.
(Pudesse eu ter artes para que todas as tuas perdas se confinassem ao cabelo.) 
Que bonito que é o teu grande coração pequenino, Formiga. 

(Pudesse eu ter artes para que nunca mais tivesses que me dizer 
Mãe, hoje caí.)


Uma aluna bem comportada

Entrei na aula de Pilates e o chão já estava preenchido com todos os colchões de todas as pessoas presentes, menos o meu, que estava ainda a deixar de ser ausente. Coloquei o meu onde me pareceu que havia lugar, mas, efectivamente, não havia. Era um pequeno espaço ao pé da porta, no extremo oposto de onde fica o estrado, o palco, o altar, o púlpito, ou será antes um pedestal?, onde se coloca o mestre. Mal estiquei os braços e as pernas, ficou claro que, a insistir em manter-me ali, iria passar cinquenta minutos a dar e a levar toques. 
André, o belo, levantou o belo braço, apontou para mim e disse a frase mágica, que seria a que me traria as energias boas para todo o dia de hoje, não fosse eu ter mais fontes onde as captar (apesar de, desgraçadamente, hoje não ser na luz que o sol poderia dar, mas não está para aqui virado):
- Há aqui um espaço à frente, óptimo para uma aluna bem comportada. 
Apontei, também eu, para mim e perguntei:
- Sou eu?
A pequena vénia da cabeça e o sorriso de artista de cinema, Sim..., fizeram-me levantar, saltitar pela sala até ao lugar indicado, e tenho a certeza que foi com a cara mais mal comportada que não consegui disfarçar naqueles segundos, que lhe disse, à chegada:
- Não sabia que era uma aluna bem comportada.


Fiquei a saber. 
Os meus professores, no liceu, também achavam a mesma coisa. Eu sentava-me sempre à frente e sabia sempre quase tudo acerca de quase tudo. Era mesmo bem comportada. Depois, quando atravessei a idade parva, perdi quase totalmente a fama e o proveito, e passei a sentar-me na segunda fila.
A segunda fila é muito mais confortável, mas distancia-nos exponencialmente do pedestal, ainda que não queiramos atingi-lo. Faz de nós cidadãos de segunda categoria. 
Só depende de mim, mas espero nunca mais voltar para lá. Nem no Pilates nem em nada. 


Mousse de Oreo* branca

Ou mousse branca de Oreo?
Ou mousse de Oreo brancas?


Desejo ardentemente que esta seja ainda mais enjoativa do que a preta. É que eu não ando a queimar três vezes por semana no antro da suadeira, para depois, numa mera tacinha desta papa branca (Oreo brancas, leite condensado e natas — BUM, a bomba calórica, a bomboka gorda) apagar o fogo do inferno na minha carne a arder | Vou ceder ao prazer...


* ninguém me paga para isto, mas é contactarem-me, que eu estou para as bolachas como para os iogurtes — gosto de todos. Mesmo que façam de brócolos, ou de couve de Bruxelas. Marcha tudo a eito, parece uma parada militar russa. Alinhadinhos.


23/10/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 30

Nem a lado nenhum.
Perco o carro. Deixo de saber onde o pus. Eu sei que não sou única, porque, se reparardes bem, um parque de estacionamento de centro comercial ou de hipermercado, parece sempre um antro de zombies, ou uma espécie de limbo, cheio de almas penadas — mais mulheres, convenhamos (porque também vão muito mais a esses lugares. Só hoje, éramos duas, se não contarmos que eu estava acompanhada pelo rapaz mais giro que conheço, e que fui eu que fiz) —, ou uma coisa tipo o cenário do Thriller do Michael, aquele defunto que eu defendo estar mais vivo do que eu, mas isso sou eu e a minha mania da teoria da conspiração, que vergonha, que até acho que o homem Armstrong não pisou a lua, mas isso ao pé dos que acreditam na inocência do outro que esta semana saiu que nem um passarinho, não é nada. Tem piada, foi uma semana de debandada, de saída em massa e com massa (esta não fui eu que inventei, mas é tão boa que não resisto. Cá beijinho, querida, tenho tanto orgulho quando penso que fui eu que te fiz, também.)

retirei do Thriller, pois
Enchi o saco (quase, quase na acepção brasileira da expressão) de coisas pesadas, de entre as quais se contava um pack de dez minis. Para não sobrecarregar demasiado o saco, entendi por bem pôr as minis à parte, para distribuir os pesos entre o rapaz e eu (que, nesta história, fazia ou de velho ou de burro). Ele, que é um cavalheirinho, ofereceu-se para levar o sacão pesadíssimo, com o argumento que não queria fazer figura de alcoólico, pelo que coloquei as minhas minis debaixo do braço, assim à anca, como um leitão (ai, não me falem em leitões...), e "Ah, pois, preferes fazer figura de filho da bêbada", e ala para o parque.
Era eu de mini-grade de minis ao sovaco, e ele a carregar um saco que mais parecia que levava lá um morto não vivo dentro, que não foi um momento nada fácil. Não sei explicar como é que perdi o carro, pois se acho que desci pelo mesmo lado e saí pela porta por onde tinha entrado, o raio do boi não me aparecia nem se eu rezasse às alminhas (cruzes, que hoje estou tão tétrica). Entrei em desespero e implorei-lhe que trocasse de pesos comigo, ele lá cedeu, ficou com as cervejas, eu com o saco do morto, mas continuei a fazer de velho ou de burro nesta história, porque ele não despiu a casaca de rapaz (ou era uma t-shirt?). Só sei que cheguei a amaldiçoar a p. da genética, e a lamentar que ele fosse tão, mas tão igual a mim, e que tivesse exactamente o mesmo sentido de orientação e memória para fixar minudências da m., e que tenhamos chegado a um ponto em que já tínhamos perdido não só o carro como também a calma, a cabeça, e nós próprios — estávamos perdidos. 
Foi quando me lembrei que, aqui há uns largos meses, senão séculos, um dos meus grandes môres que frequenta aqui o buraco me disse que, para a próxima, usasse o truque da chave: quando achasse que estava próxima do carro, accionasse as portas, a ver se via as luzes a acender. E foi o que fiz. Ele estava, vá, debaixo do meu nariz. E quando fez traque e flash, olha, porra, quase chorámos de alívio. Tenho que agradecer, não sei a quem, ter-me ensinado esta magia, que valeu que hoje não tenha tido que voltar a pé para casa, carregada daquela maneira, ou, pior, para aliviar a carga, a ver-me obrigada a ir bebendo as minis pelo caminho.
Mas, afinal, encontrámos o burro, o rapaz e eu.


Pensamento escatológico do dia # 13

Ponham-se no meu lugar.
Uma pessoa está a maquilhar-se e apercebe-se de que o lápis dos olhos, essa maravilha que nos faz parecer a Farah Diba, ou qualquer fêmea médio-oriental, está a precisar de ser aparado, pois nos anda a borrar a pintura a ponto de nos assemelharmos com um dos Kiss, esses grandes malucos da década de 70 do outro século, só que sem cuspirmos fogo nem sangue, e é porque não calha a provocarem-nos.
O afia-lápis próprio para o fazer (não é o mesmo dos lápis de carvão e de cor, é mesmo um afia especial. O lápis dos olhos também não é bem um lápis, embora pareça) tem uma pecinha incorporada, que é para, no fim da afiadura, se poder limpar a lâmina dos resíduos, exactamente por o lápis de olhos ser cremoso e mole, e deixar a lâmina toda nhanhada de negro (ou azul, ou verde, ou amarelo, sei lá de que cor é o lápis de cada uma. Eu sou dramática e trágica e mania que sou misteriosa, uso preto, ou cinzento escuro, morte, drama, catástrofe, desgraça, enigma).


Estava eu muito bem a sacudir os restos de lápis que haviam ficado agarrados ao afia, quando me caiu a dita pecinha para dentro da sanita. Fiquei um nico a contemplá-la, pensando cá para com o meu fecho éclair se valeria a pena tentar o resgate da coisa, ou se puxava o autoclismo, para não pensar mais nisso.
[Puxar o autoclismo para não pensar mais nisso — a ver se não me esqueço de reter esta ideia.]
Mas eu sofro do grave problema, quase patológico, que é o da personificação. Para mim, tudo tem alma. Sou um São Francisco de Assis das coisas. E condoí-me da pecinha. 
Fiz-me bombeira da retrete, soldada da paz cuja missão era o salvamento da pequena coisa, e muni a mão com um saco de plástico, qual luva de amianto que me protegesse da inimiga barreira que me separava da vítima indefesa.
Tirei a peça, a sentir a mão toda molhada.
E exclamei, algo vitoriosa, algo derrotada [que há-de ser como se sente todo o herói após um  árduo salvamento]:
- Grita-me constantemente o cosmos que o meu nome índio seria sempre Camisinha Rota.

22/10/2015

Podia bem ser meu filho, aquele miúdo

Nasceu quatro semanas antes do meu, e proveio de uma barriga que ocupou a barriga da minha mãe poucos meses antes de ocupá-la eu também. Somos muito próximos, por isso. Quase meu filho, eu quase mãe dele. 
Brincámos às casinhas e às bonecas, a mãe dele e eu. Brincámos, muitos anos mais tarde, aos bonecos de carne e osso, de loja em loja, de centro ecográfico em centro ecográfico. (Estou, aliás, convencida, que foi esta aproximação geográfica, da minha com a barriga da mãe dele, que originou e gerou e gestou esta aproximação genética irreprimível, e não tão-só o nosso efectivo estreito parentesco.)
É ela quem repara nas semelhanças — na maneira de estar, na forma como sai de cena e voa para o planeta de vez em quando, nas conclusões que tira, na maneira como conta as suas histórias: eléctrico, cândido, mirabolante, fervilhante.
Como é que é possível, sendo ele meu filho, ser tão igual a ti...?
Queixa-se das dores de uma queda que deu no dia anterior, na escola, por ter elevado um pé no ar, demasiado alto para a abertura de pernas que tem, e que o fez cair redondo no chão.
Lembras-te que eu fiz isso, exactamente assim, numa festa em casa da Marta? Não sei bem o que é que eu queria atingir com o pé, mas acho que era a bola de espelhos. Doeu-me tanto o rabo...
Ele ri-se, de gosto, de gozo, de simbiose e gemelaridade. 
Eu rio-me da memória absurda e das partidas que a vida nos prega. 
Também os nossos risos ecoam em eco perfeito.

(Àquela velha máxima "Olha que podes ter um filho assim", deveria acrescentar-se "ou um sobrinho...")

Chico-smart não me tem em grande conta # 13


Estou a escrever uma mensagem de parabéns, começando por "Dá um", e pretendo continuar com "grande beijinho de parabéns à tua filha".
E chico, como se esta fosse a minha linguagem mais useira, sugere-me... soco.
Dá um soco de parabéns à tua filha. 
Belo.

Campo minado

Ando com muita dificuldade em expressar-me e em exprimir-me. Espremo-me e quase me esperneio, mas sem resultados. A geração a que pretendo levar a cabo a criação e, já agora, a educação, não aceita nem entende o meu ponto de vista, ou, pelo menos, todos eles. Às vezes, nem eu. Foram muitos séculos de educação judaico-cristã.
O meu vizinho do primeiro andar a contar vindo do céu está desempregado há dois anos e fez-se vendedor de uma mediadora imobiliária. Eu sei que ele é uma pessoa com preparação para outro escalão de ordenados, já passou dos 50 e tem uma excelente figura. Quando surgiu o panfleto com a cara e nome dele na caixa do correio, tive pena. Não sei chamar outra coisa ao que senti. Trata-se de uma saída válida, todos os trabalhos são dignos, em tempo de guerra não se limpam armas, qualquer coisa é melhor do que estar desempregado, toda a gente tem o dever de saber ajustar-se, e beca-beca. Mas não consigo deixar de pensar na quantidade de feridas abertas, vidas destruídas de, pelo menos, três gerações — queimadas —, que esta crise vai deixar para trás, se é que algum dia se irá embora daqui. Os projectos, os sonhos, as expectativas e muito do que já haviam conquistado, simplesmente desfeitos, como aquele pó fininho que fica das obras, que se mete pelo nariz, pela boca e pelos cabelos, mas não se vê e nem memória guarda, a não ser um incómodo daqueles que só nos assalta de onde em onde.

- Tenho pena deste homem. Não deve ser fácil começar alguma coisa agora, e por uma questão de necessidade. Ser o sustento de uma casa e depois estes dois anos...
- Mas porquê o sustento de uma casa, se ele tem mulher?
- Porque ele é o homem, e... eu sei que o que vou dizer é extremamente machista, mas...
- Olha, pára, que já vais começar a entrar em campo minado.

Mesmo sabendo que nada neste raciocínio bate certo, mesmo fazendo um esforço por sair da caixa cerrada que é a tal educação judaico-cristã, ainda assim, parece-me sempre mais trágico quando é o pai que não trabalha. Talvez porque consigo pôr-me na pele dele, que terá recebido uma educação muito semelhante à minha. Ou talvez porque sinta na primeira pessoa todas aquelas lutas interiores por que ele estará a passar neste momento.
Tenho pena deste Homem.
(Até de mim, não homem, tenho pena.)

21/10/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 29

Passei por ali e estavam as duas a conversar. Ou melhor, uma escutava, enquanto a outra ensinava (já vão perceber o itálico). Claramente, avó e neta. Uma avó vulgar, como as avós de agora (já não se fazem avós gordinhas e de pés inchados, que nos ensinavam a fazer tricô e nos conheciam todas as manhas pelo timbre e pela entoação, avó-óó... Acho que já nem titis se fazem — eu tive uma titi que foi a maior escola de lavores femininos, cozinha e doçaria e artes que alguém, com um mínimo de alma de artista, pode aspirar ter. A minha titi foi a última peça da fornada das titis perfeitas). As avós de agora são modernas, magras, usam o cabelo curto e algumas até trabalham. Outras fumam. Qualquer dia, tatuam-se.
Pensando bem, esta era uma avó muito invulgar. Retiro o que disse ao início. 
A neta era uma menina vulgar, igual a todas as netas do mundo, mesmo aquelas que se faziam dantes (eu também fui assim, por isso é que sei). Tinha uns três anos, ainda toda refegos de bebé, cabelos escuros encaracolados, bochechas de anjo renascentista. E estava parada — paralisada.

- Estás a ver? É um coelhinho. Não parece, pois não? Mas é, só que está sem pêlos. Foi esfolado.

(Perceberam o itálico?)

Acho que adormeci e desatei a ter um pesadelo, assim, sem aviso. Nele, a bruta prosseguia a patológica lição de anatomia patológica com a comparação com os gatos. 

- Estás a ver? Parece um gatinho. Mas não é, é um coelhinho. Tu gostas mais de gatinhos ou de coelhinhos? Nós comemos os coelhinhos, mas não comemos os gatinhos... só comemos os gatinhos se o senhor do talho nos vender gatinhos em vez de coelhinhos. Chama-se a isso gato por lebre.

Então eu interferi, intercedendo. E já ia explicar a diferença entre gatos e lebres.

Depois acordei e já estava longe, na outra ponta do território continental, a bruta eclipsara-se pelo chão abaixo, sugada pelo Hades, e o anjo dos caracolinhos e dos refegos, afinal, tinha ensurdecido por momentos e não tinha ouvido nada do que a avodrasta malvada lhe tinha dito.
~

De uma vez por todas: não há como confundir um gato com uma lebre ou um coelho, mesmo que esfolados. Começa pelo formato da cabeça e pela colocação dos olhos no crânio. Mas, se dúvidas houver, vá lá mais uma achega: os gatos não têm incisivos à frente (têm micro-dentes), e os dos coelhos são tão visíveis que até de boca fechada se vêem. 
Ninguém come um gato se quiser comer um coelho.
(Parece que nada me soa bem, ultimamente.)

Quem tem mãe

Inicia-se na aprendizagem da Filosofia. Assistiu às primeiras aulas com o espanto e confusão com que a maioria de nós assiste. É todo um mundo novo. E toda uma área inexplorada, para um pragmático, meu engenheirinho um dia, quem sabe.
E apanha-me na curva.
- Mãe, quem é a mãe de Deus?
- Maria... Nossa Senhora... — paro, faço uma pausa, hesito — mas qual Deus?
- Mãe, Deus...
- Ah, ok. Maria, mãe de Jesus, que é filho de Deus Pai. Ou seja... Nossa Senhora, mãe de Jesus... — hesito de novo, estou encurralada pelas minhas próprias dúvidas — Deus não tem mãe.
E ouço, vindo daqueles olhos, enormes, meus, nos meus:
- Não tem nada.

Eu não queria ser esta

Pelo menos, não queria ser tantas vezes.
Às vezes, queria só encontrar a boneca, ficar do lado de cá do balcão, brincarmos aos médicos e aos doentes, e fazer ela de médica.


20/10/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 28

Petrifico.


Já não bastava a parva invenção de sacos para compras, drivados da não menos parva medida legislativa do saco de plástico, com dimensões absurdamente absurdas, capazes de aguentar dez quilos de víveres e outros produtos altamente necessários à sobrevivência no planeta (e, cada vez menos, do planeta) —, que uma pessoa carrega ao ombro qual aguadeira chinesa —, para ainda terem inventado esta coisa maravilhosa, que são os sacos sobre o longo, ainda por cima uma poupança relativamente aos outros, já que custam € 0,85, contra os € 1,00 que custam os primeiros. 
Eu quero perceber o que é que ocorreu aos senhores legisladores, que nos obrigam, com suas medidas legislativas altamente iluminadas (mas das quais estou perfeitamente crente que não participam activamente, pois a mercearia deve aparecer-lhes na despensa por obra e graça do Millennium BCP, ou outro que não seja espírito santo de orelha), a meter, no mesmo saco, o peixe, o papel higiénico (para depois do peixe), o detergente da roupa (idem), o esparguete, a alface, o pão de forma, as pilhas e a t-shirt. 
Também quero perceber o que é que ocorreu aos senhores desenhadores desta bela barca, que nos querem obrigar, com sua peça de design, a meter, no mesmo saco, a criança pequena, o cão e o gato, a bicicleta, o tractor agrícola e a retroescavadora. Nem aqueles senhores do IKEA conseguiram levar a coisa tão longe. E esses, ao menos, têm a desculpa de que os sacos servem para enfiar lá dentro camas, armários roupeiros, cozinhas e casas de banho completas. 


Momentinho louro

Pediu-me ela que gravasse um vídeo a dizer umas palavras à filha, que faz 15 anos daqui a dias. Na América do Sul, os quinze anos são A data. Tem até um nome próprio: a Quinceanera. É um marco muito importante na vida das raparigas. Disse-lhe imediatamente que sim, e que tenciono gravá-lo num telemóvel que, apesar de ter uma imagem menos definida do que a de chico-smart, permite gravações com mais do que 30 segundos (don't ask, nunca consegui alterar essa definição em chico e, no entanto, somos felizes assim).

- Depois o meu irmão edita os filmes todos que eu receber e cola-os uns aos outros. Ele só pede é que usem o telemóvel deitado — continuou ela.

[Parou-me a boneca. Fiz uma imagem mental completamente absurda. O telemóvel pousado numa mesa, e eu a falar.]

- Mas qual é o interesse de aparecermos todos vistos de baixo para cima? 

[Parou-lhe a ela a boneca. Esbugalhou-me os olhos. E eu expliquei o meu ponto de vista. Ponto de vista, literalmente:]

- Assim, só se vêem queixos e narinas, qual é o gozo?

Era deitado — na horizontal. Plano de filmagem horizontal.
Deitado. 

Imagem gamada da netty, que eu não frequento estas pradarias montanhosas, nem tenho unhas para tocar guitarra


19/10/2015

Um post sobre sapatos, porém chatos

Já o disse, por bastas, que tenho o pé chato. Até acrescentei a piadinha inclusa por mim, de que esta é a única coisa chata que tenho, ao longo de todo o meu fisiopsico. Ora, a boazona da Primark* deu em mandar fabricar sapatos especiais pé chato, embora não seja isso que está anunciado no expositor. Também, era chato.


E um dia chega o dia em que, apesar de seres amantíssima do salto alto, já te dói a alma ao fim de umas horas em cima do dito. E eu até posso aguentar-me bem à bronca, mas a idade também já me pesa, não sei se me estão a acompanhar o raciocínio. Eu vou mais devagar, em sendo preciso e, mesmo não sendo, vou na mesma. 
Vai disto, comprei uns sapatos mais cómodos. Mais feios, é certo, mas que não me chateiam, nem os pés, nem a cabeça, nem nada do que fica de permeio. 
Pus-me na Primark colombiana à caça do n.º 37, porque, pese embora calce 36, já dei para esse peditório de esperar que os sapatos dêem de si. Eles nunca dão nada deles, só o meu pé dá, dá, dá, e nunca recebe nada em troca, parece eu. Então, se forem sapatos de imitação de pele, é certinho que quem dá é o chato, coitado, e o raio do barato fica impecável na sua dureza e crueldade. Nessa Primark, havia o 36 — que serviu, como uma luva de boxe — e o 38 — que chinelou como uma havaiana. Então pus-me na dolce Primark e só encontrei os números 39 e 41. (Olha que bela porra que deve ser calçar 41 e ter o pé chato. Nem a traveca de Almada.) Palavra que exclamei, sempre oportuna e um nico erudita: "Pxá vida, tenho cá uma malapata!" (a sério: mala pata. Explico?). Depois um jovem tirou-me do desassossego porque foi "ao armazém" buscar-me os 37. 


Vou para a caixa pagar, peço à funcionária uma tesoura para cortar as etiquetas e calçar imediatamente os meus novos meninos, e vai ela assim para mim: 
- Nós aqui não possuímos tesouras.
[Eu desconfio que hoje estava nos cascos, porque fiz uma imagem mental incrível com o verbo possuir.]
- Não tem uma tesoura para eu cortar as etiquetas?
- Não, só passando a zona do segurança.
[Ó pá, eu sou totalmente hi-hón quando não me explicam estas minudências com os tintins todos, capaz até de pedir que me façam o design da coisa.]
- Como assim? Ao pé do segurança há alguma zona onde possuem tesouras?
- Não, não. Para lá do segurança. Fora da loja. 
Olha que parva. Entendi aquilo como uma ordem, mas também não me fiquei. Logo ali ao lado das caixas, estava o expositor dos estojos de unhas, com umas tesourinhas bem maneiras. 
Pronto, possuí uma tesoura, cortei as etiquetas, calcei os bebés, e passei a zona do segurança, senão fermosa, olha, azar: segura, com toda a certeza.


*mais uma que não me paga para isto, e eu sempre a dar-lhe.

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 17

É que se dá o caso de me parecer que há recados em que é o cosmos a falar-me.

Num Dolce Vita que não é lá muito perto de mim
E até me apetece dar logo ali um pezinho de dança [e cagari se está alguém a ver. Capaz de até se babar].
De laranja — confere. O meu creme é ao que cheira. Não vou aqui dizer a marca, que ando farta de fazer publicidade e a Rituals* nem umas amostrinhas fora da validade me amanda.
Faz da vida uma festa — bom lema, não fosse directamente inspirado num jingle de um anúncio da Pepsi dos anos 80: Faz deste dia um dia de festa | Vem também | Faz da sede um sorriso | Prova a vida em cada Pepsi.
Com gás é que é mais difícil, que eu sou uma senhora e não faço essas coisas. Só por cima (e é cada um, que nem nas melhores tabernas da zona velha se apanha lá quem dê uns assim). 
Sabor a fruta? Ah, isso só me lembra a querida Dina. Nunca me canso do amor de água fresca dela. 

* Lá está. Mas ó: ninguém me paga para isto. Mesmo.

Não estou a aguentar este envelhecimento, mas ele está


A minha Bianca está cheia de peninhas brancas, e isto não é um pleonasmo. Ela é Bianca porque é namorada do passarinho Bernardo, como os dois ratinhos da Disney. Quando eles vieram cá para casa, a meu pedido e feita a minha vontade, assim na Terra, surgiram duas sugestões de nomes: Nemo e Dori (proposta da maioria esmagadora) e Bernardo e Bianca (proposta minha). Em defesa da minha dama — sob a forma de dois passarinhos —, argumentei que Nemo e Dori são nomes de peixes, e, portanto, a ponto de bater o martelo da carne em cima da bancada, qual tribunal do povo de génese anglo-saxónica, determinei que ficavam com nomes de ratos e dei por encerrada a sessão que eu própria havia aberto. E não houve apelo nem agravo, que são, conforme toda a gente que já passou por esse crivo sabe, as duas formas de recurso que os nossos tribunais, também do povo, mas já de génese com a mania que é francesa, mas é tipo romana, admitem. Além disso, prevaleceu a vontade de quem cuida, que sou eu, que isto de parir é dor, mas criar é amor, que é o que os meus passarinhos levam em barda todos os dias, ou não fossem eles meus. Mas anda a custar-me o envelhecimento não precoce da minha Bianca. Percebo agora que me foi vendida uma passarinha mais velha do que o macho, ou então, a questão do género, que determina um desgaste muito maior, só com as ralações que a vida nos dá (casa, filhos, patrão e saltos altos), originou que a bichinha envelhecesse mais depressa do que ele. No entanto, eles dão-se que nem Deus e os anjos, ou melhor ainda, porque acho que Deus nunca namorou com anjo nenhum, e consta que eles não têm sexo, o que dificulta um bocadinho que pudesse existir um romance carnal entre eles. Na realidade, dão-se como dois amigos, namorados, amantes de longa data, profundamente apaixonados um pelo outro. Simplesmente, dá-se o caso de ela ser mais velha do que ele. A minha Bianca é uma cougar, uma "puma", mas o Bernardo adora-a e eu acho isso tão bonito.
Espero, fervorosamente, que ela não me-lhe-nos morra.




18/10/2015

Dias de alma vaga

Finalmente, ao fim de cinco semanas de EM MANUTENÇÃO, apareceu arranjado o duche de deficientes do ginásio. Nestas cinco semanas, não só me apeteceu ir ao balcão explicar que todo o ginásio estaria impedido de funcionar enquanto não houvesse duche de deficientes, como também tive que tomar banho num cubículo do tamanho de uma cabine telefónica dos anos 70 do século passado — e é por isso que digo que o Houdini era um badocha espaçoso ao pé de mim: conseguir processar uma higiene mínima num mínimo espaço de 50 x 70 (por alto, tá?), é, no mínimo, de contorcionista teimosa da limpeza, quase um transtorno obsessivo compulsivo, mas também de destemida do germe e da venérea, uma vez que aquele espacinho quase nos força a deixar a porta e as paredes esfregadas pelo nosso próprio rabo. Ainda bem que não tenho claustrofobia.
Ao contrário, o duche de deficientes é espaçoso e tem um telefone de duche dirigível, com bicha (de metal, e heterossexual, tanto quanto sei). 
Não sendo, como é, exclusivo para deficientes, e sim prioritário, nunca se me pôs o problema de consciência por utilizá-lo, uma vez que, de todas as vezes que o fiz, verifiquei se não estava ninguém com alguma incapacidade, à espera de tomar banho. Porque, conforme toda a gente sabe, aquele equipamento serve para ser utilizado por todas as pessoas que estejam com a sua mobilidade reduzida, seja temporária, seja permanentemente. Todos nós, nalgum momento das nossas vidas, somos deficientes: por estarmos mais incapazes, mais fragilizados, com um pé partido ou outra dor que nos reduza ou limite o gozo pleno desta coisa maravilhosa que é a vida.
Hoje voltei a usar o duche de deficientes, por todos os motivos que eu cá sei.