15/11/2024

L’enfer

Existe qualquer elemento na estação de Correios da área da minha residência — pode ser o ar que lá se respira, misto de cartão, electricidade e cabelos —, que me transforma num monstro. É raríssima a vez que lá vou, não por vergonha da cena anterior, mas por saber que me vou irritar, abrir as goelas e partir a loiça toda (não literalmente, já que ali praticamente nada é de porcelana). (Há uma mulher assim no Continente, mas essa é maluca.)

Um destes dias, quis o Cão que eu tivesse ido lá deixar um envelope do meu microscópico negócio on-line. Entrei, entreguei, paguei e sumi-me. Nem parecia eu. Passada uma semana, a destinatária avisou-me que a pequena encomenda ainda não chegara. Pedi-lhe que esperássemos mais uma semana, e assim fizemos. O pacote (olarilolé, olarilolé, bailar assim sabe tão bem) não chegou, cá me meti na chanata e ala para a estação. Lá chegada, verifico que tenho cerca de vinte pessoas à frente e aquele odor a Correios tomou conta do meu nariz, das minhas unhas, dos meus dentes, dos meus cotovelos, mãos e pés. Chega uma chica, pergunta a Paula, aquela funcionária com quem já me alterquei milhares de biliões de vezes, se pode fazer só uma perguntinha, e fica lá. Ao cabo de cinco minutos, avisei a que estava ao meu lado, já divertidíssima com os meus comentários, que ia largar a bomboca, para depois ficar a ver o circo a arder. Perguntei então de que tamanho era a pergunta da freguesa, tão demorada, que me respondeu que tinha ali hora marcada. Ia falecendo a rir com a resposta absurda da criatura, mas o resto do povo ficou a pontos de linchar a mulher, que nem oportunidade de argumentar com ela me deu. Cambada de chatos, nunca dizem nada, tem sempre que ser aqui a pioneira que toma as rédeas de tudo (eu nessa casa, tudo eu). 

A funcionária que me atendeu disse que eu podia escrever uma queixa no portal lá deles. 

Para me responderem o mesmo que a senhora me está a dizer?

Sim.

Ah, penso que vou declinar.

Hoje a que me fez a encomenda comunicou-me que a recebeu, vinte e três dias depois da expedição. Esteve sem saber da chave da caixa do correio uma semana e meia (ou terão sido duas e meia?). Apetece-me fazer agressivo uso das minhas unhas, dos meus dentes, dos meus cotovelos, mãos e pés.


06/11/2024

A gata e ele

O meu menino azul, de olhos copiados do meu pai —, mas grandes, grandes —, que me olham, agora já só de vez em quando com aquela luz de deslumbramento que era plena quando no berço, começou há um par de anos a sacudir as peninhas e a abri-las em ensaio de voo, coisa que percebo pela maior escassez dos abraços primeiros, que vinham sempre depois das minhas tempestades. Disse um dia, há muitos meses, que queria ir de Erasmus, e eu atónita, como se ele ainda estivesse dependente da minha opinião, autorização ou dores muito maiores, perguntei, nunca saberei se a brincar: “A mamã pode ir contigo?”. Também nunca saberei, talvez nem ele, da seriedade da resposta: “Podes.” 

“A gata vai morrer de saudades tuas.”

Agora prepara afincadamente a candidatura para um mestrado longe de mim o suficiente para que não possa amparar-lhe alguma queda, pois imagino que sente as asas fortes e a desnecessidade das minhas mãos. Longe de casa, longe da gata. Há pouco avisou-me que vai para ficar, porque aqui não há nada.

Deita-se na cama, acabado de chegar do treino, a gata corre-lhe para cima do peito, ele afaga-lhe o dorso e ela fica num transe amoroso, a olhá-lo nos olhos, enquanto ronrona. É a imagem dele, pequenino, deitado sobre mim em êxtase perante a perfeição que já perdi. Diz ele exactamente o que penso naquele instante: “Não sei o que será desta gata quando eu me for embora.”

A gata vai morrer de saudades dele.


04/11/2024

Rabos e caudas

Tens uma coisinha branca a sair do rabo, disse-me ela assim, pouco depois do início de uma aula de alongamentos — em que uma pessoa se torce e retorce no chão, levanta perna, abre pernas, faz espargata, vira-se de rabo para cima, fica de gatas, reza a Alá, mesmo que Meca não seja para aquele lado, o povo do stretching é uma bússola, vira a raba para onde lhe dá na cabeça. Do rabo? Mas o quê? Pensava eu já que era o que realmente era, um bocado de papel higiénico, só não estava a perceber como é que tinha ido ali parar. Sobretudo, queria retirar a cauda, mas, por cambalhotas (metáfora) que desse, não a encontrava. 

A partir daí, passámos as duas a aula a rir, ela de gozo e eu de nervos, ou talvez ao contrário — visto que ela via e eu só imaginava —, muito em particular quando era suposto adoptarmos posições que envolvessem decúbito ventral. Eu vestia uma saia de paddle, que dão um jeitaço para uma pessoa se mexer à vontade, sobretudo na dança, pois têm uma cueca incorporada, esticam até caberem lá duas dentro e são de um conforto absurdo. Além disso, no meu caso em particular, não permitem que desidrate/ desmaie logo ao início da aula, pois, por conta e risco do anti-ressidivas, transpiro como um pugilista, salta-me água de todos os recantos da cabeça, braços e pernas (o resto está tapado, mas a m. é a mesma), se espirrar ou rebentar em águas ninguém dá por nada. Uma tristeza. Vejo-me obrigada a beber um litro de água durante uma aula de quarenta e cinco minutos, quando não logo a seguir mais meio litro, pois saio aos ziguezagues. Mas é preciso, como navegar. E viver também é preciso.

O assunto resolveu-se nos momentos finais da aula, quando era suposto fazermos a posição "happy baby" e eu decidi que dali não passava. Pés para cima, arranquei a fralda. 

Sou uma vítima de mim mesma. Isto explica-se assim: entre duas aulas, fui fazer chichi, mas forrei a sanita (farta de agachamentos ando eu, que aquilo queima as pernas e dói). Limpei-me como sempre, com uma toalhita, deixei-a no depósito próprio e segui caminho. Já de cauda a abanar, pelos vistos. A tal coisinha branca estava apenas presa no elástico da cueca. Podia ter sido uma vergonha inesquecível, se não tivesse sido comigo. Mas ainda fui contar ao professor e rimos até às lágrimas a propósito disso.