28/05/2022

Sabichona

Naquele dia, que verdadeiramente não interessa para aqui qual foi, dirigi-me ao balcão de levantamento de exames médicos de um dos hospitais de Lisboa onde é praticamente imperioso que se deixe um órgão qualquer à nossa escolha para que seja possível liquidar uma factura. 

A jovem criança que me atendeu, pestanas muitíssimo postiças, cabelo apanhado num rabo-de-cavalo extremamente repuxado, farda impecável, responde-me, após consulta do oráculo computorizado onde haveriam de constar quase todos os meus passos do último meio ano: “Não tenho cá nada”. Pacientemente, expliquei-lhe que não se deve usar secador no cabelo das bonecas seria operada no dia seguinte, pelo que um electrocardiograma e um RX de tórax são fundamentais para que a cirurgia possa ter lugar. E diz-me a bebé, de repente médica por osmose, do alto da sua científica sabedoria: “Mas não é por a senhora não ter o resultado desses dois exames que vai deixar de ser operada amanhã”. Tive uma pequena taquicardia, respirei um bocadinho fundo, equacionei dar-lhe uma palmada no rabo, mas apenas esclareci: “Uma cirurgia com anestesia geral requer que se façam esses dois exames, para que o anestesista saiba em que estado está o nosso coração e os nossos pulmões. Sem eles, nem o cirurgião pode operar, nem eu me deixo operar. Repare, se eu morrer a meio da operação porque não toparam com uma insuficiência cardíaca, dado que não tinham o resultado dos meus exames, a culpa morrerá comigo, mas solteira, pois ninguém saberá que este diálogo aconteceu”. 

Acho que a baralhei. As pestanas postiças abriram em leque, pareciam uns pavõezinhos, quando me despachou para a colega — “A senhora vá ali ao balcão do internamento, pode ser que lá consigam [percebê-la] esclarecê-la” —, onde, simplesmente, no mesmo oráculo que a petiza consultara, constavam os meus exames, que a colega imprimiu e me entregou. Isto levou cerca de dois minutos, vá, dois minutos e trinta e nove segundos.



18/05/2022

Ultimamente endureci

Entrei no gabinete e toda eu era sombras e tempestades: sentei-me sem convicção, os ombros denunciando desalento, um pequeníssimo suspiro imperceptível, ou, melhor dizendo, talvez o mundo inteiro tenha ouvido, pois a médica perguntou-me por que é que estava tão desanimada, se dias antes havíamos falado pelo telefone e eu era a personificação do optimismo. Falei-lhe do tempo, das nuvens, do quão isso influencia o meu estado de espírito, depois, perante a descrença dela, que podiam ser efeitos químicos, por fim ainda tentei a desculpa das hormonas, até que confessei num fio de voz, os olhos pregados no chão por uma culpa e um medo que me esmagavam sem piedade — imerecida —, que, na sala de espera, tinha estado perto de mim uma senhora da minha idade, a barriga enorme semelhante à de uma gestação de seis meses, um gemido baixinho e contínuo, e não fui eu — porque endureci ultimamente — que lhe perguntei se precisava de ajuda, como faria sem hesitar noutros tempos que sei lá se voltam, foi outra senhora que também ali estava e, certamente, feita de massa melhor do que a minha. Ela que não, que a enfermeira já vinha, até que lhe percebi o corpo inteiro a sacudir-se, eram soluços como os de uma criança magoada, Tenho dores, e eu, endurecida, saí dali para fora quando vi chegar duas médicas e a mim me chegavam, cobardes, duas míseras — miseráveis — lágrimas aos olhos, duras como pedras.


15/05/2022

Há quem não dialogue comigo

Creio que estou a desenvolver a arte, com bastante perícia e minúcia, do monólogo. Estou demasiadas horas sozinha em casa, já que não posso fazer sequer as bem fadadas caminhadas (unhas dos pés ainda em processo de descolagem, qual avião com asas). Falo com as gatas, rabujo com os objectos, enfim, atingi o ponto da velha tonta, que era suposto chegar daqui a umas (poucas!) décadas.

Chegara eu à caixa do supermercado, pusera meus quase haveres na passadeira rolante, em primeiras uma palete de leite com seis litros dele, em segundas um outro bagulho qualquer, creio que um quilo de sal grosso, que preciso de tingir umas calças encarnadas de encarnado (porque um dia tinha uma nódoa que esfreguei tão bem que lhes arranquei a tinta, e, vá, a p. da nódoa também), e o tingimento envolve sal grosso, de contrário não o adquiriria, que a gente só usa flor de sal cá no lar, somos um jardim salgado, mui finos.

Vai a pessoa que me calha na rifa registar os meus coisos, o leite, o sal, e nisto reparo que o meu total já vai em 31 paus e uns cêntimos, e é quando me saltam os dois olhos das órbitas na direcção do ecrãzinho e me apercebo que a palete do leite foi registada como se custasse 30 dele. Olha, queres ver que me enganei e trouxe leite de chinchila? Ou será que fui catapultada para 2099 e isto é o preço normal do leitinho? Ah, já sei: isto é para “Os apanhados”. Vou dialogar.

- Olhe, desculpe, por que é que me registou o leite por 30 euros?

- …

- Já sei: tem ouro na sua composição. 

- …

- Sou menina para me engasgar se der um gole num leite desse preço.

- …

- Ou então, se calhar desisto do leite e passamos a pôr água da torneira nos cereais lá em casa.

A muda desregistou o leite sem uma palavra, nem desculpe, nem enganei-me, e voltou a registar, desta vez por 5 euros. Ou seja, minha iluminada passou o código de barras da palete e depois multiplicou por seis, que eu ainda sei a tabuada. Tão comunicativa, até me deu vontade de ir buscar mais cinco paletes, já que me tinha mentalizado em despender 30 mocas em leite, não fora depois ter que os alombar até ao cume da montanha onde vivo (um segundo andar com elevadores).


04/05/2022

Sombras

Saí do elevador em direcção ao parque de estacionamento subterrâneo, só tinha descido um andar, mas eu agora posso, deixou de me apetecer fazer o exercício mental de descer um lance de escadas, e vi-o a alguma distância, parado no meio da faixa, uma chave de carro na mão, um papelinho na outra, triste, só e abandonado. Não percebi, no primeiro relance, se teria algum atraso, demência ou — claro que a vaidade do meu vestido roxo me fez ponderar, apesar dos evidentes sinais de quimioterapia que carrego — algum tarado daqueles que vão para a via pública com conversa da treta só para poderem meter-se com mulheres. Procurei desviar-me, mas ele há coisas. Quis fugir-lhe, é verdade, estou farta que me magoem, me piquem, me dêem coisas a tomar que me adormecem, não a dor, mas toda eu, e vinha de mais um hospital, por isso achei que podia.

Preciso de ajuda, disse-me ele. E era uma criança, afinal, olhos, lábios, ombros e barriga descaídos, o corpo todo desistido, o olhar embaciado de vidro martelado molhado, os cantos da boca a tremer para baixo, fez-me lembrar eu quando a minha mãe me deixava no jardim de infância, ou demorava a chegar, ou alguém me fazia mal — o que, segundo os meus cânones de migalhinha frágil, era todos os dias —, que perdia o controle da musculatura dos cantos da boca e, não querendo chorar (não sei se por valentia ou por cobardia), ficava para ali naquele tremor denunciante, assim como este homem. 

Não consigo encontrar o carro da minha filha, suplicou então. A chave que trazia na mão era o comando de um carro, o papelinho que tinha na outra, um bilhete de entrada no parque, com a data, a hora, a matrícula e mais um ou dois pormenores que não ajudavam grande coisa para a agora nossa busca. 

Qual é o carro da filha do senhor? — Eu, na esperança de que ele me dissesse “um carocha encarnado”, mas claro que recebi em troca “um Citroën cinzento”, oh Cristo, para pessoas como eu, Citroën cinzento são todos os carros, desconfio mesmo que cá em casa temos três Citroëns cinzentos, esta resposta, dada a outra qualquer, ainda dava pano para mangas, “um C3, ou assim?”, comigo não, os carros são todos iguais, com ligeiras nuances, mas vai de não desistir: peguei no comando do senhor, que é como quem diz, tomei o comando da operação, apontei para o fundo do parque, premi o botão de abertura das portas, mas nada. Tentei com o do fecho das portas, o mesmo insucesso. O botão do meio tinha um símbolo com um farol desenhado,  tentei esse e bingo, o carro iluminou-se a seis metros de nós. 

Não vi o homem ficar alegre, aliviado, agradecido, ou expressar qualquer emoção. Era só eu, quando me passava o tremor dos cantos da boca porque já não me doía nada. 

(Já faltou mais para que um destes dias também ninguém mais me magoe, me pique ou me dê coisas que me adormecem, toda eu.)