31/08/2021

A mulher que podia ser minha mãe

disse-me, do alto da sua sétima década, cabelo negro asa-de-corvo, que nunca perguntei se pintado, porque evito as retóricas e existem indelicadezas que ainda não cometo,

Como é que pensa que eu tenho este cabelo lindo e brilhante?

[Eu, que não pensei, ponho-me, agora sim, a cogitar que talvez vá dizer-me a marca da tinta, pode ser que me revele o nome do alquimista, quem sabe um truque caseiro, um ovo esmagado no cocuruto, um chá fervido — e logo arrefecido, digo eu — esfregado na raiz, pensamentos meus bailando bachata, enquanto ela sorve a minha expectativa.]

Porque tomo todos os dias ácido hialurónico pela boca.



27/08/2021

United Colors

Ando a sentir-me posta à margem, de lado, ou de parte, escolhei: está agendada uma actividade muito gira, lá nas aulas de dança que frequento — cada vez com menos gás (não metano) —, à qual não comparecerei, e porquê? Porque não quero. Só que sinto esta exclusão: todas muito excitadas, a pagarem um pequeno balúrdio por uma t-shirt que nunca voltarão a usar, eu de mona à banda, só à espera que o momento publicitário acabe o mais rapidamente possível — o instrutor reza sempre a mesma missa antes, a meio — no meio do nada — e no fim de cada aula, que vai ser muito giro, que nos outros anos foi muito bom, mas

mas que vamos sair de lá muito sujas, e isso, para mim, é o turn off, é o gatilho para acabar de vez com a minha vontade de festa. A actividade envolve tintas em pó, uma espécie de Color Run, mas a dançar, I am sorry mas perdi a pica só de me imaginar toda cagada de verde e amarelo a entrar em Rosinha, minha canoa, e depois a deixar um rasto colorido até à minha porta, fora o banho com palha de aço a que teria que me sujeitar ao fim de um dia de estafadeira a chacoalhar o quadril. Já não há cu.


26/08/2021

A mim dá-me revolta

fazer uma compra e ter que pagar a embalagem/ saco/ envelope (caso dos da farmácia), mesmo que de papel, ou melhor, na hipótese de os trazer comigo, ter que esse coisinho fazer parte da minha conta, "porque eles agora exigem". Por eles entenda-se a boa da ASAE.

Até parece que as embalagens não fizeram sempre parte do preço dos artigos. Só quem não faz compras regularmente é que não sabe que uma lata de salsichas custa menos do que um frasco cheio delas com o mesmo peso. E que, por exemplo, se a compra for de uma peça de roupa, a porra do saco já estava mais que incluída no preço da compra. Não será uma ingenuidade acharmos que o retalhista paga as embalagens que fornece, e não é sobre a cabeça do consumidor final que rebenta sempre a bomboka?

Ou seja, agora pagamos o saco duas vezes: uma, no preço do artigo, a outra sobre a conta final. Parecem os idos tempos em que eclodiu o IVA, e em que chegávamos ao balcão e nos acrescentavam o valor do imposto. E até sabíamos que esse valor já estava contemplado no preço final, só que o acrescentavam de novo aquando do pagamento. Ou seja, pagávamos (X + 23%) + 23%. 

Assim como agora pagamos (X — sendo que X = dobro do preço que o comerciante pagou ao fabricante — + 23% + € 0,5) + 23% + € 0,5. Uma merda cujo "valor" começou em 5, é vendida por 10 + 2,3 + 2,3 + 0,5 + 0,5, ou seja, por 15,6.

(Aquela indelével e insondável sensação de que este raciocínio pode estar inquinado.)

Gatunos.

Hoje comprei uma peça de roupa. A funcionária — que já estava azeda comigo desde que entrei na loja, oh, karma! — perguntou-me se era para oferta, disse-lhe que sim, então questionou se queria um saco,

Não, se tiver que o pagar. Qual é a alternativa que tenho?

Uma caixa. São 35 cêntimos.

E que alternativa tenho eu, se não quiser pagar a caixa?

Temos sacos por 25 cêntimos e sacos por 50 cêntimos.

E, caso não queira levar nenhum dos três, levo a camisa debaixo do braço?

[Sobrancelhas olimpicamente elevadas até à raiz do cabelo.]

Saí da loja com a caixa na mão. Como se a loja não tivesse todo o interesse em que eu andasse pelo shopping a pavonear a marca. Deviam pagar-me para isso, isso sim.

O senhor da farmácia contou-me que os sacos/ envelopes que distribuem pelos clientes com os medicamentos/ cremes/ chuchas e outros artigos de diversão, lhes são oferecidos, mas têm que, obrigatoriamente, por lei, cobrar um cêntimo por cada um. Por uma questão de princípio, saí de lá com a escova de dentes e as hormonas na mão, pois não cabiam na minúscula malinha que agora uso.

(Para combater o desperdício, dizem eles. Qual desperdício, se até a medida de proibir os sacos de plástico, que havia de ter entrado em vigor no dia 1 de Julho já ficou em stand by?)


24/08/2021

Runnin’ With the Devil

(Título só para chamar as freguesas. Já lereis porquê.)

Numa matemática muito de cabeça, não de, mas com vento — sobretudo neste Verão, que se tem revelado  ciclónico! —, algo ponta do lápis, se aqui a Obikwela albina correr mil metros por dia, todos os santos, ao fim de um mês terá corrido trinta — ou trinta e um, ou ainda vinte e oito, tudo dependendo de em que mês se encontra — quilómetros no final de cada mês, certo?

Isto vem a propósito de no domingo ter ido dar uma sprintada pelas vielas, becos, ruas e avenidas, ter levado uma hora para percorrer seis quilómetros e meio, e ter chegado com a língua nos pés, que só mesmo se me tivesse sido dada oportunidade de fazer uma birra daquelas de punhos e pés no chão, é que teria encontrado algum alívio. Se AC (antes do covid) já fazia sete quilómetros sem um esforço de registo, DC (deduz-se) chego ao terceiro quilómetro e já me custa um horror carregar os cornos. (E chiu, cansei da frase “É uma recuperação muito lenta”. Tenho uma amiga que, rigorosamente todos os dias, me enviou, enquanto internada na “enfermaria das sugar babies” — nome pelo qual, obviamente, os médicos denominavam a enfermaria onde se encontrava aqui a boneca — uma mensagem com essa sentença). Mas vá que um dia volte aos sete semanais: são cerca de vinte e oito/ trinta por mês. Mais vale ir todos os dias, então. E, se me cansar muito, corro quinhentos metros de manhã e quinhentos à tarde. Ou duzentos metros cinco vezes por dia. Ou cem metros dez vezes por dia.

(Está a ir bem, minha matemática?)

Vai haver um dia em que corro dez metros, cem vezes por dia. No lar. (Nem preciso de me equipar.)

22/08/2021

Air-podes

Não sei se alguém, algum dia, alguma vez, se debruçou sobre a anatomia dos airpods, aquelas duas pecinhas semelhantes a aparelhos auditivos com cauda, que a Apple (ler áple) criou, para gáudio não sei de quem. A principal questão daquilo é exactamente a sua configuração, ou probabilidade de adaptação a todas as conchas (fui estudar, sim) de orelhas do planeta: aquela rigidez, tanto ao nível da cabeça como do cabo (antena?) serve para todo e qualquer buraco auricular, sendo certo que inclusive a mesma pessoa chega a ter dois canais diferentes (guilty!)? Quanto aos outros, mantenho firme e hirta a minha ignorância, mas, quanto à minha pessoa, quanto a esta única que me pertence — euzinha —, cada orifício é um orifício, e as entradas das minhas orelhas, apesar de detentoras de uma beleza irracional, são subtilmente diferentes uma da outra: tudo o que é auricular tem melhor adaptação num lado do que no outro, e isto referindo-me àqueles ditos normais, que vêm munidos de uma esponjinha, ou então de uma borrachinha. Há sempre um que salta fora mais vezes do que o outro, e, ora, assumindo que as peças são iguais (ou "em espelho"), só pode ser o desenho das minhas orelhas que é desigual.

Ainda não falei sobre o preço dos airpods, pois não? Também não vou falar.

Digamos que entendi necessitar de um par deles e me calhou em caminho, em passeio pelo bairro, o estabelecimento comercial de um senhor vindo lá da terra das especiarias, e então, porque sou amiga do incentivo ao comércio local, e ele havia exposto na montra uns airpods iguaizinhos aos da Apple, tomei a decisão de entrar. Travámos um curto e ininteligível diálogo — o homem só fala Inglês, mas dá-se que não entende uma palavra do que se lhe responde. Ora, o meu Inglês é parco, mas porra, desde que não pontilhado de "porras", entende-se perfeitamente —, que terminou numa espécie de linguajar gestual da minha parte, e então lá carreguei comigo uns airpods completamente iguais aos originais, por cerca de um sexto do preço dos ditos.

E eu feliz.

E sim, também se confirma: um deles salta-me da orelha mais vezes do que o outro.

E não, o comportamento não é igual ao dos da marca. Mas o que é que isso interessa? O que é que interessa, realmente, que uma gaja me grite aos ouvidos “connected" cada vez que os ligo a Ai-fostes? E que me avise, dois tons acima do aceitável para pessoas educadas, “R off”, a cada cinco minutos de audição? Quer dizer, acho que é o que ela diz, pois, na verdade, o que se ouve é: "Arr off". E também piscam luzinhas em azul e em vermelho, ora um, ora o outro, num majestoso pisca-pisca de dar gosto ao olho.

Olhem, se não servirem para mais nada, são umas razoáveis cotonetes: sai de lá cera suficiente para fazer uma vela de baptizado, nem se percebe como. Capaz de ter encontrado ali um nicho.



18/08/2021

Sorrir e acenar

Aqui o ser vivo a acercar-se do edifício do ginásio — voltei a dançar, após pausa de quase um mês. Zero entusiasmo, pareço sinto-me sou uma esfregona —, e surge, na direcção oposta, alguém pertencente ao sexo masculino, de calças de fato de treino, t-shirt, chinelos de praia e capacete de protecção. Virou o dito na minha direcção e acenou entusiasticamente. E digamos que devolvi o cumprimento — após olhar à volta e verificar que não se encontrava por ali mais nenhuma alma viva para quem o esbracejar se dirigia —, embora desconhecesse profundamente de quem se tratava.

E isto acontece-me recorrentemente: alguém me acena/ deseja “bom dia” na rua. E retribuo. Tudo isto, porquê?

1. Porque temo que seja alguém que eu conheça e passe por mal educada/ distraída/ chalupa;

2. Porque temo que seja alguém que está a confundir-me com outro alguém, e que esse outro alguém passe por mal educada/ distraída/ chalupa;

3. Porque temo que seja alguém que está convencido de que eu sou uma estrela de cinema e, antes que venha pedir-me um autógrafo, já vou acenando um adeusinho;

4. Porque temo que seja efectivamente alguém que não me conhece, mas que se convença que eu sou convencida, perante a ausência de resposta gestual da minha parte;

5. Porque temo que seja algum serial killer que esteja apenas a efectuar a primeira abordagem pré-homicídio, e que, se eu for simpaticazinha, até me poupe o coiro;

6. Porque temo que seja alguém que vem pedir-me dinheiro emprestado e tenha que responder-lhe um clássico muito meu: “Não posso, também estou a precisar”;

7. Porque temo que seja alguém que vem pedir-me indicações de trânsito, quando eu nem o nome da perpendicular à minha rua sei, e estou no mesmo lar há vinte e oito anos;

8. Porque temo que seja algum tarado que venha oferecer-se para me fornecer três segundos de felicidade pura;

9. Porque temo que seja alguém que pense que eu posso oferecer-lhe três segundos de felicidade pura, a troco de dinheiro;

10. Porque temo que seja um chato que quer vender-me a banha da cobra/ a própria mãe/ o Mosteiro dos Jerónimos/ cogumelos alucinogénicos e eu não tenha como dizer que não porque estou num dia de acéfala.

Por acaso, uma boa parte destes temores todos não são bem verdade. Mas dez itens compõem melhor o ramalhete.

Adeusinho (com aceno).



15/08/2021

Está aí alguém?

Era só para fazer uma pergunta.

(Isto carece de contexto.)

Quando me foi retirado o aparelho da dentadura, ao fim de dezasseis meses de me ter sido colocado (dizem as vozes da teoria da conspiração, em uníssono com as minhas vozes interiores — que me gritam —, que eu não precisava dele. Precisava, riposto eu, quanto mais não fosse em termos psíquicos, que, nesta área das faneras, é o que mais tem relevância), foi-me feita moldadura para um outro, chamado De Contenção (do mais chique que há, De Almoronha e Menezes), para usar durante a noite, e não permitir que todo aquele trabalho ortodôntico voltasse atrás. Como se.

Para encurtar conversas, digamos que já parti três aparelhos de contenção, uma vez que hei-de possuir uma mordida de pitbull ou de, sei lá, crocodilo. O terceiro dos ditos até já foi feito com "um material mais resistente", afiançaram-me o dentista dos olhos bonitos e Sónia, a implacável aspiradora de amígdalas. Mais resistente, julgo que se referiam à dentada aqui da bruta, que, durante o sono, deve transformar-se no Raivoso e vai tudo a eito. Folgo em já não chupar no dedo (vá, e poupem-me a pensamentos pecaminosos e castrantes), caso contrário estaria amputada de ambos os polegarzinhos, ou, quiçá, de todos os dez desgraçados. Capaz de, a seguir, ter que ponderar iniciar a carnificina nos pés.

(Mais um parêntesis para revelar ao mundo que, aquando da minha hospitalização, uma bela manhã levaram-me a ortodôncia com o lixo do pequeno-almoço, pelo que me vi obrigada a armar a p. e a declarar que "o aparelho tem que aparecer porque eu paguei [não interessa] euros por ele, olhem, vasculhem no lixo", e não é que foi mesmo no lixo de todas as enfermarias que foram dar com o meu lindinho? Vá que não calhou ter sido no lixo das arrastadeiras. Ou tal não me foi revelado, para me evitarem mais picos de tensão.)

Não sei. Não percebo o que se passa entre mim e os De Contenção. Posso afiançar que o material que o dentista usa é de primeira qualidade, por uma questão de lógica. (Sei lá qual.) Reconheço que, pela manhã, me aflige tirar aquilo dos dentes, porque tenho medo de estragar as unhas, e então posso estar a fazer força no lado errado da coisa. Admito que a cena me enoja de tal maneira, que a mergulho em elixir durante horas, após escovagem exaustiva e meticulosa, o que pode ser corrosivo ou desgastante para o acrílico da peça. Ultimamente, acho-o esverdeado, mas acho que é derivados à cor do elixir. Ou será verdete?

A pergunta para Roquefort é: o que é que estou a fazer de tão errado no uso da pulaka?

Linda Blue, a caminho do quarto aparelho De Contenção. And counting byting. 




12/08/2021

And that awkward moment # 64

em que adquires um vestido numa loja online — silêncio. É lindo. Vai ficar-me épica, estúpida e estonteantemente a matar e vai fazer de mim a mulher mais enigmática do meu bairro da minha rua do meu prédio do mundo em que eu existo —, entras em negociações com quem está do lado de lá do ciberespaço acerca do tamanho, a saia do vestido é acima do joelho, mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, também não queres tudo à vela que nem possas sentar-te à frente de pessoas em paz, qualquer centímetro conta em se tratando da altura de uma saia, sempre a dúvida existencial entre o S e o M, então envias as tuas medidas, e de lá profeciam-te o S, mas tu ai que não, veja lá se não fica demasiado curto, eu meço 1,68 metros do cucuruto até às plantas, e diz quem responde às tuas angústias:

Não fica demasiado curto, a modelo tem 1,64 m.

Quatro

centímetros

na altura

de uma saia.

...

Quarenta milímetros. 

...

Mandei vir o M.



11/08/2021

Esta praia tem ursos *


Imagina o que será estares na praia e aparecer lá um urso. Polar. Ao menos que fosse pardo. Ou panda, por Deus.

Já assisti, nesta longa e surpreendente vida que já vivi, a fenómenos vários, desde o dar à costa do cadáver de uma tartaruga gigante, até à passagem de três golfinhos, em que a parte melhor do inesperado “espectáculo” foi mesmo ver milhares de pessoas porem-se de pé, e, em uníssono, deslargarmos um “oooooh”, parecia um flash mob, ou uma cena do Sequim  d’Ouro. Também assisti uma vez ao desmaio de uma senhora que resolveu ir espreitar um corpo que tinha dado à costa após uma semana de desaparecimento. [Rolling eyes para ela, de cada vez que penso nisso.]

Agora, um urso, foi a primeira vez.

Assim desconfiada — não posso dizer que a medo —, já que o bicho se movia discretamente de vez em quando, primeiro a uma distância segura — não fosse encrençar comigo e sei lá —, assomei-me, e imagina, numa praia relativamente apinhada de gentes, então não é que o teddy dá em acenar-me? Foi o início de uma profícua, porém breve, amizade. Aproximei-me, confiançuda, e diz-me o animal assim: “Queres tirar uma fotografia comigo?”, eu ai é claro, vai de colocar-me diante dele, os dois de braços abertos, e clic.

A seguir, de forma dramaticamente inesperada, a nossa tenra amizade derivou para o campo do oportunismo, quando ele me diz assim: “Agora vai buscar um euro para me dares”.  Pronto. Mais uma relação sem futuro destruída. Eu a afastar-me, acenando adeusinho, ele, “um euro, um euro, um euro”, parecia o outro maluco.

* inspirado aqui.

09/08/2021

Um membro da família

A primeira vez que a vi, apercebi-me de que algo se passava — ou não — com as patas de trás, misturadas numa confusão inerte com a cauda. Depois confirmei, quando a vi deslocar-se com a força das patas dianteiras, arrastando as traseiras e a cauda como se de um trio de serpentes mortas se tratasse. 

De resto, tudo normal: rosnando quando se sente ameaçada — vão lá entender-se os critérios dos gatos —, miando quando a intenção é comunicar com humanos. 

Conheci-lhe a dona uma destas manhãs, que se acercou, atenta à minha atenção, e me contou a história do pouco que sabe que aconteceu, num Português fluente cheio de sotaque do Leste da nossa Europa: foi à terra dela para ser sujeita a uma cirurgia, a gata desapareceu durante uns dias e o marido foi encontrá-la quase morta, provavelmente atropelada. O veterinário queria eutanasiar, ela não permitiu. Revelou-me, olhos e boca de cantos a resvalarem para mais uma de outras lágrimas que já terá deixado cair, a opção, que percebi muito criticada: "Fica sendo o meu bebezinho de colo". E, afinal, nem tem sido bem assim, o animal desloca-se à mesma velocidade a que o faria se tivesse as quatro patas vivas. A convivência com os outros dois gatos da casa — uma criança vivaça e viçosa e um macho sobranceiro e soberano — é pacífica, não tem consciência da sua diferença, eventualmente não guarda memória do acidente, anulou a limitação por instinto e necessidade. Com toda a certeza, não vive de um passado que já não volta, nem se angustia com um futuro menos promissor. (A racionalidade pode ser o maior entrave para a felicidade.) É amada, está cuidada, o pelo brilha de saúde e até de alegria. Disse-lhe, "Ela é tão bonita", e agradeceu como se lhe tivesse elogiado uma filha. "É um membro da família". (Se é, só quem nunca amou um animal é que não entende o que disse esta mulher.)

É verdade que, quanto mais conheço as pessoas, mais gosto de animais. Não fui eu que inventei esta frase. Desta vez, também é verdade que, quanto mais conheço os animais, mais gosto das pessoas.




07/08/2021

Fim de tarde com o morto

Então, estou a chegar ao areal para cumprir o segundo turno do dia, e verifico que, no colmo destinado às pessoas com mobilidade reduzida, precisamente ao lado daquele que me calhou na rifa — e durante a manhã ocupado por três adultos e um bebé plus carrinho —, se encontra deitado um homem jovem, estático, tapado com uma toalha de praia, e com os óculos de sol colocados. Por constatação através de auto-análise e também por mo dizerem, sei que os meus raciocínios vão invariavelmente pelos caminhos mais abstrôncios, mas também tenho a declarar em minha defesa que — e repito — o senhor estava deitado à sombra do colmo destinado a pessoas com deficiência/ dificuldades várias. Por isso, o que é que eu pensei?

1. É paraplégico. [O homem não se mexia.]

2. É invisual. [Por causa dos óculos.]

3. É paraplégico e invisual. [Mas quem raio veio largar uma pessoa com este grau de deficiência à sombra de uma palhota com este calor?]

4. Está morto. 

5. Morreu agora mesmo?

6. Chamo o Salvadooooor, ou não merece a pena?

7. Morreu há horas e daqui a bocadinho cheira mal.

8. Chamo a Polícia Marítima ou deixo estar?

9. Trouxeram-no já morto e depositaram-no aqui.

10. Chamo a Polícia Judiciária?

Subitamente, ele moveu-se: um dedo de um dos pés denunciou-o vivo. Uma sereia cheia de pernas acercou-se dele e chamou-lhe “luz dos meus olhos”, oferecendo-lhe uma bola de Berlim e afagos vários, consolando-o de

ter sido

vacinado 

contra o vírus.

E estar dói-dói.

Reenfiei-me dentro do meu António, que há um ano carrego dentro do saco da praia — mais de um quilo de papel e penas —, e cuja leitura estou mesmo, mesmo a terminar (faltam umas penosas oitenta páginas, vá) — o que é bom, pois está a deprimir-me um nico, senão a tornar-me uma pessoa humana algo tétrica.

01/08/2021

Afinal, mudei de ideias: quero ir para o céu

Agosto, dia 1, no supermercado mais populoso de toda a zona Sul, depois de ter passado as passinhas da região onde me encontro — milhares de pessoas, corredores exíguos, desordem e desarrumação por todos os lados — para comprar meia dúzia de urgências (papel higiénico e pensos rápidos incluídos, que o pé aqui da princesa não se dá com areias grossas e já tem dói-dói), vejo um senhor que enfrentou a multidão de gentes de chinelos, besuntada e tatuada, “va avec maman!”, a massa humana rastejante e confusa, e até — last but not least — o vírus, para comprar…

… um pepino.

Um dia, quero ser assim. Até lá, sou apenas parte da tal massa — apesar de incomodada, deslocada, e até, que vergonha, com minúsculas lágrimas de raiva e pânico a encimar a máscara — de que tão longe me sinto.