Sei lá, achei este título giro. Parece de livro, contém mistério e atrai freguesia.
Isto vem ainda a propósito do meu euromilhões que, parecendo que não, é um assunto.
Existe uma papelaria, na minha área de residência, cujos donos, um casal do qual não sei definir a idade — têm a mesma desde que eu por cá moro, já passou de vinte anos, pelo que penso que são vampiros —, trabalham ao balcão, com a ajuda, creio que remunerada, de uma empregada, que, assim como eles, também nunca mudou de idade, ou seja, que tem iguais probabilidades de ser, também ela, uma vampira. (Espero que eles tenham exactamente a mesma opinião que eu tenho sobre eles acerca de mim.) O caso é mais grave no caso da rapariga (mulher?), tendo em conta que, nestes últimos vinte e picos anos, casou, teve uma filha, a filha cresceu, e ela sempre assim, azeda e fria, o que confere com algumas regras da conservação dos corpos, pelo menos quanto às baixas temperaturas, já não digo quanto à acidez. Em relação ao casal, vejo-os de meia idade há décadas, ele totalmente morto — vagaroso, lento, parado, surdo — à vista de toda a gente menos da mulher, que o trata por "ó amor", ou será só à minha vista e ele, afinal, não é um vampiro, ou há vampiros que morrem mesmo e mantêm-se por cá pela Terra, por cá pelo bairro? Ela, de uma antipatia comovente, estimulante, rejuvenescedora. (Pode ser por lá ir com alguma frequência lidar com a Antipática que eu própria me mantenho com a aparência de uma criança pequena.)
Portanto, de cada vez que vou registar o meu euromilhões, tenho o trio do Morto, da Antipática e da Azeda para enfrentar.
Dá-se que, na sexta-feira que passou, obtive um preminho no jogo. Escusais de vir cá com cunhas e gemidos, que já o gastei todo. Eu sou assim, esta mãos largas (e as costas também, mas para outras ocasiões), e acabo doando tudo o que possuo, ou quase tudo. Doo às lojas, doo aos romenos que me extorquem no parque de estacionamento, doo à EMEL, aquela empresa, doo, enfim, até que a bolsa me doa, e não é a de valores, pois que a minha anda sempre em desvalorização (quanto mais não seja porque a gata ma arranha).
Bom.
Merecedora de uma entrada em ombros (não confundir com carga de ombros), mas sem voluntários à altura (da ombreira), fui alevantar o meu prémio, e, por isso, adentrei-me, triunfante e impante, anunciando ao balcão:
- Venho aqui levantar o meu prémio.
Este foi o momento em que tive a certeza de ter acordado o senhor Morto. Vi-o dar um pulinho vertical (podia ser para a frente, tá?), remelgar-me muito o olhar mortiço (não sei se deva continuar a utilizar palavras da mesma triste família), e exclamar:
- AH!
Era mais um movimento da parte dele, e era eu a gritar "Milagre! Deu-se um milagre! Sou santa!", mesmo que a cara me denuncie constantemente o contrário, não sei porquê. Mas atalhei, e esclareci:
- Ainda não é o primeiro.
Mas Morto estava ressuscitado da letargia, e quis entabular:
- Já vai no bom caminho...
E eu, que nunca me consigo calar a tempo de não me auto-sentenciar de morte (cruzes!), não resisti a desacordar mais o homem, e saí da papelaria, assinando uma daquelas promessas-leva-as-o-vento, diante de várias testemunhas (de entre as quais a Antipática e a Azeda):
- Fique descansado que, quando eu ganhar o euromilhões, também me lembro do Senhor.
(A linguagem verbal não tem maiúsculas. O Senhor.)
Fique descansado.