Não adianta fugir-lhe. A genética é como aquele bicho dos brasileiros: se correr, o bicho pega, se ficar o bicho come. Se uma (não interessam as razões) faz parar o trânsito, é normal que a outra, que é filha de peixe, saiba nadar e faça parar o metro — que foi o que aconteceu ontem.
Saltando a parte do INEM, que só teria relevância para esta história se eu tivesse assistido a tudo, a acção passa directamente para o Hospital de Santa Maria, onde passei uma quarta parte de dia, entre ontem e hoje, vestindo a casaca de acompanhante.
A primeira pulseira que lhe foi atribuída, foi a pulseira amarela, mas, assim que eu invadi o hospital, colocaram-lhe a cor-de-laranja, vá-se lá perceber porquê. Foi por isso que fomos parar à sala das laranjas.
Para início de conversa, a sala laranja é mesmo ao lado da urgência de psiquiatria, e, quem sabe, isso não explica que estivesse povoada de queimados do juízo. Quase imediatamente, entrou um senhor, com cerca de cem anos, que personificou na perfeição a metáfora do elefante no meio da sala (todos sabem que lá está, todos fingem que não está): conseguiu gritar, contado por mim, durante cinco horas, só interrompidas por uma sesta de meia-hora, em que acredito que todos estranhámos o silêncio, e até sentimos a falta do ruído.
Existe um leque infalível de estilos de utentes, uma espécie de núcleo duro, em todas as urgências dos hospitais, sejam eles públicos ou privados. Há uns anos, num outro espaço que tive, descrevi uma estadia de, coincidentemente, seis horas, no Hospital da Luz, e a miséria humana é transversal a todas as bolsas e bolsos. Os níveis de gemideira equivalem-se em género, número e grau. Ontem, lá estavam as personagens do costume: a prostituta, a idosa barriguda que ainda veste tigresse (normalmente, em duas peças, de estampados diferentes, tipo a legging e a mala, ou o apontamento no botim e a gabardine), o velhote que grita que quer fazer chichi, o jovem que partiu a perna e o senhor que não se sabe muito bem o que é que ali está a fazer, mas que se presume que tem dores. E a mulher de Chelas (eu).
Chegar a um lugar destes sem dinheiro (eu) e ser acometida de uma larica (eu), constitui o início de uma aventura, em se tratando do HSM, que é a conquista de uma refeição (vá, um snéc da vitrine das moedas). Houve que perguntar a duas pessoas diferentes onde é que ficava o multibanco, percorrer um corredor labiríntico, com saídas à direita e à esquerda, e portas, e zero pontos de referência para poder regressar à casa de partida. Isto, para uma pessoa que, amiúde, perde o carro à porta de casa. Mas a fome era mais preta que o medo, e eu era um predador vestido de mulher de Chelas, pelo que consegui levantar dinheiro no meio do povo da pulseira verde (entretanto, soube que também há uma pulseira azul, e auto-flagelei-me para não cair em tentação de ir pedir uma).
Munida de capital, marchei, impante e ufana, para a máquina dos víveres, que se recusou a aceitar-me a nota, berrando por moedas, a pelintra. Passou por mim uma senhora, que empurrava uma cadeira de rodas, e me perguntou onde era a "zona dos verdes". Tentada a fazer-lhe o croquis para o estádio, respondi-lhe que seguisse "em frente até lá ao fundo". Fiz mais uma tentativa de enganar a máquina com a minha nota de 10, mas ela devolveu-ma em modo símbolo dos Rolling Stones. A senhora da cadeira de rodas voltou a perguntar-me onde era a zona dos verdes, e então percebi que havia dado uma volta completa ao "quarteirão" dos corredores. Repeti-lhe que fosse em frente até lá ao fundo, e voltei a embrenhar-me no labirinto, em busca do bar aberto, pois o fechado não me interessou tentar adentrar. Sabia que havia que descer umas escadas e sair do edifício do hospital. A procura pelas escadas valeu-me a entrada por uma porta que só depois reparei tratar-se de um vestiário. Aquilo faz tudo uma lógica da batata, ou eu tenho um problema por resolver relacionado com a bússola. Devo ter sido um daqueles navegantes que morreu de escorbuto a duzentas milhas da costa. Depois de me aviar no Toxinas, o bar mais famoso do HSM (pelo menos, para mim, que o frequento desde a mais tenra infância), com um pampilho, uma tarte de amêndoas e uma garrafa de água (para empurrar aquilo tudo), voltei para trás, mas perdi-me outra vez. Após ter chagado a paciência a mais três pessoas, regressei à sala das laranjas, quase triunfante, e com um farnel incrivelmente calórico. A senhora da cadeira de rodas passou por mim, já sem a cadeira de rodas, e perguntou-me, com muito mau modo, afinal, onde é que era a zona dos verdes. Indiquei-lhe a porta da urgência de psiquiatria e tratei de me alimentar.
Consegui libertar-me às 01:00 da manhã, outra vez esganada de fome, e evitando a tal porta, mesmo ao lado da sala das laranjas. E, o mais importante, com a minha boneca totalmente recuperada (eu, nem por isso, mas eu sou eu).